Saturday, December 24, 2005

A singular história do dr. Onofre e de sua esposa Wilhelmina

Após dois anos separado de sua mulher por motivos de viagem tão chatinhos que chateariam o mais chato leitor, dr. Onofre, que era conhecido pelo seu extremíssimo fanatismo por música erudita -- em certo dia chuvoso ousou arrancar com uma moeda o olho de uma velhinha que disse que chorava copiosamente quando ouvia "O lago dos cines" --, dr. Onofre resolveu enviar de presente à sua mulher um cd contendo a Partitia no.2 de Bach tocada pelo virtuose Yehudi Menuhin, com uma dedicatória mais ou menos assim: "À minha Peruquinha; Do seu amado Frô-frô.", gênero de apelidos ridículos que geralmente os casais soem dar-se mutuamente.

Nem bem passados quatro meses após o envio do presente, eis que dr. Onofre volta finalmente para seu lar. Todavia, qual não foi sua surpresa ao encontrar a belíssima Wilhelmina embarrigada, embuchada, em estado interessante, e todos os demais sinônimos que pela enorme feiúra e expressão bizarra talvez indiquem o quão esquisito é o feio milagre do nascimento. Dr. Onofre, homem que às vezes parecia saído do Antigo Testamento, desesperado, rasgou sua própria camisa e, não encontrando cinza no chão, atirou em sua própria cabeça o pudim que carregava para dar à sua virtuosa mulher. E com o pudim escorrendo pela sua cabeça um tanto trapezoidal, concertou os seguintes dizeres:

- Agonia e traição! Agonia e traição! Que se passou neste lugar enquanto eu estava em uma viagem que por motivos tão chatinhos chateariam o mais chato leitor?

- Ó celerado, homem de pouca fé! - disse a bela e boa esposa. Como duvidas de minha honestidade? Assim fiquei semanas depois de ouvir o esplêndido cd que me enviaste. Tanta beleza naquela música, tocada por tão excelso virtuose, me deixou em estado interessante.

Ao ouvir aquilo, o dr. Onofre, emocionado até não poder mais, ajoelhou-se perante a sua amada, pegou sua mão e começou a declamar alguma coisa ininteligível e com voz embargada. Mas eu farei a gentileza de traduzir a ti, leitor, o que ele quis dizer:

- Que belo dia, que céu adorável, que memorável momento! Em minha perfídia maculei a honra desta santa mulher! Perdoe-me, augusta mulher... Fui tão tolo que nem cogitei que gênero de milagres pode esta partita provocar. Eu mesmo, tendo ouvido pela primeira vez aquela obra de arte, senti que era gerado em minhas entranhas um novo ser, embora não houvesse continuidade de tão portentosa dádiva por causa deste mundo de justiça imperfeita. Ó cegueira terrível! Perdoe-me, santa mulher, perdoe-me!

Wilhelmina, visivelmente sentida ante tal espetáculo, perdoou a perfídia do marido, que acabara de babar em sua delicada mãozinha, e limpou graciosamente o cocoruco do esposo cheio de pudim.

Os meses se atropelavam e a criaturazinha se desenvolvia no ventre, no bucho, na barriga, na pança de Wilhelmina. Dr. Onofre amava a esposa como se ela fosse a primeira e última mulher da face da Terra, a despeito do despeito da chusma inominável, turba ignara e hostil a tudo que foi criado belo e maravilhoso no jogo do mundo. Assim, tiveram uma lindinha criança, batizada de Tareja Yehudi Bezerra Bach Partita de Carvalho (os íntimos a chamavam apenas pelos dois últimos nomes), no mesmo dia em que sincronicamente um coral ajudado pelos anjos entoava em alguma praça pública do mundo "Jesus alegria dos homens".

Wednesday, December 21, 2005

A última de Janer Cristaldo e religião

Janer Cristaldo é conhecido - sem contar seus trabalhos literários e jornalísticos (já fiz um rápido comentário sobre seu livro O paraíso sexual-democrata aqui no blog) - pelo seu ateísmo militante contra o Cristianismo e o Islamismo. Agora ele resolveu bombardear o Judaísmo, fechando com chave de ouro este ano com uma guerra - se é que podemos chamar assim tal modo de proceder - contra as três grandes tradições monoteístas do mundo.

Estando no Ocidente, e o Ocidente, queiramos ou não, só tem razão de ser graças ao Cristianismo, Janer Cristaldo preferiu por um motivo qualquer não apenas renegar tal herança e tradição como inclusive agredi-la sem o menor pudor. Por outro lado, o tradicional inimigo do mundo ocidental, o Islamismo, nem por isso deixou de ser agredido por ele. E sendo o Judaísmo de certa maneira comum a ambas as tradições, era só questão de tempo ele resolver agredi-lo também.

O problema de Cristaldo é que ele geralmente faz uma imagem no mínimo esquisita das religiões e passa então a atacá-las, como se estivesse realmente dizendo alguma coisa sobre elas. Ao leitor um pouco informado a respeito de todas elas fica o problema de saber se Cristaldo assim procede por incompreensão crônica, pura má-fé ou um pouco de ambas. Não sei, só Deus e o próprio Cristaldo sabem a verdade. O máximo que podemos fazer é cogitar.

Quem quiser saber direito sobre isso que vá ao seu site e leia o que ele costuma escrever. Em dado instante ele diz que o Cristianismo é mais nefasto que o comunismo e o nazismo, e busca sustentar tamanha loucura apontando para nada mais, nada menos, que a Inquisição. Ao Islamismo ele oferece argumentos - se é que são argumentos - relacionando esta religião com a barbárie e o terrorismo, considerando assim normal, da maneira mais esquisita possível, que somente nos fins do século XX o Islão, em mais de mil anos de história, tenha sido empregado sistematicamente como fundamento de crimes e loucuras por um grupo de assassinos e psicóticos. Por fim, agora ele nos brinda com pinceladas torpes e interpretações caducas sobre Maimônides. Depois de fantasiar o sábio judeu como se este fosse uma espécie de delinqüente, conclui: "E depois os judeus se queixam de ser uma raça perseguida."

Este último texto, Sobre Maimônides, saiu no Mídia sem Máscara. Logo em seguida foi criticado pelo Olavo de Carvalho, que disse, dentre outras coisas, que "não se pode dizer que ele esteja em descompasso com a moda", que o site se "destina a finalidades mais relevantes e não deveria ser desperdiçado com futilidades odientas", que seus últimos artigos "não têm pé nem cabeça", etc. Olavo de Carvalho disse ainda que aqueles últimos artigos "contrastam de maneira patética com as coisas espetaculares que ele escreveu, em outras épocas, contra o indigenismo fake, na Folha de S. Paulo, ou contra o socialismo proxeneta, no seu livro memorável 'O Paraíso Sexual-Democrata.'" O problema se deu quando o Janer Cristaldo "decidiu dar um upgrade impossível na sua seleção de assuntos, passando dos temas terrestres aos celestes sem ter para isso nem mesmo asas de galinha."

Para quem não sabe, o filósofo é editor do site. Ora, surgir opiniões tão díspares assim num jornal, ainda que o Mídia sem Máscara não tenha sido bolado para servir de trampolim de críticas às religiões, é algo que não deixa de ser interessante, e mais ainda porque, sendo editor, o filósofo não censurou o artigo. Mas não ter sido censurado não significa que ele está para além do bem e do mal. Tanto assim foi que Olavo de Carvalho o criticou.

Devo dizer ao leitor que essa não foi a primeira vez que Cristaldo foi criticado por aquelas bandas. Há algum tempo alguém por lá polemizou com ele por causa de alguns de seus artigos a respeito da Inquisição. Por mais que o jornalista dissesse bobagens sobre o assunto, ele não foi censurado vez alguma.

Agora (no artigo Franceses e "franceses") ele resolveu dar uma resposta ligeira ao Olavo, estranhando o fato de este tê-lo criticado após ter defendido semana passada (em Não é caso para rir, artigo do Jornal do Brasil de 15/12/05) o direito de criticar a religião alheia, quando comentou sobre a censura de um livro do bispo Edir Macedo porque ele escrevera que as entidades de candomblé e umbanda eram demônios. Diga-se de passagem, aliás, que decisivamente só um jumento seria capaz de censurar um livro por isso, e que só em um lugar bastante anormal as coisas se passariam assim, como é o caso do nosso país. Mas este "estranhamento" do Janer é outra coisa sem pé nem cabeça, porque é mais do que óbvio que Olavo de Carvalho protestava só contra a censura. O que Janer fez foi ampliar falsamente o protesto do Olavo para que parecesse contraditório com o que o filósofo escreveu contra ele, dando a impressão de que, quando o assunto é religião, o Olavo só protesta quando convém defender o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo. Mas no artigo fica claro que o ateu tem o direito de criticar todas as religiões, o que não significa que ele não pode ser duramente criticado.

O direito de falar mal contra algo implica que outros tenham o direito de protestar contra quem falou mal. De outro modo, para onde iria a liberdade de expressão? Se Janer Cristaldo criticou duramente Maimônides, porque o próprio Cristaldo estaria imune às críticas? Levando-se em conta, por outro lado, que ele criticou da forma mais atabalhoada possível o sábio judeu, com que direito ele poderia reclamar se alguém fizesse o mesmo com ele? Não quero dizer com isso nem que devemos falar mal do Janer simplesmente por falar, nem que o Olavo o criticou de modo atabalhoado. O que digo é que Cristaldo deveria pensar duas, três, mil vezes antes de escrever semelhantes coisas ao invés de dizer bobagens e logo em seguida, quando criticado, querer aplicar o que chamo de "golpe do ofendido": o sujeito fala asneiras contra ti e na hora que você revida no mesmo tom ele choraminga dizendo que você passou dos limites, que ele quer uma conversa civilizada, etc. É o cúmulo!

O "golpe do ofendido" que Janer usou parece muito com o jeito de ele argumentar sobre religião: não dá para saber onde termina a má-fé e começa a burrice propriamente dita. O único que sabe é Deus - começo a pensar até que ponto Cristaldo realmente sabe também, porque dada a insistência com que ele volta e meia escreve o que escreve sobre o assunto, parece que nem ele mais sabe.

Sunday, December 18, 2005

Ciências autônoma e heterônoma

Olá, leitor amigo. Enquanto vou pensando em alguma coisa nova para escrever, vou postar aqui algo que enviei a alguns amigos faz um ano e pouco. Tem relação com o post anterior. E tenha um bom dia.

Quero compartilhar com todos vocês meu ócio produtivo. É algo que li faz um tempinho. Está em O Século do Nada, do Gustavo Corção. Prestem atenção em suas palavras:

Muitos poucos são os que fizeram ou realizaram a experiência de Foucault, e os que, com o olho colado à ocular do círculo meridiano, puderam verificar com aproximação cada vez maior a uniformidade do movimento angular dos "pontos do infinito" que cruzam os fios do retículo. Todos os outros que falam da rotação da Terra, de oitiva falam. De ouvir dizer e não de uma coisa vista ou diretamente ouvida. Essa grande e respeitabilíssima maioria dos não-astrônomos, o pouco que sabem de astronomia não o sabem com ciência adequada e autônoma, sabem-no por informação, por fé humana, ou por ciência pobre, inadequada e heterônoma.

Ciência autônoma é aquela que reune um acervo de fenômenos, enquanto a heterônoma restringe-se a uma teoria de interpretação. Sobre isso Corção diz mais uma coisa interessante:

E aqui cumpre notar que, embora não pareça, a primeira parte é muito mais inacesível e impopular do que a segunda, porque são poucos os que entram em confronto direto e fratero com o irmão-fenômeno, e muitos são os que lêem as notícias das sínteses teóricas, quase sempre em formas vulgarizadas e brutalizadas.

O que isso tudo quer dizer? Quer dizer que a maioria esmagadora de nós conhece ciência devido ao que estudou no primário, ginásio e secundário, mas que esse estudo basicamente se ateve à ciência heterônoma. O dado sensível geralmente é negligenciado. Assim, eu e vocês podemos provar por malabarismos intelectuais algo que não tivemos o mínimo conhecimento sensível para comprovar ou negar. É como se soubéssemos várias teorias literárias sem ter lido um livro sequer. Em outras palavras, um blábláblá.

É claro que esse blábláblá está apoiado nalguma coisa, podemos até dizer muitas verdades com ele, porém sempre será mais de oitiva, como disse Corção. Depois dizem que crentes é que têm fé numa coisa que nem entendem direito...

Saturday, December 10, 2005

Aquisição civilizatória

O que eu direi é um pouco complicado para explicar, mas farei um esforço para me fazer compreender. Vou usar um exemplo antes de ir para a explicação propriamente dita.

