Monday, December 15, 2008

Do partidarismo moderno

Um dos presentes que nos foi dado pela modernidade foi a aparição de partidos políticos perpétuos. Com efeito, nenhum partido aparentemente foi concebido para realizar metas discretas e extremamente pontuais: cada um planeja chacoalhar toda a sociedade, remodelando-a nada timidamente, embora uns sejam menos ambiciosos que outros. A diferença, portanto, é uma questão de prurido. Ademais, mesmo os pouco ambiciosos também carregam algum tipo de crença numa transformação profunda e radical da sociedade. Um partido liberal e conservador não deixa de ser tão impostor quanto um abertamente revolucionário.

A democracia liberal destruiu os antigos privilégios aristocráticos simplesmente expandindo-os universalmente. As antigas disputas famíliares aristocráticas, as quais, por definição, eram privadas -- daí que uma disputa medieval envolvesse tão-somente uns poucos adversários --, caíram em desuso, porque tiveram de ceder espaço a uma nova espécie de família aristocrática: os partidos políticos. Estes, com efeito, substituíram o pacto de sangue pelo pacto ideológico, adquirindo uma universalidade que a nobreza, evidentemente, jamais poderia aceitar. Se algumas famílias consideravam-se nobres ou, como na Antigüidade, descendentes de deuses, a ideologia partidária acabou servindo como espécie de batismo e, em certos casos, como vacina contra a corrupção do mundo -- é o caso dos partidos comunistas, cujos afiliados consideram que a natureza humana é elevada mediante filiação partidária. Em ambos os casos, o disparate é óbvio e insultuoso.

A própria existência desse tipo de partido é extremamente atípica. Normalmente os homens se dividem em partidos porque discordam das formas de resolver determinadas contingências bem determinadas, mas, uma vez resolvidas, os partidos perdem a razão de ser, e cada qual retorna a seus afazeres normais. O pressuposto disso é que os homens só se lançam verdadeiramente à disputa política quando se sentem muito incomodados e quando o esforço exige o emprego das massas. Contudo, os partidos modernos aparentemente não conseguem resolver nada decisivamente, o que seria motivo de acabar com eles porque incompetentes, ou simplesmente querem se manter eternamente, semelhante àquelas pessoas que, uma vez convidadas à nossa casa, jamais se retiram. Essa situação de partidarismo perpétuo é conseqüência de divisões igualmente eternas e radicais: duas pessoas não disputam uma coisa se não discordam a seu respeito. Numa palavra, a existência desse tipo de partidarismo pressupõe algum tipo de discórdia jamais resolvida. Que certos indivíduos concluam que é preciso um super-partido a fim de destruir completamente os adversários certamente não é espantoso, dada a situação de discórdia insolúvel. E isso é ainda mais grave porque a questão disputada deixa de ser um motivo concreto para se tornar uma questão puramente de princípio, ainda que tangente ao mundo prático. A política se torna um confronto de abstrações que movem a humanidade.

Há um efeito igualmente pernicioso causado pelo partidarismo perpétuo: o imperialismo da política. Porquanto tudo se torna um problema político, há uma expansão voraz dos negócios públicos na vida privada de cada qual. O partido em si se torna um fator de coesão superior à família e à amizade, pois a política se torna fundamento da vida, e como tudo gira em torno de lutas públicas, há cada vez menos espaço para o cidadão meditar solitariamente. Ademais, como a política também é a dominação psicológica do outro, no sentido de convencer a multidão a fazer o que o político deseja, segue-se que haverá a disseminação do costume de nas relações pessoais agir politicamente: as pessoas buscarão, mais que de costume, dominar e manobrar o outro. Tal situação só é possível porque, como disse Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas, há uma quantidade grande e anormal de señoritos satisfechos atualmente, ou, em português claro, moleques mimados. De certa maneira, o partidarismo moderno é a atuação pública de moleques mimados.

Monday, December 01, 2008

Kyrie - Orbis Factor

Lembrava-me de uma esplêndida música que ouvi há algum tempo e, tendo-a procurado no Youtube, graças aos céus descobri que uma alma gentil a disponibilizou. É o Kyrie (Orbis Factor) que está no CD Graduel d'Aliénor de Bretagne, dirigido por Marcel Pérès.

De qual é o melhor modo de argumentar com terroristas armados com fuzis ou facínoras semelhantes

Wednesday, November 05, 2008

De como a beleza venceu Obama

Eu, pobre rapaz latino-americano sem um tostão furado no bolso, blogueiro de um leitor só -- eu mesmo --, tolo e presunçoso, darei minha opinião definitiva a respeito das tramas políticas do país mais poderoso do mundo, evidentemente os EUA, a fim de lhes indicar o que é bom, porque não simpatizo com Obama, e sim com McCain.

Todavia, o espírito carioca autêntico que corre em minhas veias está me fazendo mudar de idéia. Não só é preciso mudar de vida, como é preciso mudar de opinião, e sempre para algo mais agradável. Porque ao mesmo tempo que leio que Obama venceu, penso nas potencialidades da Internet, e me dou conta de que é muito mais agradável contemplar a belíssima Ana Paula Arósio do que me meter em discussões políticas de países que nunca visitei e que, ademais, estão distantes de mim bons e saudáveis muitos milhares de quilômetros. Ademais, as impressões políticas voam, as belas perduram.

Seja, pois, Ana Paula Arósio a inspiração deste post, e não Obama.



Estou firmermente convencido de que Ana Paula Arósio é uma das mulheres mais lindas do planeta e de que a beleza tem uma propriedade misteriosa de nos transmitir uma calma arrebatadora. Refiro-me tanto à beleza das coisas como das pessoas.

Isso é menos paradoxal do que parece. Ao mesmo tempo que a beleza nos anima, ela transmite uma sensação de ordem. Sentimo-nos como que transportados para uma outra realidade, se bem que nunca deixamos de ter algum pé nessa. É importante ressaltar esse duplo aspecto, porque é tão tolo negar a manifestação concreta da beleza como negar o grande prazer espiritual que ela nos proporciona. Fujamos tanto do poeta sonhador como do materialista devasso. Afirmo também, desprovido de pretensões de originalidade, que a beleza é misericordiosa conosco, porque é um dos únicos atributos grandiosos do ser, senão o único, que se deixa perceber pelos nossos sentidos, esses lembretes de que o mundo é bom. A beleza entra em nossos olhos e ouvidos, e quando menos percebemos, vivenciamos uma sensação indescritível.

Agora bem: a sensibilidade difere de pessoa para pessoa. Alguns enxergam melhor que os outros, e o mesmo pode ser dito a respeito de cada um de nossos sentidos. A sensibilidade para o belo também varia de pessoa para pessoa. Não me atrevo a discutir acerca da existência de um órgão que capta a beleza das coisas, mas podemos observar, sem dúvida alguma, que certas pessoas estão mais propensas a captar o belo nas coisas, e há aqueles que se sentem muito mais comovidos por ele. Todavia, é necessário dizer que isso não implica apologias de excentricidades. A percepção da beleza não se justifica por si mesma, ou, em outras palavras, uma pessoa com o faro do belo muito desenvolvido não é necessariamente uma pessoa melhor, assim como ler muito não torna alguém necessariamente mais sábio. Bem ao contrário, notamos que tais pessoas não raramente são dadas a excentricidades caso essa hipertrofia do senso da beleza não seja proporcional a algum tipo de suporte para melhor administrá-la. Minhas palavras enigmáticas significam tão-somente que é preciso que toda a personalidade acompanhe de maneira harmônica a capacidade de sentir o belo, pois do contrário o indivíduo erguerá para si uma estátua de esteticismo, entregando-se a todo o gênero de loucuras em nome da beleza. Tal como Zeus fulmina o mero mortal com sua presença, o belo pode fulminar aquele que não tem capacidade de aproveitá-lo tranqüilamente.