Todo mundo acha que é a coisa mais óbvia do mundo que a Terra não está no centro do universo, que ela se move, etc, etc. No entanto, suponho que sejam poucos os que pararam para olhar o céu a fim de compreender como, afinal de contas, é possível que a Terra nem esteja no centro do universo, nem esteja imóvel, etc, etc. Menor ainda é o número daqueles que já viram ou ouviram falar no pêndulo de Foucault, através do qual percebemos o movimento da Terra.

Aqui chamo a atenção do leitor para o seguinte: faça você mesmo o percurso intelectual para saber se você de fato sabe o que diz ou não. Por exemplo, em relação ao que eu disse sobre a posição da Terra no cosmo e seu movimento, procure você ler documentos relativos a isso e tente transformá-los numa autêntica experiência tua, como se fosse você quem estivesse trilhando as investigações alheias, bem aos poucos, até que você consiga se tornar inclusive um hábil defensor de dois ou mais pontos de vista sobre este mesmo assunto (no mínimo dois porque assim você poderá analisar dialeticamente o problema). Assim, ao ler alguma coisa de Ptolomeu, se houver um instante em que você, tomando conhecimento, por exemplo, da teoria dos epiciclos, tiver a impressão que não é possível que o universo não seja de outra forma, então parabéns: você adquiriu um novo patamar sobre o assunto e um legado civilizatório foi absorvido por ti. Bastará apenas que você prossiga teus estudos a fim de saber que mais foi dito sobre o problema.

Mas que algum desatento não entenda por isso que estou defendendo as opiniões pré-modernas cosmológicas. Não estou entrando no mérito de sua verdade ou não, mas sim da aquisição, por parte do leitor, de conhecimentos antigos, a ponto de conseguir transformar uma experiência de investigação de outros em sua própria. É claro que nada impede que o mesmo se dê com relação à cosmologia moderna, mas faço questão de ressaltar um exemplo antigo porque para ter surgido o último foi necessário o primeiro. Isso sem contar que há tesouros escondidos no passado, de modo que os antigos freqüentemente dão ótimas dicas para nossas investigações. Isto nada mais é que uma forma do leitor perceber o caminho das discussões, poupando-se de dizer algo em tom de novidade mas que há muito já disseram. Tal procedimento poupa trabalho, pois não precisamos redescobrir a todo instante a pólvora. Acreditem que, por mais absurdo que pareça, a história intelectual está repletíssima de re-re-re-redescobertas de pólvoras e afins, e a posterior caipiragem e concentração em torno do próprio umbigo que estes lamentáveis eventos soem trazer apenas demonstram ignorância da sabedoria passada.

Uma outra vantagem desse tipo de investigação é a capacidade de reconstruirmos o percurso intelectual de quem estamos estudando. No exemplo acima, você passa a raciocinar como Ptolomeu. O mais legal desta brincadeira é que, dependendo do grau de absorção dos processos de investigação do autor que você esteja estudando, você se transforma numa pequenina cópia dele, porém atualizada. Assim, é como, em relação à astronomia, você se tornasse um pequenino discípulo de Ptolomeu com os dados modernos da ciência. E este processo é mais interessante à medida que “empregamos” certos intelectuais notórios numa perspectiva moderna. Isso prova que, independente da época em que eles viveram, suas idéias são inesgotáveis, e muito ganha quem consegue estudá-las.

Na verdade, o que estou dizendo é o que deve ser o aprendizado. Primeiro, a reconstrução do percurso intelectual de dado autor; depois, o mesmo, só que com um número cada vez maior de autores e buscando obedecer, se possível, a sucessão cronológica dos debates até chegarmos aos nossos tempos. Esse tipo de procedimento não é novo: o velho Aristóteles assim agia metodicamente. Em todos os seus livros ele sempre busca compreender as idéias de um autor sobre o tema que está sendo investigado para, logo em seguida, montar uma história do problema tratado. Por exemplo, no livro primeiro da Metafísica, em dado momento ele busca investigar o que é causa. Então ele passa em revista uma série de filósofos a fim de saber o que eles disseram sobre o assunto. Na Física, na Política e em outros livros ele faz o mesmo com cada assunto tratado. Assim, se fizermos algo parecido com o modo de estudar aristotélico com cada uma das grandes questões, isto é, problemas tais como o que é a alma, a política, a liberdade, Deus, a física, etc, aos poucos teremos um conhecimento das discussões que houve sobre cada um desses grandes temas. Aliás, essa idéia foi amplamente defendida por Mortimer Adler em seu livro How to Read a Book (há duas traduções, A Arte de Ler, a mais antiga, e Como Ler um Livro, a mais recente, se bem que ouvi falar que a última não é muito boa).

No fundo, o que está por trás de tudo isso é a aquisição do patrimônio da tradição ocidental, que nos vem através de uma série de respostas a várias questões fundamentais. Você poderá não saber direito como resolvê-las, mas pelo menos saberá por quais caminhos deverá trilhar, não caindo em erros há muito cometidos, mais ou menos como aqueles diálogos platônicos onde não há uma resposta definitiva mas várias dicas de como achá-las.

Isso tudo tem uma série de conseqüências fantásticas, mas é um assunto para outra ocasião.

Saturday, December 03, 2005

Dois amores, duas cidades


A universidade segundo a filosofia perene ou: A vida intelectual autêntica.


A universidade segundo a educação brasileira ou: Como ser uma pessoa maravilhosa no Brasil.

Sunday, November 20, 2005

Fantástico programa de TV

E lá fui eu me sentar no sofá a fim de deixar o cérebro de molho, tarefa aliás realizada por mim com mais freqüência que a devida. Julguei que não havia nada melhor para tanto que assistir no sofá ao Fantástico, que há tempos sequer eu ouvia o nome.

Antes de continuar, peço licença para dar um exemplo sonoro de quão agradável é a TV, especialmente aos domingos. Hoje à tardinha, enquanto minha mãe se suicidava mentalmente assistindo ao Domingo Legal, eu estava no quarto lendo, depois de ter passado quase mil anos limpando uma prateleira e os livros que estavam sobre ela. Enquanto eu me matava para entender o argumento de Leibniz acerca da existência de Deus, de repente comecei a escutar algo vindo da sala mais ou menos assim:

- ... e não é bom dançar funk com calcinha porque...

Concentração, concentração, por que tu me abandonaste? A partir daí havia duas pessoas perto de mim disputando minha atenção: de um lado, o filósofo, do outro, uma mulher dizendo alguma coisa sobre o problema de dançar funk com calcinha. De certa maneira, se apresentava uma demonstração da hipótese da divisão radical entre corpo e alma, pois meus sentidos escutavam o canto da sereia safada enquanto minha mente buscava feito louca onde é que minha concentração se escondera. Às vezes parece que ter um espírito neste mundo de justiça imperfeita é equivalente a estudar Metafísica na Marquês de Sapucaí. Para minha sorte, a minha mente chamou a polícia e a baderna terminou: a concentração voltou ainda a tempo e talvez lá no céu o sábio alemão expressou contentamento.

Voltemos ao sofá, onde eu me preparava preguiçosamente para a próxima abobrinha da TV. No Fantástico passava uma reportagem sobre fé, com uns sujeitos batendo palmas enquanto outros fumavam charutos. Reza o provérbio que não se deve bater palmas para maluco dançar, mas acho que aquelas supostas religiões estavam na (ou procediam da) superfície da Lua, portanto a quilômetros de distância do senso comum. Mostraram uns quatro lugares, cheios de gente no todo e em parte estranhas: em um, alguém com chapéu de boiadeiro dançava como o Tiririca, enquanto explicavam que ali descera um espírito de um capiau ("Uma figura muito humana", asseverava um estudioso da tal religião); em outro, uma mulher gordinha fumava charutão e dava conselhos em voz mole, parecendo sofrer derrame enquanto isso, embora o restante das pessoas ali presentes julgasse que tal efeito era apenas emanação de uma divindade qualquer; no seguinte, um homem vestido de Mandrake dizia estar recebendo um tal de Preto Velho, que segundo os entendidos era um velho escravo muito judiado e que aparece hoje em dia para dar sábios conselhos (que, ao que parece, de nada serviram para si mesmo, já que comeu no passado o pão que o diabo amassou); por último, um camarada recebia, segundo a voz em off, o espírito de uma princesa turca (havia até um retrato horroroso seu na casa; parecia que eu mesmo o havia pintado). Acho que essas coisas todas eram candomblé, mas não lembro. Só sei que quem participava achava tudo aquilo muito supimpa.

Boiadeiro, Preto Velho, espírito tendo derrame e princesa turca: exceto essa última, por que não um físico, um filósofo, um rei francês, um diplomata, um legionário, um esquimó, um compositor? Eu assistia àquilo tudo enquanto dava graças aos céus por jamais ter servido, ao menos até o instante que digito essas palavras barrocas, como hospedeiro de entidades. Com certeza, assim que ela retornasse para o buraco de onde saiu, eu correria direto para a igreja mais próxima: se já não bastava ser eu mesmo, quanto mais me tornar um espírito mais ridículo ainda! Que vergonha, santo Deus! Imagine, ainda por cima, ter de aturar o supremo mau-gosto desses espíritos, que só sabem beber cachaça, fumar charuto, se vestir do jeito mais brega possível e dançar ridiculamente? E isso quando homem não vira princesa turca! Creio que o senso do ridículo nos joga automaticamente nos braços de qualquer uma das grandes tradições monoteístas, ou ficamos ateus se ele acaso não estiver muito evidente.

Apareceu, mais para o fim da reportagem, alguém que era estudioso de religiões afro-brasileiras. Não lembro o que ele disse, até porque fiquei pensando sobre as razões que fizeram com que aquele sujeito estudasse uma coisa dessas. É equivalente a alguém que, entrando na faculdade de Medicina, resolvesse estudar a sujeira que fica atrás das unhas. Ademais, é preciso uma mistura de preguiça e falta de senso de proporção para se dedicar unicamente a isso, deixando de lado as riquezas das grandes tradições. Dou uma taça de sorvete para quem adivinhar o que um estudioso fanfarrão escolheria: se matar para saber o significado da Santíssima Trindade ou a moleza de conhecer o suposto mistério do espírito do boiadeiro?

Logo em seguida, e eu já estava em frente ao computador imaginando o que escrever para este bendito blog, em meu quarto entrou sem nenhuma cerimônia alguma coisa sobre Zumbi e Dia da Consciência Negra, ambos vindos da TV sem-educação da sala. Parece anedota inspirada na Criação: "E até novembro não havia nada, quando de repente, pluft!, e os pretos passaram a ter consciência mediante canetada do governo supremo." É uma pena que em trezentos e sessenta e cinco dias os pretos tenham noção de si mesmos apenas por pouco tempo, tendo de esperar um ano até sua próxima visita, mas não sou eu quem provocará os ilustres senhores membros de movimentos black dizendo que a tal "consciência negra" ou é muito pobre ou muito ocupada, pois os visita só de tempos em tempos: eles devem saber o que fazem e o que dizem. Aliás, que significa "consciência negra"? Esse termo é horrível. Mas que é esse cometa que surge só de ano em ano? É gostar de tambor, de Zumbi, de presepada africana? Enquanto desejam que os pretos daqui adorem essas bobagens, os de lá de fora, seja na África, seja nos EUA, querem mais é se islamizarem ou se cristianizarem. Se eu acreditasse que a história é progresso - meu pessimismo não deixa -, eu diria que os brasileiros black estão na contramão da história. Ou na mão da história do Haiti. Naquele lugar, a maravilhosa cultura dos antigos escravos desabrochou de tal modo que lá é o que é, e aliás não é à toa.

E Zumbi? Eu nem sei se aquele sujeito sabia falar português ou fazer contas. Sabe-se lá Deus o que haveria caso o conhecêssemos pessoalmente. Como alguém que só participava da cor e essência de humanidade dos brasileiros black pode ser reverenciado como símbolo nacional? Por que não escolher José do Patrocínio, Machado de Assis ou Lima Barreto como exemplos da força de pretos e mestiços? Só uma sílaba do nome do Machado de Assis vale mais para a nação que mil rebeliões de Zumbi dos Palmares.

Quer saber de uma coisa? Da próxima vez que eu resolver colocar meu cérebro de molho, eu vou ficar aqui na Internet mesmo ou folhear um livro só de figuras. Melhor que assistir àquelas coisas.