Há um paralelo com o amor. Certas pessoas amam mais que outras, mas alguns amam de maneira tão intensa que acabam cometendo loucuras, e o senso comum, na falta de um termo melhor, simplesmente diz que esses desatinos são "loucuras da paixão". Todos percebemos, ainda que confusamente, que a paixão no sentido amoroso é uma força exterior que nos arrasta para junto de quem amamos. Identificando essas loucuras com o próprio amor, o senso comum criou a expressão "o amor nos faz cometer loucuras". Alguns povos, como os gregos, chegaram a divinizar o amor. Agora bem: a frase é equívoca. São Paulo não só dizia que a nossa fé é loucura para os gentios, mas também que a loucura de Deus é mais sábia que nós. Isso significa obviamente que a sabedoria humana é limitada, ou seja, o campo da realidade é muito mais vasto que a nossa capacidade de saber. Ademais, São Paulo igualmente dizia que existe em nós um conflito entre o homem exterior, apegado à carne no sentido bíblico, e o homem interior, seguidor de Deus. Nas relações humanas, essa dualidade se converte em dois tipos de amor: o amor de si e o amor pelo próximo. Em última instância, os dois são antagônicos. Pois bem, quando o senso comum nos diz que o amor nos faz cometer loucuras, devemos entender isso de dois modos diferentes, um positivo e o outro negativo. A boa loucura amorosa nos faz partir a redoma do amor de si para que possamos exercer o amor pelo próximo. Assim como a ira nos compele a agir de modo mais intenso que o normal, o amor pelo próximo nos compele a sacrifícios que não estaríamos dispostos a aceitar numa situação normal, isto é, do amor de si. Logo, o amor pelo próximo nos faz cometer loucuras do ponto de vista do amor de si, e tanto isso é verdade que as pessoas que não amam ou amam pouco estranham certas atitudes dos vivamente apaixonados. Evidentemente, não sentiríamos tamanha disposição por algo desprezível. Identificamos no amado alguma perfeição fundamental, o que explica porque geralmente o amante não concorda com críticas ao amado. A perfeição do amado cria uma disposição de perfeição em nós mesmos, como se desejássemos refleti-la em nossa vida, sem no entanto possui-la completamente. Esse gênero elevado de amor é, grosso modo, aquele mencionado por Platão no Fedro. Por outro lado, há a loucura amorosa com efeitos negativos. Ela é mais uma manifestação extrema do amor de si que de qualquer outra coisa. O objeto do amor é flagrantemente forçado a se comportar segundo os desejos do apaixonado. O desejo de refletir em nossa vida a perfeição do amado vira uma tentativa de absorvê-la totalmente. O ciúme, pelo menos aquele excessivo, é manifestação de uma paixão despropositada. É na clave desse tipo de amor que se move quem se mata em nome da paixão, embora seja preciso deixar claro que estou me referindo a um comportamento wertheriano, e não de quem se sacrifica autenticamente, isto é, por alguém. Esse amor é sinal das instabilidades pessoais, significando, longe daquele aperfeiçoamento do outro tipo de amor, uma piora da vida da pessoa, ou melhor, um vício ancorado em sua vaidade.

Quando mencionei a beleza da pessoa, gostaria de deixar claro que esse é o único ponto. Digo tais coisas porque não quero passar a sensação de que devemos idolatrar cegamente quem é belo ou outras bobagens do gênero. De fato, Ana Paula Arósio possui uma beleza impressionante, mas seria passar do limite do sensato, e acredito que ela concordaria comigo a não ser por alguma vaidade, que não deveríamos tratá-la como uma deusa, da mesma forma que é pedir demais uma divinização de um exímio escritor. Por mais que pareça absurdo, não podemos esquecer que as mulheres, e principalmente as belas, são musas somente de um ponto de vista metafórico, e mesmo assim toda a ressalva é pouca. Essa simples prudência foi ignorada por não poucos afoitos durante muito tempo, e boa parte das nossas decepções amorosas é causada por esse motivo paradoxalmente insólito e corriqueiro. Todavia, devo advertir à leitora que, caso não tenha ficado claro, manifesto um ponto de vista apenas masculino, embora o feminino tenha algum paralelo. As mulheres também têm seus "musos", porém numa perspectiva diferente.

Fecho o post agradecendo, ainda que ela nunca saiba, à bela Ana Paula Arósio pela inspiração. Se não fui bem-sucedido, não é devido a ela, mas à minha incompetência.

Thursday, October 09, 2008

Do qual me desculpo pela omissão do site de Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, e menciono a possibilidade de ouvir aulas de Gustavo Corção

Devido a uma omissão vergonhosa, nunca indiquei o excelente site de Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, sendo tão altamente recomendável. Que o leitor faça bom proveito das leituras por lá indicadas e das aulas do professor. Tenho ouvido suas aulas e gostado bastante.

Motivo maior ainda de felicidade, ao menos para mim, é a possibilidade de ouvir aulas de Gustavo Corção mediante um pequeno donativo à Permanência. Gustavo Corção foi um grande homem e merece ser ouvido.

Sunday, September 28, 2008

Último post concertante

Indico ao leitor o interessante texto de Murilo Mendes sobre Bach, no Sal Terrae.

E por falar em concerto

Quem tiver ouvidos, ouça. Nessa segunda, na mesma Sala Cecília Meirelles, às 19h, apresentarão o Réquiem de Brahms pelo valor de R$1, preço de três bananadas. A menos que o Senhor quebre Sua promessa e envie outro dilúvio, o evento é imperdível, mesmo eu não tendo a mínima idéia do valor da orquestra, dos solistas etc. etc.

Ida ao concerto

Sábado fui assistir à apresentação de Daniel Taylor na Sala Cecília Meirelles acompanhado por mais um Taylor, A.J.P., o falecido historiador inglês que escreveu A Segunda Guerra Mundial. Não sei se os dois têm algum parentesco, mas direi alguma coisa sobre o livro mais adiante.

Tendo chegado cedo, cousa espantosa vindo de alguém tão mal relacionado com os ponteiros como eu, decidi fazer uma hora numa igreja ali próxima. Mal entrei e vi um sujeito baixinho ensaiando umas músicas com um coro tão animado quanto feminino e de idade algo avançada. Ao lado, uma senhora tocava um teclado num estilo tal que julguei ser alguma performance ultra-moderna. Devo mencionar ao leitor que uma das pragas modernas é, na minha opinião, o teclado. Por mais que digam que ele soe como qualquer coisa imaginável, na minha modesta opinião ele soa apenas como um teclado tentando ser qualquer coisa imaginável. A falta de entrosamento entre o coro e o teclado era impressionante, sendo compensada pela extrema desafinação daquelas almas piedosas, algo que o baixinho, animado como estava em lhes ensinar as canções, parecia ignorar completamente. Sua boa vontade era igualmente impressionante, e então percebi que talvez ele estivesse cumprindo algum tipo de penitência inusitada.

Não havia sentido, no dia, minha primeira comoção musical, pois sentira algo semelhante ao passar, muitas horas antes, em frente a uma outra igreja. No momento da comunhão, alguém teve a belíssima idéia de fazer um acompanhamento musical num estilo semelhante a Ivan Lins, porém em tons sacros. Nunca me passara pela cabeça uma missa sitiada pela cafonice, mas parece que as pessoas conseguiram esse milagre. Infelizmente meu dáimon me mandou apertar o passo, embora eu esteja até agora querendo saber que raio de música era aquela.

Voltanto à igrejinha, aliás muito bela e que conheci graças a um evento totalmente mundano, isto é, quando da apresentação de quartetos de cordas de Beethoven, decidi, pois, ficar ainda mais, pelo menos até a hora da comunhão, esperando que Deus não me julgasse mal por ter de sair no meio da missa por causa do concerto. Chamou-me a atenção todas as pessoas serem de idade avançada. Numa igreja aqui perto de casa, algo semelhante parece ocorrer no meio de semana, exceto uma vez que vi uma senhorita de minissaia lá dentro. Mas a igreja estava razoavelmente cheia, num sábado frio e chuvoso, cousa mui louvável. Em todo o caso, eu era o caçula. Obviamente não havia razões para me incomodar com nada disso. O incômodo irrompeu mal tendo começado a missa. Antes que alguém me julgue destituído de espiritualidade, advirto que me refiro ao andamento estranho da missa. Aquele sujeito baixinho, que então descobri ser o pároco, juntamente com seu assistente, coreografava um balançar de braços dos fiéis. Havia uma cantoria de gosto duvidoso, uns gestos estranhos, uma música mal feita, uma leitura um tanto canhestra de passagens bíblicas, enfim, tudo feito estranhamente. Naqueles momentos, enquanto eu me perdia olhando aquela igreja tão agradável, surgiram-me as palavras que certa vez meu amigo Carlos escrevera em seu blog sobre a união da beleza com a liturgia. O que ele escreveu é, garanto, produto de considerações mui pessoais, pois ele próprio experimentara cenas litúrgicas esquisitas. Mas, pedindo gentilmente licença, eu avançaria um pouco mais e diria que toda a missa que não leve suficientemente a sério essa união da beleza com a liturgia cai, na menos pior das hipóteses, no cômico. Em certa ocasião, durante missa em lembrança à minha avó falecida, havia um cidadão que entoava os cânticos numa voz tão bizarra e com um jeito de falar tão inaudito que foi um empreendimento heróico manter o auto-controle para não rir durante tão grave evento.

Como eu estava com um espírito de concerto, não pude deixar de matutar que atualmente seria um período glorioso para as missas de Haydn, as quais, na época, foram ignoradas por causa de seu espírito alegre demais. Ora, sequer precisaríamos de uma orquestra e coro: bastaria um tocador de cd ou um desses cacarecos tecnológicos atuais que desconheço velhacamente. Por que, dentre as opções, há o hábito de sempre escolherem a mais infeliz? O mais curioso é o raciocínio de que o povo precisa daquilo que mais lhe convém, tendo implicitamente a noção de que o povo só gosta do que for pior. Música mal feita no lugar de Haydn parece ser, na cabeça de alguns, mais próprio ao povo.

Deixei, pois, a agitação de papéis de lado, mesmo antes da comunhão, e me dirigi à sala de concerto, embora, para meu espanto, faltasse meia hora para o início da apresentação. Sentei-me e decidi conversar um pouco com o historiador inglês, autor de A Segunda Guerra Mundial.

Não há nada pior que estar em má companhia. Talvez a única coisa pior é não poder desembaraçar-se dela. Para me gáudio, não era o caso em questão. A.J.P. Taylor me foi um ótimo companheiro de conversações, de tal modo que o deixei falar o tempo todo a fim de aprender.