Thursday, November 17, 2005

Dominando o ímpeto de publicar

Olá, bom leitor. Desculpe pela minha demora. Todavia, por mais estranho que possa parecer, quem escreve em blogs é gente, e, como qualquer ser humano que se preza, o garrancheador de blogs gosta de tirar umas férias de vez em quando. Mas férias no sentido de publicações. Estou bem longe de deixar de escrever: ao contrário, basicamente todo dia dou um garrancheio aqui no meu computador, um outro ali no meu caderno, sem contar os textos que ficam guardados nas inúmeras gavetas de meu cérebro bizarro. Ah, que ímpeto de escrever! É desse jeito que geralmente emprego minha liberdade.

Se o ímpeto de escrever é quase incontrolável, ao menos o de publicar é domesticável.

E meus textos estavam mal-acostumados. Nem entravam em forma e já se exibiam. Vou deixá-los por mais essa semana fazendo ginástica, pois quero que fiquem mais saudáveis, fortes e atraentes. Melhor dizendo: mais verdadeiros.

Na próxima semana deixarei que eles venham brincar por aqui, pois não sou um pai muito controlador, quiçá relapso, mais no fundo um pai amoroso. Mas de nada adiantará aos meus filhinhos, tão dependentes de mim, se papai não dormir direitinho. Portanto vou me deitar. Bom dia, leitor.

Sunday, October 30, 2005

Por que 007 é tão legal?

Às vezes fico pensando se o governo de Sua Majestade sustentaria as mulheres que James Bond porventura engravidasse em suas missões. Mas nunca ninguém engravida. Bom, supondo que engravidassem, pela perfomance do agente secreto em suas missões julgo que daria para a Inglaterra fundar pelo menos uma nova cidade.

Mas 007 sabia se precaver, sabe-se lá como. Talvez fosse questão de sorte - sim, ele a tinha demais -, ou algum invento do Q que impedisse que as bond-girls engravidassem. Uma coisa é certa: levando-se em consideração o Labour Party, na certa iam dar um seguro social a todas elas, e já imagino o golpe das bond-girls, querendo ter um filhinho só para conseguir uns trocados e cidadania inglesa.

O fato de algo assim me intrigar não é o único motivo de eu gostar muito dos filmes do James Bond. Aliás, para mim é inconcebível que não gostem dele, mesmo quando apontam as falhas de roteiro, cenários bregas e cafonas, mentiras deslavadas, etc, etc. Nem todos os filmes dele são assim (ou melhor, só assim), e mesmo os que são se tornam, quando a gente pega tudo isso em conjunto, as coisas mais divertidas, ainda que às vezes constrangedoras... Em suma, é um daqueles filmes de ação divertidos, e sinto falta quando não há um vilão singularmente demente, cafona, megalomaníaco, com um braço-direito doido, ou quando não há uma forçação de barra tremenda.

James Bond é um personagem muito legal. Viaja por todo o mundo, namora as mulheres mais lindas, tem as geringonças mais modernas e inventadas por Q, adora jogar em cassinos, tem um senso de humor legal, às vezes bizarro, é um super-espião super-treinado, e, acima de tudo, está sempre salvando o mundo a serviço de Sua Majestade. Ah, e eu já ia me esquecendo: ele adora uma vodka Martini batida, não mexida (há um monte de sites explicando inclusive a diferença entre um e outro tipo). Do ponto de vista sumamente mundano, é o herói perfeito.

Ian Fleming, sujeito que criou tudo isso, era do serviço secreto britânico, no setor responsável pela segurança externa, MI-6 (Military Inteligence, Section 6). Filho de um major que foi morto na Grande Guerra, Fleming estudou na Universidade de Munique, tendo antes passado pela Academia Militar. Tinha facilidade para línguas. Trabalhou também como jornalista, e no período da Segunda Guerra serviu como oficial de elevada patente na Royal Navy no setor de Inteligência, retornando posteriormente ao jornalismo.

Foi exatamente um sujeito com experiência no mundo da espionagem e jornalismo que criou as histórias mirabolantes de 007. Ninguém pode portanto dizer que Fleming, do qual nunca li nenhum livro mas tenho grande vontade de conhecer algum, era um intrometido dizendo coisas malucas e fantasiosas sem conhecimento de causa. (Aliás, Paulo Francis disse certa vez que, em relação ao sexo, os filmes são água com açúcar se comparados com os livros, porque segundo Francis os filmes foram feitos tendo em mente o público dos EUA, bastante puritano.)

Mas por que enfim 007 se tornou tão famoso? Alguns motivos eu já dei: seu carisma, suas viagens pelo mundo, seus vilões megalomaníacos, as bond-girls maravilhosas, etc. É um filme de ação que explora direitinho o que há de mais "espetaculoso" no mundanismo: a cobiça e a luxúria, com muita classe (de um jeito caricaturado ou não), ao redor de cassinos, Martínis e paisagens pitorescas. Além do mais, os vilões não tem um tipo de cobiça qualquer, mas querem geralmente colocar o mundo de joelhos, nem Bond namora uma mulher qualquer, mas só as mais maravilhosas – sempre para cumprir seu dever para Sua Majestade. E - lá vou eu me repetir - aquelas geringonças de última tecnologia são tão legais que se tornam quase uma personagem coadjuvante: sempre elas têm de aparecer, sempre com nova roupagem - e por tabela Q, e agora esse outro que o sucederá.

Só me resta dizer alguma coisa sobre o pessoal que já interpretou 007. Sean Connery era o melhor por causa de sua presença - como eu poderia dizer? - máscula na tela. Grande, rosto quadrado e de marcas fortes, porém sofisticado e sabendo passar a ironia do personagem, conseguiu juntar tudo isso muito bem. Roger Moore conseguia ser ainda mais irônico. Foi o mais "gentleman" dos 007. Timothy Dalton não conseguia imitar nem a ironia nem o atletismo, foi o pior (só vi dele o Licence to Kill, que também em nada o ajudou - filminho que quase afundou de vez a série -, diga-se a verdade, parecendo uma versão um pouquinho mais sofisticada de Desejo de Matar). Pierce Brosnan, embora não chegasse aos pés de Moore e Connery, assumiu muito bem o papel, talvez sendo um dos James Bond mais charmosos. Do restante não posso dizer nada, porque não os vi.

Sunday, October 23, 2005

Zeus, Prometeu, Atena e o Cabeleireiro dos Deuses*

*Baseado em uma fábula de Esopo

Lá no grandioso Olimpo, no início do mundo, houve uma disputa entre os deuses para saber quem criava a coisa mais bela. Eis os contendores: o tonitruante Zeus, o perscrutador do futuro Prometeu e a de olhos glaucos Atena. O primeiro exibia com orgulho um animal grande, forte e chifrudo, batizando-lhe “touro”; o segundo acabara de fazer uma criatura das mais intrigantes. Embora tivesse aparência frágil, ele a ostentava como um ser de futuro promissor, chamando-lhe “homem”; por sua vez, Atena usou seus conhecimentos em arte para fazer uma construção que ao mesmo tempo fosse bela e prática, chamando-lhe “casa”.

Só que havia um problema. Nenhum outro deus queria ser árbitro daquela disputa. Alguns achavam menos pior serem arremessados do Olimpo direto para o Tártaro, embora Hefesto, por experiência própria, visse naqueles dizeres um certo exagero. Então Zeus, sapientíssimo, chamou Hermes e disse-lhe: “Meu caro, posto que eu mesmo estou envolvido na contenda, só há uma criatura neste mundo que poderá ser juiz de tão singular disputa, pois ela é próxima de todos nós e ousada, se bem que um tanto invejosa. Chame rapidamente o Cabeleireiro dos Deuses.” Enquanto Hermes era assim despachado, Zeus virou-se para os demais e continuou: “Mas não falemos que fomos nós que criamos aqueles seres, para não influenciarmos sua decisão”. Todos os deuses aplaudiram e ovacionaram Zeus pela sua sábia decisão, chegando Dionísio a ensaiar uma dança esquisita, e já estava pronto para rebolar em frenesi, quando Apolo achou por bem retirá-lo daquele augusto recinto, não sem antes chamá-lo de bêbedo e celerado.

Hermes foi correndo cumprir sua ordem e em fração de segundos voltou acompanhado por uma figura das mais singulares. Ela vinha com plumas na cabeça, uma peruca dourada, enorme, cheia de purpurina, pó-de-arroz em excesso no rosto, milhares e milhares de cordões, argolas, pulseiras e outras coisas, além de um salto alto enorme, do tamanho de um pigmeu da África. Por baixo desse imenso aparato, ela vestia uma toga feita com pele de tigre branco, repleta de esmeraldas. Oh, e que dizer de seu portentoso leque rosa, do tamanho de um gládio? Um pequeno séqüito vinha junto, cujos membros eram parecidos com aqueles sujeitos jovens de masculinidade duvidosa que Caravaggio tanto gostava de pintar. Eles pulavam de um lado para o outro e jogavam rosas por onde quer que aquela criatura viesse a passar. Então o portador do caduceu, fazendo vários rapapés e salamaleques para o pai dos deuses, disse-lhe: “Eis aqui o Cabeleireiro dos Deuses, conforme a vossa vontade.” Zeus agradeceu e pediu para que ele se aproximasse. Mal tendo chegado perto do pai dos deuses, ele não perdeu a oportunidade para falar: “Oie, meus fa-bu-lo-sos e di-vi-nos patrões! Eu estava tão atarefadinho, ai! Olha bem, hein?, tomara que esses divinos tenham me chamado por um motivo mui-to bom, se não vou rodar a baiana, viu? Vocês não sabem quem eu estava penteando agora pouco, é um babado! Ela estava vestindo...” O tonitruante interrompeu-o logo: “Tudo bem, ó embelezador de divindades, não diga mais nada. Chamei-te para que avalies qual...”

O Cabeleireiro interrompeu a fala de Zeus subitamente, estalou os dedos, chamou seu séqüito e lhe pediu para que pegasse escova, pó-de-arroz e rímel. Na velocidade de um relâmpago, lá estava o Cabeleireiro maquiando Zeus, que se debatia em seu trono de ouro. “Que se passa? O que estás fazendo?”, perguntava. “É que você está tão abatido, fabuloso...”, respondeu-lhe o maquiador de deuses. E continuou, enquanto os mancebos deitavam tanto pó no rosto do deus que uma nuvem se formava ao seu redor: “Acho que é muito trabalho. Já falei para colocar rodelas de pepino nesses olhinhos, ai, ai, ai! E esse cabelo! Venham, bambinos, vamos deixar esse deus glamuroso!” “Saiam para lá, fiquem quietos e me ouçam!”, disse o tonitruante, enquanto meio que às cegas arremessava alguns raios no chão, dois dos quais atingiram o bumbum de um pobre jovem do séqüito. Assim que a calma imperou, Zeus prosseguiu: “Como eu estava dizendo, chamei-te para que avalies qual ser dentre os que te apresentaremos é superior. Como nenhum deus quis ser árbitro desta disputa olímpica, julguei que apenas tu podias ser nosso juiz, tanto pela alta estima que nutrimos por ti, como pela imparcialidade e ousadia de teus pareceres, coisa que todos os numes concordaram.” Enquanto uma lágrima brincava de escorregar pela face do Cabeleireiro, a qual foi rapidamente secada por um dos jovens a fim de não estragar sua maquiagem, ele agradecia efusivamente por aquela honra: “Ai, que emoção louca, sinta meu coração palpitando, parece que vou ter um treco! Me segurem, bambinos...”, dizia. “Controla-te, ó maquiador supremo, e nos acompanhe”, ordenou Zeus.

Então aqueles três deuses e o Cabeleireiro, acompanhados por uma multidão de deuses, ninfas e outras criaturas muito legais, chiques e fabulosas, se dirigiram para um salão enorme, semelhante ao Panteão. Havia um palco no meio, com três panos roxos que envolviam cada um caixas enormes ou alguma outra coisa quadricular. Zeus chamou então Circe, que estava vestida com um maravilhoso vestido rosa brilhante (embora seu cabelo enorme estilo anos 60 fosse considerado por muitos démodé), pedindo-lhe que retirasse os panos que cobriam as criações. Ela então encostou os dedos indicadores nas têmporas e balançou a cabeça de olhos fechados, produzindo um som assaz brega. Eis que de repente os panos sumiram! Era possível agora ver cada uma das criações, dentro de cubos transparentes e adornados com motivos florais. Havia uma inscrição na parte de baixo dos cubos indicando o nome das criações (tudo em grego, evidentemente), mas sem a autoria. Uma banda regida por Euterpe tocava uma musiquinha janota ao fundo. Ah, eu já ia me esquecendo de dizer que lá de cima do óculo (eu já disse que o salão era parecido com o Panteão, certo?) uma luz bem amarelada esparramava-se bem em cima daquelas "obras de arte". Embora o espetáculo fosse meio kistch, e talvez exatamente por esse motivo, o Cabeleireiro estava muito empolgado, achando tudo “di-vi-no”, “um most” e “gla-mu-ro-so”. O séqüito batia palmas um tanto efeminadamente, mas não muito para os padrões olímpicos.