Esse livro foi escrito no início da década de 60 e se tornou um clássico, embora tenha sido inicialmente detestado, exceto por "ex"-nazistas. Eu ouvira falar de Taylor graças a um outro excelente historiador, John Lukács, mas não podia imaginar que, além de ser inteligente, ele era tão divertido. Sua ironia é sutil -- às vezes nem tanto --, bem agradável, o que me rendeu algumas risadas, como no momento em que ele diz que as indenizações de guerra da Alemanha eram motivos "de insatisfação intelectual; coisa para lamentar à noite, e não motivos de sofrimento na vida cotidiana", que, em bom português, significa "frescura". Na mesma página, ainda sobre as indenizações, ele continua: "O homem de negócios em dificuldade, o professor mal pago, o trabalhador desempregado, todos as culpavam pelas suas dificuldades. O choro de uma criança faminta era um protesto contra elas. Os velhos iam para a cova devido às reparações." Ironia e sarcasmo que segundo meu imaginar só os ingleses conseguem desempenhar tão bem. Contudo, não pude deixar de perceber como tudo aquilo se aplica extraordinariamente ao Brasil, com a única diferença de o culpado ser a "exclusão social" ou o "capitalismo". Numa página anterior, ele diz que os ingleses começaram "a denunciar a loucura das reparações, tão logo se apossaram da frota mercante alemã", cousa que deve ter irritado mais de um inglês ao ler isso. Essas e outras passagens indicam que Taylor era polêmico, porque ele estava atacando todos os sagrados lugares-comuns: que a Alemanha não tinha como pagar as indenizações de guerra; que o Tratado de Versalhes foi totalmente péssimo para aquele país; que o programa de rearmamento alemão foi pesado durante quase toda a década de 30; que a guerra mundial foi tramada por Hitler; que ele, aliás, não era um estadista - mas é Lukács quem desenvolverá mais esse ponto; que planos como a anexação da Bélgica e Ucrânia, guerra contra a França e o Lebensraum não eram idéias típicas de Hitler, mas alemãs, e desde a Primeira Guerra. A lista é ainda mais extensa. Não foi por acaso que seu livro teve inicialmente uma recepção péssima e, para piorar, acabou erroneamente saudado por "ex"-nazistas, portanto interpretado por todos como uma espécie de reabilitação de Adolf Hitler: interpretação completamente torta, diga-se de passagem.

É lamentável quando o historiador é obrigado a seguir a opinião de todos tão-somente porque parece ser a mais agradável. A idéia de oposição ao establishment por si mesma é agradável apenas a quem não saiu da adolescência mental. No caso do historiador, a situação é mais complicada porque, afinal de contas, a história necessita ser sempre revisada. Sendo um estudioso, ele busca explicar o que ocorreu, nunca se satisfazando com as explicações aparentes. Um historiador precisa ser um pesquisador sério, não um instrumento que ecoa a opinião do dia. Como as pesquisas de Taylor, no dizer de Aristóteles, constrangeram-no a adotar certas verdades, muitas das quais eram contrárias às suas primeiras opiniões, por certo tempo ele foi detestado por muitos. É uma infelicidade monstruosa que em nosso país os cursos de história tenham sido tomados por selvagens cujo espírito é o oposto ao do verdadeiro historiador, embora esses infelizes se considerem espíritos críticos: eles querem unanimidade tão-somente. Mas que o leitor não exagere duplamente o que estou dizendo: Taylor não tem razão sempre e eu ainda estou lendo o livro.

Precisei terminar a agradável conversa com Taylor porque o concerto iria começar. Até o instante em que escrevo estas linhas tortas, não compreendi por que os organizadores chamaram o evento de "Música Antiga", já que nem Dowland, nem Haendel e nem as composições anônimas apresentadas eram música antiga. Naturalmente, a dúvida que surge é saber o que diabos significa esse termo. O canto gregoriano é antiqüíssimo, talvez a música mais antiga ainda em uso, mas não tenho certeza se seria apropriado classificá-lo como música antiga. Talvez seja mais próprio usar o termo para as músicas da Antigüidade, mas é bom que se diga que os próprios medievais, a certa altura, dividiam os estilos em ars antiqua e ars nova, e isso nada tinha a ver com a Antigüidade. Para o nosso gosto e, por que não, da própria Renascença, ars nova é algo inacreditavelmente arcaico, tanto quanto ars antiqua. Do ponto de vista da música clássica - o termo aqui se refere à música de um determinado período -, talvez não seja um absurdo total considerar que o período barroco e anterior não passam de algo cafona e fora de moda, ainda que seja uma extravagância colocar no mesmo saco gente tão diferente como Haendel e Dowland. É sempre complicado estabelecer o que é moderno e o que é velho segundo o que parece mais antiquado. Mas, como diria Taylor, são inquietações intelectuais boas para incomodar o sono, mas que não afetam em nada a vida cotidiana. Assim, estando o termo equivocado ou não, os músicos estavam lá e havia público suficiente para a apresentação.

Evidentemente, a atração principal do concerto era o contratenor Donald Taylor, o qual, repito, não faço a menor idéia se é parente ou não do historiador inglês. A primeira parte da apresentação foi consagrada a Dowland e compositores anônimos. Se o leitor nunca ouviu o compositor inglês, saiba que suas músicas são ótimas para, conforme a medicina antiga, incentivar a produção de bílis negra. É impressionante como Dowland compôs tantas músicas melancólicas. Na minha opinião, um dos melhores momentos foi quando Taylor cantou I saw my lady weep, embora não tenha havido uma segunda voz. Não que ele estivesse se apresentado sozinho, porque havia uma soprano extremamente bonitinha com ele, trajando um longo vestido esverdeado. Dentro do meu limitado entendimento musical, gostei de ouvi-la também. Pensei nas palavras de um poeta que dizia não haver nada mais agradável que ouvir um talento combinado a uma feição bela. Não posso cometer a injustiça de esquecer o senhor do alaúde, instrumento delicado que foi muito bem tocado.

A segunda parte foi dedicada quase inteiramente a Haendel, com acompanhamento de piano. Confesso que seria mais agradável se houvesse uma pequena orquestra de câmara, mas não quero choramingar porque o pianista era muito bom. Se alguém tinha alguma dúvida de sua habilidade, suponho que ela desabou após a execução de uma transcrição de Liszt de uma peça bachiana, se não me engano algum prelúdio e fuga. Uma certa melancolia continuou da forma mais bela possível, como durante a apresentação de um duo da ópera Theodora. Para quebrar a melancolia, o espetáculo findou com duas árias heróicas da ópera Giulio Cesare, em que Taylor alternava entre contratenor e barítono, exibindo suas habilidades vocais. Durante as árias heróicas, ele também fazia questão de interpretá-las, explicando antes ao público brevemente do que se tratava.

Eu estava tão perto do palco que não perdi um único perdigoto, nem uma eventual enxurrada deles, mas suficientemente afastado para me por a salvo deles. Eu gostaria de ter visto mais o pianista usando o pedal, mas a cabeça de um senhor na primeira fileira embargou-me o intento, bem como do senhor desprovido de cabelos que estava atrás dele. São detalhes irrelevantes, pois a apresentação foi boa, mesmo quando Taylor disse que o Ptolomeu da ópera conseguia ser ainda mais malvado que Bush.

Foi uma sensação curiosa voltar para casa depois daquele evento, pois tive de passar pelo mafuá dos Arcos da Lapa, zona considerada boêmia. Era como se eu estivesse me perdendo nas mais profundas trevas da antiga Germânia ou nos pântanos da velha Britânia. Minha imaginação não concebe as razões que levam um semelhante meu a embrenhar-se prazerosamente num local tão feio e lotado de mafomas e demais gentes de má catadura. Agora bem: a memória do espetáculo anulou aquele ambiente. Segui embalado por aquelas músicas até meu lar, como aliás já o tinha feito em outra ocasião, durante o festival dedicado a Beethoven.

Saturday, September 20, 2008

Da beleza da mulher


Qualquer assunto, da metafísica à harmonia cósmica, é banal se comparado à bela mulher. Perto dela, os maiores gênios da humanidade se assemelham à pandilha mais grosseira. Evidentemente, outras qualidades tornam a mulher ainda mais superior. Acaso a natureza lhe seja tão mãe que, não obstante sua beleza, ofereça-lhe também algum talento notável, seja um dote artístico, seja um nobre discernimento, seja um bom trato, toda a nossa admiração será justificavelmente minúscula diante de tal mulher.

Caríssimos senhores que se aventuram em proezas platônicas, homéricas e dantescas, não seria melhor deixar de lado tão magníficas ações em nome de uma mulher bela? Com esse chamamento à filosofia da ação, despeço-me, não sem antes pedir a compreensão de uma eventual leitora ressentida. Infelizmente nada poderei fazer a não ser desejar que essa leitora tenha ao menos algum talento. Adeus.

Wednesday, September 17, 2008

Um breve comentário sobre a política e as eleições

Se o voto é a arma do cidadão, sejamos coerentes: façamos mais uma campanha de desarmamento, dessa vez eleitoral.

Exceto entre comunistas e outros desastres, jamais conheci criatura do gênero humano que levasse a política a sério, o que talvez explique as calamidades atuais, especialmente aqui no Rio, que já deu dois passos para além do pior impropério. Tanto quanto, jamais tive a oportunidade de conhecer alguém que depositasse fé inabalável em qualquer candidato, exceto, como de praxe, os esquerdistas, mas aqui estou me referindo a gente normal.