Zeus pediu para que a musiquinha cessasse e ordenou então que o Cabeleireiro começasse a avaliação. Todos estavam ansiosos. Ele primeiro foi olhar o touro. Colocou a mão em seu queixinho fino, olhou bem, deu uma, duas, três voltas ao redor do cubo e, abrindo seu portentoso leque e abanando-se efusivamente, deu seu parecer: “Ai, credo, que hor-ror! Está muito ruim, está muito ruim. Olha que coisa ridícula esses chifres. E olha onde estão os olhos! O bofe que criou esse bichão tinha de pô-los em cima dos chifres, (em ci-ma, captou?) porque aí, quando o touro abaixasse a cabeça para dar uma chifrada, ele continuaria olhando para onde estava indo.” Depois de dar uma risadinha discreta, porém abafada com sua luva de pelica, disse: “Nota dois pela falta de inteligência de quem a criou e um e meio pela feiúra da obra.” Alguns deuses deram uma risadinha, enquanto Zeus, com muita dificuldade, mantinha seu autocontrole. Foi então o Cabeleireiro olhar o homem. Observou-o com cuidado, retirando do bolso um daqueles óculos com uma pequena haste ao lado. Vez ou outra exclamava algo como “hm” e “ai”. Pediu em seguida para que abrissem o cubo a fim de “fazer uma avaliação mais completa”, segundo suas próprias palavras. Depois de apalpar por um certo tempo o homem (que acabou ficando muito vermelho por sinal), o Cabeleireiro emitiu novamente um parecer desdenhoso: “Tsc, tsc, tsc... Vocês parecem que não pensam, nos-sa!” Apontando o leque para o peito do homem, prosseguiu: “Colocaram o coração dentro desse peito cabeludo. Que burrice, santas! O coração tinha de ficar do lado de fo-ra, bem em cima da tes-ta (aqui ele apontava o leque para a testa do homem), porque aí a gente ia ver di-rei-ti-nho o que cada um é de verdade e não ficaria escondido nada de ruim. Nota dois pela falta de inteligência e sete pela voluptuosidade da obra. Se misturassem esse homem com aquele touro, ai, não ia ser um escândalo? Faltou um pouco de sofisticação aqui.” Prometeu estava furioso da vida, mas Epimiteu o ajudou a manter a calma. Por último ele foi analisar a casa. Já com um olhar de reprovação, mal tendo visto direito aquela obra, o Cabeleireiro começou a criticá-la: “Ai, meus di-vi-nos, o que não seria de vocês se não fosse meu ótimo gosto? Olha só essa casa, que coisa pa-vo-ro-sa. E se algum malvado se estabelecesse nas vizinhanças? A casa tinha de ter rodinhas para que o dono a empurrasse para longe, não é? Onde estão elas? Ai! Que falta de imaginação! Só gentinha ia fazer um negócio tão off. Nota dois em todos os quesitos. Agora chega de cafonice, né? Olhem que bela peruca eu fiz, essa sim é mais bonita que tudo isso aí. Esperem até eu mostrar meus vestidos de noiva para vocês.” Palas Atena mordia os lábios com fúria cega.

Começou um falatório enorme no salão. O Cabeleireiro, enquanto isso, mostrava as perucas e os vestidos de noiva que havia criado, dizendo que seriam a última moda no Olimpo. Não cessava de dar nota dez para suas próprias criações, às vezes até onze. Aquilo era demais para a paciência de Zeus. Completamente indignado, Zeus potentíssimo segurou o Cabeleireiro pelas pernas e o virou de ponta cabeça. O séqüito ensaiou um “ooooh”, que não teve vida longa por causa de suas gargantinhas frágeis. Por estar de cabeça para baixo, a peruca do maquiador dos deuses caiu, causando risadas entre todos. Zeus o levou assim até a beirada do Olimpo, acompanhado pela multidão de deuses e demais criaturas legais, chiques e fabulosas. Enquanto caminhava, disse-lhe: “Ó besta desavergonhada, fomos nós deuses que criamos tudo aquilo. Eu, o touro; Prometeu, o homem; Atena, a casa. Mas tu, além de ousadamente nos criticar cheio de inveja, ainda por cima elogiaste tuas perucas e vestidos de noiva acima de nossas obras. Vejamos se continuarás cheio de garbo depois que eu te arremassar para fora do Olimpo.” Então o pai dos deuses, ignorando as súplicas do infeliz, arremessou-o bem longe, fazendo o mesmo com todo o seu séqüito. “Isso dói, isso dói...”, dizia Hefesto, fazendo caretas de dor só em pensar naquela queda.

Vários aplaudiram aquela sábia decisão e disseram: “Viva el-rei Zeus!”, embora outros lamentassem o fato de a partir daí não estarem mais atualizados com a última moda. Então Euterpe voltou com a banda e começou outra musiquinha janota. Dionísio novamente apareceu, desta vez nu, balançando seu bumbum e fazendo caretas. E novamente começou outra discussão entre os olímpicos.

Epílogo

O Cabeleireiro dos Deuses e seu séqüito foram arremessados tão longe e com tanta força que foram parar no Tártaro, fazendo um estrondo tremendo na queda. Hades, acordado com o barulho, saiu de pijamas para ver o que foi aquilo. “De novo aqueles porcalhões do Olimpo jogaram entulho aqui. Será que pensam que meus domínios são um lixão?”, ele resmungava, enquanto chamava Perséfone para começar a limpeza. “Pelo menos da última vez deu para reaproveitar o ar-condicionado que jogaram fora”, respondeu-lhe a esposa, com creme no rosto, amarrando o roupão e saindo com o esposo. Mas para a surpresa do casal infernal, eles se depararam com aquele singular grupo. Mal o ex-maquiador dos deuses observara enfim onde estava e vira aquele casal, balançou negativamente a cabeça e começou a dizer: “Que lugar mais feio, tão down! Que roupinhas ca-fo-nér-ri-mas a de vocês! E que carinhas são essas, hein?” E levantando-se com um certo esforço, ajudado pelos jovens, disse-lhes: “Vamos, bambinos, temos muito trabalho!”

Hades e Perséfone se entreolhavam confusos.

Friday, October 21, 2005

Tuesday, October 18, 2005

Hoje é o dia de...

Hoje é dia 18 de outubro. Para quem não sabe, hoje é um grande dia. Grande e forte, pois é dia de ninguém mais, ninguém menos, que do estivador. Não, leitor, não é engano: os estivadores têm mesmo um dia próprio. Vamos bater palmas com nossas luvas de pelica em homenagem aos trabalhadores braçais, sem os quais não viveríamos tão bem nem eu tomaria um sorvete napolitano delicioso que está me esperando na geladeira.

Hoje é dia também do pintor e do médico. Não sei se o sujeito que bolou essas "festividades civis" achou que havia alguma ligação entre aquelas três profissões, mas nada me vem à cabeça agora, até porque são 5h14, hora em que tradicionalmente meu cérebro está acomodado no travesseiro.

Há dias mais lindos. Por exemplo, dia 24 de Junho é dia mundial dos discos voadores. Dia 22 de Setembro é da banana e, perigosamente próximo, dia 20 é o dos gaúchos. Dia 5 de Novembro é ocasião para prolongarmos Finados, já que é dia do cinema brasileiro. No meu aniversário, 26 de Abril, é dia do goleiro e do engraxate. Em Dezembro existe uma data bem legal: a do alcoólatra recuperado, dia 9 (a do alcoólatra teimoso é uma festança ao longo do ano).

Além da esquisitice em si dessas datas, o mais estranho é que existem dias que não são de nada. Como um calendário civil tem brechas? Existe até dia do frevo (14 de Setembro) e do numismata (1o de Dezembro), ora bolas! É claro que poderiam preencher essas épocas, se quisessem. Caso falte imaginação, posso dar algumas sugestões:

1) Dia do Sovaco (6 de Dezembro);
2) Dia Mundial da Coceira (20 de Fevereiro);
3) Dia do Beijo Francês (5 de Abril);
4) Dia da Seleção Brasileira (22 de Agosto);
5) Dia da Mulher Pelada da Internet (9 de Março, depois do dia internacional da mulher, dia 8);
6) Dia do Macaquinho Assanhado (11 de Novembro);
7) Dia destinado à imaginação do leitor (qualquer dia).

Vou sempre aqui neste blog comemorar essas datas que criei (estamos próximos do dia do Macaquinho Assanhado já).

Fico pensando no objetivo do autor daqueles dias, mas acho que para loucos qualquer razão basta. Vai ver era um sujeito que nada tinha para fazer às 5h29 de lua cheia. Bem que dizem que intelectuais vivem no mundo da lua.

Ainda sobre o que houve no Colégio de Aplicação da UFRJ

Em nenhum país democrático o cerceamento de opinião, e ainda por cima de modo hostil e descarado, é considerado digno. E quanto mais preza um país pela liberdade, mais cuidadoso ele se torna ante a manutenção desse direito tão basilar de qualquer nação moderna.

Muito mais grave é quando buscam cercear um professor de filosofia, sob a alegação de que seus ensinamentos estão em choque com o consenso geral. Ora, se tal afirmação é, na minha opinião, problemática já dentro da própria Igreja, imaginem então em um estabelecimento de ensino!

Ora, a qualidade do ensino se dá na medida em que ele é verdadeiro, autêntico e radical. Em filosofia são essas algumas de suas característcas mais importantes. Se uma instituição alega que isso fere o consenso, pior para ele. Não se faz filosofia sem crítica do saber. Se uma escola resolve abrir uma cadeira de filosofia, que arque com as conseqüências.

Independente de ser meu amigo, a expulsão do Prof. Francisco Peçanha do Colégio de Aplicação da UFRJ é uma afronta não só aos princípios básicos de liberdade de expressão como da Filosofia (com efe maiúsculo mesmo). Se ele ensinava bem ou mal, isso não importa na discussão: o fato é que ele foi expulso simplesmente por dizer uma série de coisas que, na visão do Colégio e dos alunos-massa, era por demais "politicamente incorreta" e/ou imprestável (como Aristóteles, Sócrates, Platão e os Pré-Socráticos, já que não cairia no vestibular, segundo um dos alunos...)

Antes de mais nada, tenho de dizer uma coisa ao leitor: não é minha intenção esquentar a polêmica, mas apenas expressar minha estranheza quanto ao fato. Não conheço os pormenores da história, porém o pouco que sei já me deu vontade de escrever a respeito.

Ortega y Gasset dizia que as massas, quando agem, só o fazem violentamente. Pois até agressões físicas o professor sofreu. A Direção não só nada fez de modo enérgico como demitiu o professor, dando aos alunos, retroativamente, razão.

O Prof. Francisco identificou naquela escola as conseqüências da pedagogia de cunho marxista. Tanto a reação da Direção quanto a dos alunos-massa, para mim, não deixam dúvidas.

Tenho amigos que pensam em dar aulas no segundo grau de filosofia. Imagino que se eles realmente quiserem dar uma aula decente, terão de arcar com coisas desse tipo (na melhor das hipóteses, uma indiferença geral). Talvez professores de outras disciplinas passem por coisa semelhante. Está cada dia mais difícil disfarçar a intolerância nas escolas e faculdades.

PS - Há na comunidade "Escola sem Partido", no Orkut, relatos sobre o ocorrido. E no texto "Diferença Radical", de Olavo de Carvalho, há uma pequena menção ao assunto.

Friday, October 14, 2005

Aplicação de selvagens e falta de beleza

Dia desses eu estava me lamentando pelo fato de não haver mais aquelas aventuras em território inóspito e repleto de selvagens de antigamente, quando um amigo meu me relatou suas agruras no Colégio de Aplicação aqui do Rio de Janeiro. Ofensas, ataques da turba, relaxamento moral, covardia da direção, tudo isso houve. Pois então eu pensei cá comigo: na falta de índios do Velho Oeste, bárbaros citas, dervixes furiosos ou repugnantes canibais, temos os nossos selvagens estudantes do secundário (sem contar os do ensino superior) - e por extensão seus rudes mestres.

Quando uso a expressão "selvagem", apenas constato o fato da civilização não ter se aprofundado na alma de boa parte dos indivíduos que está na escola - que, ironicamente, em teoria serve para lhes ensinar seus rudimentos. Aliás, não digo algo muito diverso do próprio Ortega y Gasset quando ele se referia ao barbarismo moderno. Quando você tem apenas as noções superficiais de civilização, quando você não a tem radicalmente em tua vida, então você é um bárbaro, independente da espessura da casca de saber que haja em ti.