Muito embora eu ouça que o brasileiro é tolo o suficiente para continuar crendo em políticos, não posso concordar, pelo menos não totalmente. Considero que esse tipo de opinião é parcial. Pode haver esse aspecto de ingenuidade amplamente disseminado, mas desconfio que não seja o dado predominante. Uma outra visão, talvez parcial também, mas que freqüentemente compartilho, embora com alguma desconfiança, é que, como já disse, as pessoas simplesmente não confiam na política. Prova disso é a vergonhosa popularidade do Congresso, cuja função como bode expiatório de todos os flagelos da nação ele vem desempenhando assaz bem.

Na minha modesta opinião, o brasileiro está longe de ter uma confiança suicida na política, pelo menos na medida em que ele não lhe dá muita importância. O máximo que faz é dar apenas um reconhecimento necessário. Apesar de tudo, as pessoas sabem que a política não é uma obra satânica, o que demonstra um enorme bom senso popular. Note o leitor que uma das marcas do pensamento conservador não é imaginar que a política seja intrinsecamente maligna. Quando um conservador destaca a precariedade da política, ele tem consciência de que está apontando apenas para um dos aspectos da questão. Numa época cheia de idéias políticas malignas, não age mal quem destaca o quão perversa a política é, mas isso, no fundo, conforme eu disse, é apenas um dos aspectos da questão. Pois bem, as pessoas em geral desconfiam da política sem considerá-la intrinsecamente maligna. Nesse sentido, o povo é conservador. É óbvio, todavia, que não estamos no campo da necessidade. Uma visão rígida das coisas apenas exageraria tudo. O caráter das pessoas, bem como de um povo, é passível de giros, da mesma forma que admite uma série de nuanças.

Continuando no campo da opinião modesta, não acho que o problema esteja no povo, porque, além de tudo o que já disse, ele é, por natureza, reagente. Não é na população que devemos, por conseguinte, buscar a fonte de nossos problemas. Eu diria que a principal responsabilidade é da elite letrada, isto é, pessoas mais ou menos cultas com alguma capacidade de influência na sociedade. O leitor encontrará ali toda uma sorte de criaturas as mais crédulas possíveis. O exemplo mais eloqüente foi o assentimento que parte dessa gente sempre deu a Lula, crendo que, uma vez no poder, o infeliz salvaria a nação. Essa cegueira se alastrou e contaminou o povo. Por outro lado, é nessa mesma elite que encontramos todo o gênero de reformadores sociais, que sempre visam a política como ferramenta fundamental, ou politizam todas as esferas da vida, o que é rigorosamente idêntico. Eu diria até que é essa classe que mais considera que "o voto é a arma do cidadão".

Para finalizar, e sendo ainda mais repetitivo, o povo ignora os fatos políticos simplesmente porque está pouco ligando para a política, enquanto a elite letrada o que mais faz é se haver com eles. Ora, amável leitor, quem você acha que é verdadeiramente cético?

Monday, September 01, 2008

A beleza é objeto de contemplação

Houve uma semana, cujo mês escapa vaidosamente à lembrança, na qual o acaso me presenteou com seguidos filmes da Jennifer Connelly. Enquanto desfilavam Hulk, Água Negra e outros, eu prestava mais atenção na atriz que nos enredos. Embora outras atrizes sejam ainda mais belas -- mas, diga-se de passagem, Jennifer Connelly está bem longe de não ser atraente -- o que mais me chama atenção na atriz é aquele dado tão difícil de precisar mas que costumamos chamar de "graça".

A avaliar certas fotos que andam circulando por aí, a atriz parece ter adotado a equívoca moda da magreza compulsiva. Jamais pude entender como as mulheres vislumbram alguma beleza no esqueleto -- porque nós homens, pelo menos geralmente, não apreciamos ossos. É mais chocante quando a pessoa, dotada de tanta beleza natural, força a si mesma em caminho contrário, certamente por causa de conselhos tenebrosos.

Deixemos, caro leitor, as divagações aquietadas. Alegremo-nos com a graça e a beleza da Jennifer Connelly.



Prototipia emasculada e inerte do corriqueiro, em poligamia branca com todas as realidades imbecis e inexpressivas da vida

Passeando pelo excelente blog de Antonio Fernando Borges, deparei-me com uma crítica extremamente cativante a Machado de Assis por parte do Pe. José Severiano Resende. De acordo com a sapiência do clérigo, a obra de Machado de Assis não passa de "Prototipia emasculada e inerte do corriqueiro, em poligamia branca com todas as realidades imbecis e inexpressivas da vida.” Ora, confesso ao distinto leitor que há anos venho me esforçando para criar uma frase tão casquilha. Por conseguinte, ela será meu lema, a partir de agora, para uso em todas as situações possível e impossíveis, seja como insulto, seja como descrição orkutiana, superando o "apostrofá-lo-ei com doestos e vitupérios incandentes" que li há quase uma década numa coluna divertida de João Ubaldo Ribeiro.