O mais bizarro de tudo é que essa selvajaria é tão disseminada, tão reproduzida, que não seria loucura nenhuma imaginar que ela, como aliás costuma haver em qualquer tipo de loucura, é metódica. É um fato presente demais para ser um simples acaso: daí essa sua característica moderna - e "técnica". Há mesmo professores e teóricos que dão seu sangue em prol dela. Pois como explicar que normalmente, ao contrário das expectativas de qualquer indivíduo minimamente sensato, o sujeito saia mais burro, perigoso e selvagem da escola que antes de ter entrado? Como explicar que num tempo em que tantos freqüentam escolas, nunca houve gente mais tola e sem-educação quanto agora? Não era para ser precisamente o oposto?

Vou me explicar melhor. O problema não é a nossa notória indolência, nem o nosso temperamento cordial, nem o nosso caráter frívolo e/ou festeiro. Neca de pitibiriba. Se essa fosse a questão, então ninguém olharia para o passado a fim de relembrar dos nostálgicos tempos em que, segundo os mais velhos, as escolas eram boas (ainda que sempre achemos o passado melhor): sempre teria sido como hoje em dia. Mas não é verdade. Essas loucuras e desordens são muito claramente atuais.

Por que as coisas estão desse modo?

Resposta: não sei dizer. Mas que é muito esquisito, é.

Porém ao menos essa situação vexatória serve como experiência interessante, pois assim dá para termos uma pálida idéia do tipo de coisa que os missionários portugueses tiveram de enfrentar durante a catequização dos índios, ou assim podemos imaginar como se comportavam as tribos germânicas pré-romanização e pré-cristianismo. A substância, definitivamente, é a mesma. A originalidade é o fato de ser sistemática a transmissão da loucura, como uma doença contagiosa. Numa palavra: sistematicamente idiota. E tem gente que até se orgulha disso...

***

A Cris, do blog Ego Confession, disse: "Cada dia que passa eu tenho mais vontade de me enfiar num filme do Fred Astaire ou num dos desenhos dos Jetsons." Ela não é a única... Eu mesmo já me imaginei cerca de cento e trinta e duas vezes em um mosteiro. Não haveria monges dançando na chuva ou pilotando carros voadores, mas é, no meu estranho ponto de vista, algo equivalente.

Aliás, o ambiente ao nosso redor é projeção de nosso espírito. Mesmo quando as circunstâncias nos são desfavoráveis é possível fazer o bem. A arte, por exemplo, não tem a sua medida de grandeza no fato de vencer a resistência da matéria inerte a ponto de transformá-la em coisa quase espiritual, uma espécie de reflexo da alma do artista? E que é o senso poético senão uma forma de transcendência da precariedade deste mundo? Ora, onde faltam o senso poético e a arte o caos e a matéria bruta imperam. Sendo assim, pelo menos a minha cidade, o Rio de Janeiro, está assim tão caótica e brutal (numa palavra: feia) porque tem faltado a nós cariocas um mínimo senso poético e artístico. Nosso espírito tem comido muito pó ultimamente.

Onde faltam Astaires, abundam Cidades de Deus.

***

Um assunto está relacionado intimamente ao outro, porque onde impera a selvajaria, falta a beleza. Se nosso espírito é selvagem, como nosso ambiente poderá ser belo? Não, pelo contrário: é essa feiúra de doer que costuma nos agredir assim que colocamos nossos pés para fora de casa. Melhor dizendo, nem dentro de nossas casas estamos a salvo. Basta ligarmos a tv ou o rádio para sermos chicoteados pelo mau gosto. Ou mesmo basta irmos até a janela e nos depararmos, atônitos, com um vizinho enorme de gordo fazendo polichinelo ao som de música sertaneja. Eis o bravinho novo mundo.

Não sei dizer qual a solução para um mal tão enorme. Da minha parte, sigo o lema do Chapolim Colorado: "Siga-me os bons!" A imitação dos bons é um fruto que certamente dará bons resultados. Isso implica em saber escolher. Qual é o critério? Talvez experimentando de tudo e ficando com o melhor. Não é assim a nossa vida? Então nada melhor que nos educarmos da mesma maneira que vivemos. É ao menos a minha idéia e o que tento fazer, se bem que toscamente.

Wednesday, October 12, 2005

Há moças que não conhecem Johnny Depp

Eu ia escrever sobre a razão do mundo ter sido criado e qual a finalidade última do homem, porém algo mais urgente me incomoda, algo que desnorteou meus padrões a respeito de garotas e que vale a pena registrar. É que conheci um grupo delas que nunca, jamais ouviu falar em Johnny Depp (na melhor das hipóteses "se lembrava vagamente").

Johnny Depp! Para mim, toda garota (menos a minha amiga Rosselline, sabe-se lá Deus o motivo) adorava aquele sujeito. E para minha professora de inglês também. Tanto é que, durante a aula de sábado passado, mostrando a foto do ator, perguntou só para as garotas quem era ele. Silêncio. Eu, que havia dormido uma horinha apenas na noite anterior, achei que estava sonhando. "Mas vocês não lembram quem é ele?", ela perguntou. Juro que vi três pontinhos saindo da cabeça de cada uma das moças. "Mas não lembram dele em nenhum filme?", foi a outra tentativa da professora. Nada. Sobrou para mim a tarefa hercúlea de responder, até porque o outro homem da sala era um senhor de idade, o qual, presumivelmente (e depois admitido pela sua própria boca), jamais havia visto tal gajo. "É o Johnny Depp", respondi. As garotas riram, porque antes a professora disse que todas elas saberiam responder. "Pronto, já vão achar que sento na mariola", pensei. Sorte que eu estava com a barba por fazer.

A professora tentava lembrar alguns de seus filmes, mas não conseguia. Lá fui eu ajudar: "Do Inferno, Piratas do Caribe, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça..." Alguém subitamente associou nome e imagem e lembrou de A Fantástica Fábrica de Chocolates.

É verdade que não contribui em nada para a inteligência saber quem é aquele cara. Por outro lado, estou tão acostumado a ouvir que aquele ator é lindo, maravilhoso, etc, que estranhei muito quando um grupo de garotas nem suspeitou quem ele era pela foto. Talvez a partir daí passem a compor o longo fã clube de Johnny Depp, não sei.

PS - Pelas minhas contas, nesses últimos seis anos fui conhecendo, cada vez mais admirado, um pouco melhor as mulheres. Marcos atrás de marcos fui conquistando, como um alpinista que só a duras penas escala o monte imenso e difícil. É claro que meus anos de formação na matéria, dada a sua natural complexidade, ainda estão muito longe de terminar, porém, quando olho para trás, inevitavelmente acho graça dos meus antigos pensamentos a esse respeito. Mas o evento do sábado passado em nada se inclui profundamente nisso. Foi apenas algo curioso.

Sunday, October 02, 2005

Autores impossíveis de encontrar ou que quase ninguém conhece

Aproveitando o gancho do outro post, aproveito para dizer que há uma classe de autores aqui do Brasil cujas obras simplesmente estão no limbo, ainda que sejam importantes e provoquem alvoroço só de serem mencionados.

Façamos eu e você, bondoso leitor, uma pequena digressão. A Idade Média: não é segredo para ninguém a dificuldade que havia para se conseguir algum livro naquela época. Seja São Francisco de Assis, por exemplo. Aquele santo homem não tinha acesso a toda a Bíblia. Ele a tinha em fragamentos e os compartilhava com seus companheiros, de modo que todos pudessem realizar a piedosa leitura do Novo Testamento em pedaços, mais ou menos como fez há muitos séculos atrás aquele outrora legionário e posteriormente santo, São Martinho de Tours, ao rasgar seu manto para dar a metade ao pobre. Pelo contrário, hoje não precisamos em geral passar por tais dificuldades. Aliás, eu mesmo, enquanto escrevo essas linhas tortas, tenho uma bíblia enorme numa prateleira atrás de mim, e me dou ao luxo de ter uma outra, protestante, ali ao lado, e sem contar a Vulgata e a Bíblia de Jerusalém que estão aqui no meu HD. Não faltam os meios para milhares de publicações, mas disso decorre a superabundância de porcarias. Chega a ser incrivelmente pecaminosa e despudorada quantidade de publicações que hoje há, uma espécie de hybris literária! Mortimer Adler dizia que dos milhares de livros que são atualmente publicados, pouca coisa prestava mesmo para uma simples leitura, e menos ainda para outras subseqüentes. Gustavo Corção dizia com outras palavras a mesma idéia: há livros demais no mundo.

Porém há poucos, inacreditavelmente poucos, do próprio Gustavo Corção. Quem quer que goste daquele autor e resolva caçar suas obras terá a sensação de estar subitamente de volta à Idade Média. Por que eu digo isso? Será que eu fiz uma alusão sutil ao seu livro "O Século do Nada", onde em certa altura ele nos diz que o século XIII foi o mais glorioso da história? Pior: será que eu estou na verdade sutilmente dizendo que ele é um retrógrado, um reacionário? Nem tanto nem tão pouco. O problema é justamente o mais básico, é encontrar seus livros.

Alguns deles podemos encontrar sem problemas, como "Lições do Abismo" e "A Descoberta do Outro". Outros são mais complicados, como mulheres que fazem questão de preservar sabe-se lá que mistério, como "As Fronteiras da Técnica" e "Conversa em Sol Maior". Mas há aqueles que são uma espécie de Graal. Me refiro especialmente a três: "As Descontinuidades da Criação", "Dois Amores, Duas Cidades" e o já citado "O Século do Nada". Deus do céu, onde eles estão?

Os dois primeiros são, se não me falha a memória, da década de sessenta; o último é dos idos de setenta. Suspeito que há apenas uma miserável edição de cada. E o pior de tudo é que naqueles três há uma espécie de compêndio da mais vigorosa crítica filosófica (e da civilização moderna) feitas pelo Gustavo Corção, de maneira que não lê-los equivale a conhecer suas mais vigorosas idéias um tanto indiretamente, apenas por deduções. É uma lacuna terrível. Daí que a pergunta que naturalmente brota desse fato seja a seguinte: se são livros tão importantes, e mesmo de alto nível, por que raios não são reeditados? Minha resposta: não sei. Ou melhor, desconfio, mas é um assunto para outra ocasião.

Não menos bizarra é a situação do Olavo de Carvalho. Para alguém que é tão conhecido nos meios intelectuais tupiniquins, é no mínimo bizarro o fato de praticamente todos os seus livros estarem esgotados há tempos. Sobre isso me vem à cabeça um bordão: "quem comprou comprou, quem não comprou não compra mais". Talvez com a ilustre exceção de "O Jardim das Aflições", o leitor que quiser buscar pelos livros do filósofo acabará infelizmente chupando o dedo. Ora, isso acaba criando uma situação paradoxal: até que ponto ele é conhecido, se todos os seus livros são tão difíceis de se achar? Logicamente a pergunta vale também para Gustavo Corção.

Tanto Gustavo Corção quanto Olavo de Carvalho acabam se tornando, dadas as circunstâncias "medievais" de suas publicações, escritores de "dupla face": há aquele que o público em geral conhece pelos artigos de jornal ou pelo ouvir dizer - que é o escritor "exotérico" - e há aquele conhecido por um reduzido grupo de estudantes e estudiosos que tem acesso a todas as suas obras (ou pelo menos às principais) - que é o escritor "esotérico". Levando-se em consideração que tanto um quanto outro não possuem nenhum tipo de ensinamento secreto, então é claro que ambos viraram uma espécie de escritor de "dupla face" não porque quiseram, mas por causa da reação hostil que de uma maneira ou de outra provocaram e ainda provocam em nosso país. Sim, hostis, porque não é segredo para ninguém o tipo de hostilidade que ambos receberam, o que torna mais absurda a questão, pois se quase ninguém conhece de fato suas principais idéias, por que tanta reação animalesca e desproporcional? Por que tanto azedume, a ponto de por exemplo no Orkut criarem várias comunidades insultando o filósofo? Por que várias pessoas, quando se referem ao Corção, fazem caretas? Sendo pessoas tão díspares e de tão variadas influências intelectuais, o que ambos têm que desagrada a tanta gente?

Sim, meus amigos, há um motivo em especial, o qual engloba ainda muitos outros autores - e não necessariamente nacionais. Dei apenas como exemplo aqueles dois. Tal motivo está além do já notório problema do volume incomensurável de lixo que sai do prelo, inunda as livrarias e deságua na mente do infeliz leitor, devastando sua inteligência e finalmente criando uma barreira de entulho entre ele e as obras de real valor. É verdade que isso faz parte do problema. Mas não será agora que tratarei de buscar uma explicação para esse desconcertante fato. Que você guarde apenas o seguinte: o que era uma deficiência (em certo sentido uma feliz deficiência!) da Idade Média, hoje é praticado de forma metódica aqui no Brasil, de maneira que uma série de valiosíssimos autores são arremessados no limbo, enquanto superabundam outros de duvidosa procedência e de má catadura. E me calarei sobre o tipo de formação que conseqüentemente recebemos.

Saturday, October 01, 2005

Em busca de "Dois Amores, Duas Cidades"

Peguei meu capuz e minha espada e saí a buscar pelo meu prêmio, "Dois Amores, Duas Cidades". Ô livro difícil de encontrar, já faz anos que procuro, procuro... e nada.

Pois se o leitor deduziu, a julgar o início deste texto, que eu o encontrei, está enganado! Novamente minha busca foi infrutífera, se bem que, da mesma forma que já dizia o bordão "Deus escreve certo por linhas tortas", acabei encontrando outros livrinhos que parecem ser interessantes.

Na verdade, acho divertido sair em busca de livros em sebos, mesmo se o lugar parecer mais uma fachada para algum tipo de atividade criminosa. Tinha um sebo assim na esquina de uma rua aqui perto mas que esqueci o nome - é a da sede da Polícia Civil - com uma outra rua que também não lembro como se chama, embora eu passe por ali com uma freqüência absurda. (Tenho um problema terrível com nomes de rua, embora eu saiba, por experiência, como chegar em tal e tal lugar, como os ratos e demais criaturas.) O lugar era parcialmente devastado e os indivíduos ali dentro tinham má-catadura, além de, logo na entrada, ter sentado um traveco velho. Que lugar esquisito. Mas isso foi há anos, porque hoje em dia aquilo virou um sebo decente - onde aliás comprei uns dois livrinhos.

Já esquadrinhei o Centro da cidade - talvez exceto um ou outro lugar que eu tenha me esquecido - sem encontrar o dito livro. Mas a cidade é grande, há vários e vários sebos - ou supostos sebos - por aqui. Minha cruzada então continuará, pelo menos até eu voltar a ter dinheiro, pois gastei tudo hoje.

Ah sim, eu já ia esquecendo o propósito deste post: se alguma alma caridosa souber onde estão vendendo "Dois Amores, Duas Cidades", de Gustavo Corção, dois volumes, editora Agir, por favor acene de modo educado. Se for leitora caridosa e solteira, me caso na hora. Se leitor, um muito afetuoso porém não efeminado abraço já basta. Bom dia.

Thursday, September 22, 2005

Conversa fora

Olá, caro leitor, como vai? Andou lendo muito? Você ouviu alguma música interessante? Quer contar alguma coisa? Mas me conte depois, pois embora eu não tenha muito assunto, quero divagar um pouquinho.

Hoje acordei com uma notícia extremamente grave: senhor de meia-idade romeno fratura o pinto depois de se distrair vendo a bela esposa de 25 anos lavando a roupa. O senhor carregava um pesado saco quando se excitou vendo a mulher. Então sem querer deixou o saco cair em cima do pinto, que quebrou. “Não pudemos fazer muita coisa”, disse o médico. “Ele poderá usar o pinto para tudo, exceto relações sexuais”. (Aliás, diga-se de passagem que já escrevi uma pequena história parecida.)

Que azar. Parece que ele tinha uns 50 e poucos anos. É equivalente a ganhar na loteria e logo em seguida ter um enfarte. Que será daqui em diante daquele casal? Se pudesse, eu escreveria um e-mail para eles, afinal de contas nós homens temos entre nossa classe uma espécie de elo empático em assuntos de tão grave (e dolorida) natureza. Se quem me está lendo for homem, ótimo, não preciso me justificar. Se mulher, faça um teste: chegue para algum homem e conte essa história. Na hora, garanto, ele, se for mesmo homem, de alguma maneira sentirá uma pontada de dor também, fazendo mesmo alguma caretinha.

Esse tipo de infortúnio é similar ao que havia com George Constanza. Não, ele não vivia quebrando o pinto ou coisa parecida, mas freqüentemente dava um azar monumental quando tudo parecia bem. O fracasso era apaixonado pelo pobre amigo de Seinfeld. Tudo dava errado. Com certeza aquele sujeito, por tantos funestos acontecimentos contra ele, como se o mundo estivesse contra si mesmo, com certeza ele devia ser gnóstico. Seinfeld era judeu, Elaine não sei, e Kramer... Bem, esse acho que nem Deus explica.

Infelizmente esse assunto que escolhi para abrir este texto é como o sexo: não dá para inventar muito e variações demais podem causar algum mal. É dessas coisas que dão tédio. Mas por falar nisso (em tédio, não em sexo), senti um súbito cansaço com relação ao Orkut. Talvez seja a overdose – embora varie de objeto para objeto –, porque tenho passado tempo demais por lá. Basicamente as mesmíssimas pessoas que conheço fazem parte da minha lista de contato. Logo, por que diabos fico entrando lá? Certo, as comunidades... Estou em mais de cem, o que não é nada assombroso, já que vi com esses olhos aqui que a terra há de comer gente que está em mais de 500 e até mesmo em 999 – o diabo de ponta-cabeça, segundo interpretação “midraxiana” que acabei de fazer. (Quem sabe não viro mestre judeu? Por sinal, certa vez, no Saturday Night Live, um comediante estava andando de um lado para o outro quando quase tropeça num fio elétrico. Ele: “Nossa, quase viro judeu”. Vi faz anos aquilo, mas até hoje fico rindo.) Também vi o perfil de um sujeito gordinho, dos seus 40 e poucos anos e que estava em mais de 500 comunidades dedicadas ao Chavez et magna caterva. Até criaram uma comunidade para o infeliz.

Eu criei uma também: “Saudades da Inquisição”, onde há uma descrição explicando o motivo do nome e tal, mas que ainda assim uma miríade de antas entra para perturbar, ofender e cobrar por explicações. Até com o Holocausto comparam a Inquisição. Por essas e outras dá vontade de ser professor, só para ensinar para uns poucos que a Inquisição estava muito, mas muito longe de ser como o Holocausto, que a Revolução Francesa por exemplo estaria talvez mais próxima disso, etc, etc, etc. E dá vontade também de virar professor só para tentar explicar alguma coisa que valha sobre a Idade Média. E é melhor virar professor que purpurina, muito embora minha vida não esteja pendendo nem para um lado nem para outro. Mas estou fugindo do assunto, ou ele está escapando de mim. Assunto, vem cá, vem.

Há comunidades legais no Orkut, umas bem engraçadas. Mas pude notar, pela “Gilmore Girls Brasil”, que a quantidade de garotas que gostam daquele seriado é enorme. Será que é um seriado-mulherzinha? Que seja, é de boa qualidade, gosto muito. Há outros seriados que gosto bastante, como O.C., Smallville, etc. Detesto aqueles do tipo realidade-escrotíssima, com um de polícia que passa na AXN, ou aqueles com gente sendo dissecada ou hospitalizada. Se eu quiser ver um negócio horroroso desses, basta eu andar aqui pela Rua Mem de Sá, onde tem uma churrascaria entre um IML e um INCA, sem contar os travecos e prédios com aparência de Dresden após o bombardeio aliado. É uma das ruas mais horríveis que já vi. Aliás, já divaguei cá com meus botões várias vezes sobre aquela rua, mas deixo minhas opiniões por enquanto dentro do saco.

Por outro lado, voltando ao Orkut, além daqueles reencontros com fulano que há milênios não vemos e que provavelmente não voltaremos mesmo a encontrar sem ser por lá, e sem contar uma ou outra agradável surpresa – afinal de contas sempre conhecemos gente legal –, o que achei mais legal foi ter encontrado o profile do Olavo de Carvalho. Fiquei desconfiado, achando que era falso, mas depois pude ver que não. É legal visitar seu scrapbook. Infelizmente até lá aparecem retardados insultando-o, mas o filósofo nunca deixa nada passar, sempre insultando na mesma medida, o que é sempre engraçado. Eu só soube que ele também usava o Orkut quando uma vez, numa das comunidades dedicadas a ele, durante uma discussão acerca de um artigo seu sobre o darwinismo, e em meio a uma polêmica, ele apareceu e começou a postar um monte de textos indicando as fontes em que se apoiava para dizer o que disse, além de sair refutando todo mundo. É, Sócrates estava perfeitamente certo quando dizia que era um espetáculo interessante a refutação de supostos sábios: não é à toa que O Imbecil Coletivo (tanto o primeiro quanto o segundo) e vários de seus artigos fizeram e fazem com que o Olavo de Carvalho tenha tantos admiradores – e inimigos, claro, claro. É uma leitura divertida e séria ao mesmo tempo, embora a obra do filósofo seja muito mais extensa que sua parte polêmica.

Bom, chega de divagações por ora. E ótimo dia, leitor, adeus. Ou melhor, me conte o que leu, que música ouviu, o que houve contigo. Sabia que adoro dormir de madrugada? Não? Só espere um minuto para eu pegar o cafezinho. Fique à vontade.

Sunday, September 18, 2005

O início da piada

Todo mundo sabe que um dos principais personagens de qualquer piada de português deve se chamar Manoel, embora Joaquim seja uma variação ou sidekick. E todo mundo sabe que tanto um quanto outro se destacam pela sua absoluta paspalhice.

Muito bem, tive hoje um insight. Todo mundo diz que o Brasil é uma palhaçada, que é uma piada, etc. Não é para menos: nossa república foi fundada por ninguém mais ninguém menos que um Manuel: o Manuel Diodoro da Fonseca. Aquele ilustre senhor não era português, mas tenho certeza que percebeu que bobajada fez e onde se enfiou, já que em um mísero casal de anos pulou fora da presidência. (E olha que nem fiz menção à célebre Proclamção da República, onde dizem que Manuel teria tirado o chapéu e gritado sinceramente: "Viva o Imperador!")

Então a nossa história republicana poderia começar mais ou menos assim:

- Certa vez, Manuel resolveu fundar uma república no Brasil...

Sunday, September 11, 2005

Quem quer ficar nu?

Meus queridos e poucos leitores, já faz um tempinho que penso no seguinte: a vida intelectual é equivalente a ficar peladão numa avenida movimentada.

Ora, mais que o corpo, o nosso mais profundo retiro é nossa própria mente. Só Deus sabe o que cada um realmente pensa. Daí que revelar nossas idéias seja sempre um espetáculo um tanto quanto desconcertante, a menos, é claro, que estejamos bem desavergonhados ou nos comportemos como Adão e Eva, que viviam nus sem saber. Mas o desafio é, tendo comido a maçã da autoconsciência, permanecermos corajosamente nus.

Porém me permitam os quatro amigos leitores uma pequena digressão. Não que eu tenha um belo conhecimento do assunto, mas acho estranho imaginar que a mente e o corpo estejam radicalmente separados. Nesse sentido, apelo às sábias e filosóficas palavras de Drago no Rocky IV: "Se morrer, morreu". O sujeito só voltará no Dia do Juízo Final. Por acreditar nessa grande união, acho que a defesa da intimidade da alma está relacionada à defesa da intimidade do corpo. Isso porque não somos criaturas descarnadas: o que se passa na alma tem reflexos no corpo e vice-versa. Mas notem bem que não fundamento nada porque são apenas impressões minhas. Deixemos então para lá.

Quando o intelectual (seja lá de que ramo for: escritor, cientista, etc) se dá conta de que está, de certa maneira, dando a cara a tapa, surge logo um dilema: prosseguir até as últimas conseqüências ou nunca mais se distinguir de todos, tornando-se membro indiscernível d'"a massa", no máximo um bajulador do povo, um vendedor de feira? Percebam que me refiro ao próprio ofício do intelectual como algo totalmente diverso do comum das gentes, algo que o torna a um só tempo esquisito e transparente, vulnerável, uma criatura singular.

Darei um exemplo de cada atitude.

Pensem vocês nos grandes tempos da Grécia Clássica, onde todo intelectual é de alguma forma cidadão daquela pólis que se tornou eterna para nós. Naqueles idos surgiu uma raça nova de homens. De repente começaram a questionar tudo o que havia entre o céu e a terra, e mesmo o que havia no céu e debaixo da terra. Nada lhes escapava. Todavia, até porque se embriagaram um pouco com suas próprias e estupendas descobertas, entraram em choque com sua própria cultura, com seu próprio povo, sendo então vistos com desconfiança. O famoso Protágoras, no homônimo e maravilhoso diálogo de Platão, chegou a dizer que ele era o único que tinha coragem de se autoproclamar sofista. O termo grego que se ajusta bem a isso tudo é a palavra hybris, que quer dizer desmedida. Pois bem, toda aquela saga humana parecia descambar numa terrível hybris, uma desmedida ambição que parecia não só desconhecer os limites da humanidade como também a menosprezava. Isso era, do ponto de vista antigo, um crime de impiedade. Como se isso tudo já não bastasse, Sócrates teve a "audácia" de descobrir um novo mundo, o mundo interior, afirmando ao mesmo tempo que em nome de sua missão divina jamais cessaria de buscar a verdade, mesmo se terrivelmente ameaçado. Tudo culminou com a sua pena de morte. Ainda assim, aquelas conquistas foram passadas a seus sucessores imediatos, notadamente Platão e Aristóteles.

No extremo oposto temos uma época que morreu há pouco, o século XX. Longe de vermos em tão grande escala homens dispostos a enfrentar a fúria da multidão, armados contra os ataques do mundo, como diria Kleist, o que houve foi, pelo contrário, a revanche d' "a massa". De repente, os intelectuais sentiram não apenas vergonha, mas nojo de si mesmos. Todo seu afazer parecia estúpido e sem sentido. Necessitavam de justificativas segundo o que eles mesmos imaginavam ser o "espírito do povo" ou "a justiça dos oprimidos". Então, na mais perturbadora reviravolta de valores de todos os tempos (mas que teve ensaios sangrentos desde 1789), os intelectuais começaram a se suicidar, blasfemando contra si mesmos, em arroubos incríveis de paroxismo delirante. Esses senhores tomaram para si a estranha missão de defender a justiça, em nome do povo, contra qualquer um que ousasse se elevar dentre os demais. Em muitíssimos casos, como no comunismo e no nazismo, houve mesmo perseguições violentíssimas, prisões em massa, genocídios, etc. Aquela casta era vista como inimiga, podre e corrompida. Consta que o gordo Marechal-do-Reich Göring certa vez disse: "Cada vez que ouço falar em Bildung [formação, no mesmo sentido de paidéia] saco o meu revólver". Nunca foi tão difícil ser intelectual como no século passado (e, por que não?, também nesse começo de século).

Infelizmente a casta intelectual de nosso país constantemente dá uma série de pavorosas demonstrações de temor e tremor ante o seu próprio ofício, preferindo bajular (numa estranha inversão da hybris) "a massa" enquanto envenena seu afazer próprio. Não foi à toa que chegamos a ter o presidente mais tolo de nossa história, amplamente escorado pela nossa fina flor cultural.

Contudo, é preciso explicar um pouco melhor esse problema na vida intelectual que é "a massa", e por que pus esse termo entre aspas. Mas pertenço ao gênero humano, tendo de prestar contas ao animal faminto que compartilha minha natureza. Ai, a fome. E sem contar o cansaço: ser espírito de luz talvez tivesse suas vantagens, embora parece um tanto aboiolado... Aliás, a julgar o céu, parece que hoje será um dia esplêndido. Tenham um bom dia.

Saturday, September 10, 2005

Sunday, September 04, 2005

Homenagem aos desinformados

O marido é interrompido em sua leitura pela esposa:

- Amor, você soube do Katrina? Que arrasou New Orleans?

- "O" Katrina? É drag queen? Ouvi falar. Causou furor em New York.

- Não, amor, o furacão!

- Aquele time do sul? Qual é mesmo o nome? Ferroviário?

- Ai, amor, esquece, vai... Continua lendo isso aí. Que homem mais desinformado!

Então ele volta a ler: "Maria Stuart", de Schiller.

Saturday, September 03, 2005

Os sofrimentos do jovem boi

Dia 1

Querido diário,

Nesta fazenda é tudo muito calmo. Tão calmo e devagar que resolvi escrever um diário, pois eu precisava me distrair. Mas não sei o que dizer, porque nada demais acontece em minha vida. Fico apenas parado, comendo grama.

Não quero deixar de ressaltar a bondade do meu dono. Simplesmente me deixa aqui, no meu canto, comendo, conversando ou dormindo, em sua propriedade. Enquanto isso, briga com seus dois filhos por só quererem passar o dia todinho deitados na rede e vendo TV. Acho que ele gosta mais de mim que deles.

Dia 6

Hoje foi um dia aborrecido para mim. Suponho que todos os meus amigos tenham algum tipo de disfunção mental. Um deles, por exemplo, quando me aproximo e digo "olá!", começa então a babar. Algo me diz que ele sofreu lobotomia.

Ninguém supera, entretanto, um outro. Mal começa a caminhar, defeca. Poxa, isso é uma falta de higiene terrível, por causa de seres assim que a medicina tem tanto trabalho. No meu caso, sempre procuro um lugar reservado. E o pior de tudo é que ele finge que não é com ele quando chamo a atenção: simplesmente ignora minha bronca e vai embora. Nojentinho.

Por outro lado, há um muito, muito enjoado. Ele tem um problema de atenção, porque quando algo lhe desperta interesse, ele fica lá, paradinho, de boca aberta, olhos esbugalhados. Mas quando pergunto o que foi, ele não sabe me dizer nada. Só diz "Hmm".

Meus amigos, aliás, são muito monossilábicos.

Dia 20

Um dia fui beber água e notei uma vaquinha me observando. Fingi que não era comigo. Ela cochichou algo com as amigas e ficaram rindo. Sei que era de mim, afinal eu era o único que estava ali. Quer dizer, tinha um marreco, mas ele sempre estava por lá, nunca ninguém ligou pra ele, ainda que tente chamar a atenção de tudo que é jeito. Aliás, ele veio de uma família que passou por muitas tragédias. Seu pai e dois irmãos foram assassinados por alguns moleques. Seu cunhado teve uma brilhante vida terminada de modo trágico, nas bocas de um cão. Por causa disso que o marreco busca atenção e carinho. E ele tem uma visão da vida muito trágica (evidentemente), berrando que seremos todos traídos e mortos. Ora, é um absurdo imaginar que todos os nossos companheiros que foram viajar na verdade foram mortos. Além do que seria bastante estúpido o nosso dono gastar anos e dinheiro conosco para simplesmente nos matar. Mas nada convence o marreco.

A vaquinha é bonitinha. Boa cor, esbanja saúde, educada ao se abaixar para apanhar grama (diferentemente de certas sujeitinhas, que são muito atiradas para o meu gosto). Eu já a observava antes, porém discretamente, sem acreditar que pudéssemos ficar juntos. Mas agora, depois dela me olhar daquele jeito, sinto um arrepio no meu dorso. Tenho esperança agora.

A única coisa que me incomoda é quando os filho do dono vêm tirar seu leite. Por que ela fica ali parada, deixando aquelas mãos bobas fazerem o que querem? Será que vale a pena ter de passar por isso? Eu só não faço nada porque o dono já salvou minha vida, quando um cachorrão surgiu do nada e pulou em meu pescoço (ui, dói só de lembrar). Minha dívida, minha gratidão, tudo me impede - ainda que de modo meio envergonhado - de tomar uma atitude contra aquela sem-vergonhice danada que só.

Dia 23

Meu dono apareceu com um desconhecido. Falavam alguma coisa que não dava para escutar direito. Cheguei perto, como quem não quer nada, e ouvi o desconhecido me elogiando, dizendo que pareço ser alguém de muito valor. Meu dono sorriu orgulhoso, o que me deixou envaidecido. Resolvi então andar perto deles, querendo que a Mimosinha, a vaquinha musa de meus sonhos, visse tudo. Dei sorte, porque ela olhou para o lado e me viu todo garboso. O resto da conversa não escutei, tão enfeitiçado que estava com a vaquinha. Só deu para ouvir algo como "estamos acertados".

Que tudo se dane, quero viver só para ela!

Dia 29

Meu Deus, quero me matar! Estou apaixonado pela Mimosinha e querem me vender! Justamente quando a minha vida parecia tão maravilhosa, os pastos tão gostosos, meus amigos tão divertidos! Ai, que vida! que tormento!

Meus olhos arderam ao vê-la, sabendo que poderia ser a última vez. Ela permaneceu quieta, calada, com a graminha na boca, olhando perdidamente para o vazio. Sei que está por dentro muito triste. Mas nós, seres bovinos, temos um código de ética muito rígido para essas coisas. Temos de ter calma, acima de tudo. Somos criaturas civilizadas, pacíficas. Melhor morrer que matar. Porém assim não posso suportar!

Segundo mês, dia 4

Me despedi de todos, menos dela, porque era cedo demais quando me pegaram e ela dormia. Meu dono e o comprador foram unânimes em dizer que me achavam um pouco mais magro, de pior aparência que há dias atrás. Tive vontade de morder a manga de suas camisas, puxá-los para perto de mim e dizer: "Acaso vocês haveriam de gostar se fossem bruscamente separados de suas amadas? Já conheceram o amor?" No entanto, ao invés disso, num arroubo de desespero, atirei-me aos pés de meu antigo dono, murmurando coisas desencontradas. Pensaram que eu estava doente, mas depois de uma pequena discussão, assim mesmo me puseram num caminhão e me levaram embora.

Contudo, antes deixei, como lembrança, um poeminha nas patas de um pequeno e bondoso bezerrinho, filho de uma das amigas de minha musa e que costuma estar perto dos machos mais adultos a fim de aprender a pastar adequadamente. Implorei para que o mancebo o entregasse tão logo a Mimosinha acordasse. Seu conteúdo era o seguinte:

Muitas horas já pastei,
Muitas vezes já comi,
Mas jamais me cansarei
De tudo que sinto por ti.

Apenas te vendo pastando
Sentia meu peito pulando:
Não há mais bela vaquinha
Do que você, Mimosinha.

O destino porém me trocou o dono.
Longe de ti, sentirei abandono,
Porque irei para outra fazenda,

O coração sem qualquer remenda,
Pensando em que belo presentinho
Não seria um nosso bezerrinho!


Com que dor escrevo essas coisas. Acho até que não há mais razão de existir esse diário. Ou minha vida. Que dor, que traição!

Adeus, minha amada imortal, adeus!

Thursday, September 01, 2005

Eutanásia nos outros é refresco

Já aparecem notícias sobre um pai que quer pedir à justiça a eutanásia do filho. (Aliás, pena de morte todo mundo é contra, mas aborto e eutanásia, pelo visto, não são um problema. Se o Estado não pode executar criminosos condenados, então com que direito ele pode permitir que inocentes sejam mortos?) Será a versão nacional do caso Schiavo.

Havendo coisas dessa espécie, não deixo de pensar que vivo na época mais porca de todos os tempos. Isso porque ninguém pode dar a desculpa da "inocente ignorância", pela qual outras civilizações praticaram as mais sórdidas barbáries com a consciência mais limpa. Nada disso: já passamos por tanta coisa ao longo desses três mil anos que esse tipo de atitude hoje em dia só indica uma satânica perversidade.

Por sinal, numa época tão besta como a nossa, realmente não consigo entender por que muita gente se preocupa em esticar sua expectativa de vida até ao máximo. É como querer por livre e espontânea vontade assistir por uma semana Cidade de Deus, com direito ao mais exaustivo making of. Eu hein, que gente masoquista! Não, obrigado: esta vida já é grande o suficiente e para mim já bastam as canalhices destes anos; dispenso as apresentações do século vindouro.

Nada melhor que relembrarmos as palavras do velho Eclesiastes:

E louvei mais os mortos que os vivos: e reputei mais venturosos do que uns e outros, ao que ainda não é nado, e que não tem visto os males que se fazem debaixo do sol. (Ecl 4,2s)

Wednesday, August 31, 2005

Cultura no abismo

OBS: O texto a seguir foi publicado anteriormente na versão antiga d' "O Teocrata" alguns anos atrás. Eu até mudaria uma coisa ou outra mas, citando alguém de caráter tão duvidoso quanto Pôncio Pilatos, digo que o que escrevi, escrevi.

Mas que a tentação de retirar o nome de Tchaikovsky foi grande demais, ah, isso foi...

E só uma curiosidade: a parte onde digo "Creio de maneira clara e distinta" foi empolgação depois de ler Descartes. É uma expressão muito escrota, mas enfim, eu estava deslumbrado...


Uma das grandes idéias que se teve a respeito de expandir o acesso de música clássica ao povo foi a cobrança bastante generosa do ingresso do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro. Por apenas cinco reais, pode-se assistir, da galeria, obras de autores do porte de um Tchaikovsky, um Beethoven, um Schubert, entre muitos outros grandes. Frisas e camarotes também são bem acessíveis, já que custam vinte reais. Ainda é exceção à regra em matéria de valores de ingressos. Porém já é um começo.

Outra boa idéia nesse ponto é o programa muito simpático do senador Arthur da Távola. Passa na Rede Senado, em vários horários, e se chama sugestivamente Quem tem medo de música clássica?

Isso pode dar a impressão de que existe uma preocupação real em expandir a música erudita para a população. Infelizmente, tal coisa é bastante duvidosa. Eu mesmo, há alguns anos, deparei-me pela primeira vez com uma orquestra sinfônica ao vivo. Não me recordo bem qual era. Ela estava tocando a céu aberto na Cinelândia. Como eu estava andando sem rumo e fiquei surpreso e curioso em observar a orquestra, pus-me a apreciá-la. Lembro bastante das músicas que tocaram: partes de O Guarani, Aquarela do Brasil, e fecharam de forma triunfal com Assim Falou Zaratustra, de Strauss.

Estava totalmente fascinado, prazerosamente ouvindo a apresentação quando, findado o espetáculo gratuito, eis que o maestro resolveu falar. Para maior surpresa minha (e do público, irmanados comigo nessa impressão), ele noticiava que a respectiva apresentação havia sido motivada devido a pauperização da orquestra e, para alertar a população, resolveram fazer uma espécie de ato público, que poderia também ser revertido em ajuda financeira, mediante a aquisição de cds produzidos pelos músicos que ali estavam. Em outras palavras, estavam mendigando em praça pública.

Claro que todos estavam perplexos! Como seria possível não haver patrocínio para algo tão grandioso? No momento, eu não estava acompanhado pelo dinheiro, caso contrário teria feito minha doação idealista. Saí de lá entristecido.

Hoje, pensando nesse assunto e no esforço de gente que gostaria que todos ouvissem e gostassem de um Bach, tenho de concordar com a verdade, esta sempre disposta a nos constranger para o bem. Ela nos estapeia; mas como se pode querer que todos ajam para tal fim, mesmo que seja algo legítimo e benéfico, se os meios para alcançá-lo são inexistentes ou pouco claros e tênues o suficiente para que não se os perceba?

Creio de maneira clara e distinta no que se segue: podemos até mesmo obrigar e constranger um indivíduo a visualizar as coisas mais belas e notáveis. Contudo, de que isso adiantará se ele anteriormente não tiver obtido todos os pré-requisitos para que seu espírito se torne dócil o suficiente para participar daquilo que é belo? Seja lá quem tenha assistido ao filme Laranja Mecânica, de Kubrick, sabe do que falo. Alex, um psicótico, na prisão, resolveu ler a Bíblia para poder aparentar bom-comportamento e participar de um programa de reabilitação, a fim de se ver livre. Porém, sempre que pensava em Cristo, imaginava-se sendo o Seu carrasco, com todo prazer, e era isso que o motivava a devorar as Sagradas Escrituras...

Penso que a sensibilidade seja uma componente importante para a apreciação daquilo que se revela belo. Não depende, para qualquer cidadão, de seu nível de renda, de sua posição social ou até mesmo, em certo sentido, de sua aquisição intelectual (se por “aquisição intelectual” se entende a mera acumulação de dados e estimulação do raciocínio, sem guiamento moral e verdadeiro). Sim, todos esses fatores servem de auxílio, mas não são de forma alguma seus determinantes. Talvez seja uma disposição individual que vem desde o berço. Mas, com absoluta clareza, a cultivação da docilidade espiritual para com o belo se dá não só por meio do costume, mas também pela aquisição e interiorização daquilo que é mais essencial numa obra de arte – a sua forma, mas muito além disso, o seu fim, que está em nós, e não em si. Quando a ponte entre o indivíduo e a obra de arte é construída, guiada pelo bem, aí sim ela se torna de real valor. E de infinitamente superior valor é aquela obra de arte que se conecta com toda a humanidade, representando possibilidades divinas fornecidas pela própria natureza, engrandecendo o próprio homem.

Caso essa “conexão primordial” não aconteça, então a obra de arte não passará de um amontoado de fragmentos, sem o menor sentido ou finalidade, soltos ao acaso. Não possuindo uma unidade, não significam nada.

Não é de se espantar a total negligência e até o desprezo da população quando o assunto cai em música clássica. Foge-se disso como o diabo da cruz. Para piorar, existe ainda um verdadeiro muro de preconceitos criados pela própria elite. Isso é simplesmente motivado apenas para reafirmar uma aparente superioridade intelectual perante aos demais. Mas é uma superioridade oca. Essa elite cada vez se deteriora mais. Chega ao cúmulo de achar plenamente normal o fato de louvar um Schumann e noutra ocasião agir irresponsavelmente e de forma totalmente repreensível. É essa elite cultural que, ao afirmar a beleza de uma fuga de Bach, o mestre cujas obras possuem um caráter religioso, despreza totalmente qualquer religião, faz apologia ao consumo de determinadas drogas, põe-se debruçada a polêmicas mesquinhas (“direitos” aos gays, cotas raciais) etc.

Sendo assim, sinto-me muito mais angustiado sabendo que a dita elite brasileira perde cada vez mais suas referências no que tange aos valores morais e estéticos do que sabendo (o que sempre se soube) que a maior parte da população está se lixando para Mozart. Até mesmo o chorinho, tão aclamado como música popular de enorme qualidade, se faz desconhecido para o povo. Se essa elite perde a cada dia o solo onde antes confusamente caminhava, então amanhã tombará, e levará para o abismo o restante de seus compatriotas. Nesse transloucado fenômeno, pode vir a ser o contato entre povo e arte, essa menina tão judiada hoje em dia, uma experiência das mais nefastas.

Sunday, August 28, 2005

O "mundo interior"

Amigos, a Rachel, num comentário ao post anterior, escreveu uma coisa que vale a pena gastarmos um pouco de nosso já sofrido tempo para refletirmos. Vou aqui copiar o que ela disse: "nosso corpo é só matéria... Ainda que hoje em dia algumas pessoas dêem mais importância a ele do que a outras coisas..."

O que ela disse me servirá de gancho para algo que há tempos estou para escrever desde a época do meu primeiro (e finado) blog.

Numa novela mais ou menos recente, havia uma música que agarrava minha atenção. Lembro só de uma parte, que aparentemente é uma bobagem qualquer. Era mais ou menos assim: Money no bolso, saúde e sucesso/ Money no bolso é tudo o que quero. Ora, não era pela beleza dos versos que eu a ouvia com curiosidade, muito menos pelo seu ritmo. Não, nada disso. O que me chamou a atenção é que de repente surgia, em plena novela das oito, um dos ideais populares mais famosos da Antiga Grécia!

"Como certas coisas ditas tão naturalmente hoje são antiqüíssimas!", pensei.

Suspeito que quem compôs aquela música não conheça muita coisa sobre poesia antiga, muito menos o público da novela. Mas em relação às coisas do espírito, não precisamos muitas vezes ler para conhecê-las: muito está no ar. E eis que pesquei, naquela musiquinha, mas em outras palavras, escondidinha, uma famosa canção báquica que resumia em poucas linhas o ideal popular grego. Vejamos qual era:

O bem supremo do mortal é a saúde;
O segundo, a formosura do corpo;
O terceiro, uma fortuna adquirida sem mácula;
O quarto, desfrutar entre amigos o esplendor da juventude.


In: Jaeger, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira, 4a. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 529

Se lembrarmos por exemplo da Ilíada, onde Aquiles preferiu a glória e fama imortal, ainda que morresse na juventude, a passar uma vida tranqüila e sem incidentes em seu país, perceberemos como esses valores, fortuna-saúde-glória, eram plenamente apreciados como o que de mais alto havia na vida. Nada mais familiar a nós: quantos não querem enriquecer, ter sucesso profissional e/ou viver bem?

No entanto, ainda que tudo isso seja natural, o que chama a atenção é a importância dada a esses valores. A hierarquia de uma bela vida, em outras palavras, é puramente material. Como tudo isso é bem antigo, não é apenas uma inovação de nossos tempos. O que chama a atenção é sua persistência, demonstrando que faz parte da realidade humana.

A superação deste ideal de vida foi sem dúvida nenhuma uma das mais gloriosas aquisições da história da humanidade. Tornou-se patrimônio comum. Daí que os responsáveis por tão grandiosa descoberta sejam tão fundamentais e próximos de nós.

Pois bem, naqueles antigos tempos surgiu um homem que seria para sempre considerado um exemplo de conduta e fundador de todo um projeto filosófico. Sua aparência era desconcertante: calvo, cabeçudo, nariz feio, barrigudo. Uma espécie de ogro. Mas esse homem caricato era ele mesmo, em sua própria existência, a representação de uma nova forma de vida, com uma hirarquia de valores absolutamente original. Seu nome era Sócrates. Não nos faltam relatos interessantíssimos acerca de sua vida. Sua preocupação com o cultivo da alma em primeiro lugar o fazia viril a tal ponto que Alcibíades relatou que já o vira, certa vez, num acampamento militar, ficar de pé por horas a fio e em meio à neve, absorto em reflexões. Outros lembraram de seu heroísmo durante a guerra. Embora não fosse miserável, desleixava-se dos bens materiais de modo espantoso, embora nisto em particular alguns de seus discípulos o superassem exageradamente. E é justamente um sujeito desses, que à primeira vista ninguém daria nada, representando (de modo exemplar) em vida e de modo coerente sua hierarquia de valores, que demonstrou a preeminência de um "mundo interior" sobre tudo o mais. Acabou condenado a tomar cicuta pelos próprios atenienses.

Aquele senhor era uma figura estranhíssima para seus contemporâneos. Mas não só pela sua aparência. Então por qual motivo? Porque ele "coloca no plano mais elevado os bens da alma, em segundo lugar os bens do corpo, e no grau inferior os bens materiais, como a riqueza e o poder", como lembrou bem Jaeger em seu livro já citado (p. 528). Isso significa que o filósofo descobriu "algo de novo, o mundo interior" (p. 529). Eis aqui a radical contribuição de Sócrates: "A arete [virtude] que ele nos fala é um valor espíritual" (p.529). Este é um caminho novo, que rapidamente, num dos maiores milagres de todos os tempos, foi seguido, sem interrupção, por outros dois homens que se tornaram igualmente patrimônio comum e legado da humanidade: Platão e Aristóteles. Foi uma das maiores proezas que o homem, apenas com sua razão, já conseguiu, cujos efeitos nos embriagam até hoje.

Essa "missão divina" socrática e o seu "cuidado da alma" não soam estranhos para nós, ou pelo menos não tanto quanto para os seus contemporâneos. Somos seus herdeiros, mas não diretamente. O responsável pela ponte com ele é nada mais nada menos que o Cristianismo, que nesse sentido possui com Sócrates afinidades por demais claras. Essa religião também encontra a riqueza inesgotável de nosso "castelo interior". Mas quanto à hirarquia de valores, Nosso Senhor resumiu quais eram os principais mandamentos que devemos seguir, os quais estão bem longe daquela velha canção báquica: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Eis o verdadeiro "bem supremo do mortal" - embora neste mundo o percebamos confusamente. O resto vem por acréscimo.

No entanto, apenas a descoberta do "mundo interior" não é o suficiente. É necessário relacioná-lo de modo harmonioso com os outros bens, pois do contrário poderemos perigosa e tragicamente cindir em duas a nossa única realidade, cavando um abismo entre o mundo espiritual e o mundo natural. Seja o corpo, por exemplo. Ele nos é um bem precioso à medida que por ele podemos, aqui neste mundo, dar testemunho e graças a Deus e aos próximos. Ele, enquanto "morada da alma" (o que é diferente de uma "prisão") - ainda que a alma resida nele provisoriamente -, ambos em harmonia um com o outro, sendo o corpo fiel e submisso à alma, é sagrado e digno de respeito e admiração, como um servente que realiza adequadamente suas funções. É nesse sentido que nossa saúde é um dos nossos bens fundamentais, pois é óbvio que somente podemos praticar o bem se estivermos vivos. Por outro lado, a monarquia da alma no governo de nossas vontades é a segunda condição para tal. Contudo, havendo uma cisão - ou mesmo descrença - na relação (tensa e frágil) entre aqueles dois mundos, então nosso corpo perde seu caráter sagrado ou, o que talvez seja pior, instaura a anarquia e o caos, antes refreados pelo governo da alma. É o criado provocando uma rebelião anárquica.

Este tema é interessante e pretendo algum dia (isto é, daqui a zilhões de anos) retomá-lo. Mas pelo menos acho que consegui dizer um pouco sobre o que há tempos tenho vontade, me aproveitando gentilmente do comentário mais gentil ainda da Rachel.