Se eu pudesse fazer mais um elogio às exuberantes críticas do padre e daqueles que o acompanharam, diria tão-somente que foi-se o tempo em que até a fala mais caturra exigia alguma sofisticação, ainda que beócia.

Sunday, August 17, 2008

De um aparente dilema marxista

Para mim, um dos mistérios mais insondáveis do universo é entender, do ponto de vista marxista, por que Cuba exerce um fascínio tão comovente em nossa elite intelectual e governamental, bem como na América Latina. Por mais que eu tente raciocinar de um ponto de vista marxista, a única explicação que encontro é que os esquerdistas latino-americanos estão profundamente hipnotizados por aquilo que Marx chamava de "superestrutura": produção simbólica que inicialmente emerge de um dado sistema econômico mas que ao longo do tempo entra em contradição com o desenvolvimento desse mesmo sistema econômico. Contudo, seria imensamente paradoxal -- ou irônico -- que os próprios esquerdistas, que se julgam aptos a vislumbrar os reais fundamentos da conduta humana através de uma doutrina científica, fossem eles mesmo engolidos pela máscara ideológica de uma forma tão cândida. Na realidade, seria até absurdo que uma teoria que eles apresentam como suficiente apenas servisse para enganá-los de modo miserável. Ademais, seria interessante compreender até que ponto o modo de produção exercido em Cuba e as relações de produção existente por lá estão ligadas. Será que tudo o que é dito em Cuba não passa igualmente de mera máscara ideológica? Se for assim, nossos caríssimos intelectuais latino-americanos, bem como nossos governos, estão como o burro a correr atrás da cenoura, tocados por uma estrutura econômica que eles julgam entender mas sem a menor idéia do que estão falando.

Naturalmente estou me esforçando a raciocinar como um marxista, o que me levou a esse aparente dilema. Ficaria mui grato se algum marxista pudesse me ajudar.

Friday, July 18, 2008

Concordo com o que Omayr disse

Ainda que eu possa correr algum perigo de atingir a mim mesmo, embora faço de antemão penitência por qualquer prática levemente semelhante que por acaso eu já tenha feito, preciso concordar com este post de Omayr sobre deslumbramentos, embora minha ojeriza não seja radical -- há uma fonte de humorismo inesgotável nisso --, e só não concordo ainda mais porque não tenho condições de polemizar a respeito da qualidade das traduções do latim.

Não cito exemplos de blogs deslumbrados porque são legião, ainda que alguns blogs que eu gosto caiam nesse vício, em maior ou menor medida. Cinco minutos de pesquisa já bastam.

Se eu tivesse um magnífico domínio de vastas línguas estrangeiras, eu já teria escrito um livro em inglês que tivesse expressões greco-espanholas, em caracteres góticos, declinado em latim, com notas de rodapé em alfabeto hebraico e com a advertência de que sua completa inteligibilidade só seria possível caso ele fosse pronunciado num misto de francês e alemão. Seria a apoteose do linguajar macarrônico. Dedicaria aos meus queridos compatriotas três volumes: aos iluminados pelas letras, distantes do realismo bárbaro nacional, um volume sobre literatura, destacando a literatura anglo-saxã; aos doutos estudiosos de filosofia, impregnados de status quaestionis, haveria um volume dedicado especialmente a Platão e Aristóteles; aos pietíssimos leigos que se acham verdadeiros padres e aos padres que se acham verdadeiros leigos, minha homenagem seria um volume dedicado aos santos, referência maliciosa a certas práticas religiosas nacionais. Quanto aos esquerdistas e ateus, como eles não lêem nada ou entendem tudo errado, minha homenagem seria um piparote.

É provável que essa obra não tenha uma boa acolhida, mas, em tempos democráticos tão magníficos como o nosso, ninguém poderia me acusar de não distribuir homenagens a todos, sérios e não sérios. E com isso, adeus.

Monday, June 23, 2008

Ainda do comportamento feminino

Continuando na clave do meu torpor acerca de determinados comportamentos femininos, eis que ontem, mais uma vez, vivenciei por alguns instantes a incredulidade. Estava eu esperando o elevador, eu, com aparência de mata-mouros, cansado após a peleja dominical, hirto e divagando acerca da lentidão do elevador do meu prédio e de outras maravilhas do mundo moderno, tantos acidentes aristotélicos agindo sobre meu ser, quando de repente eis que apareceu uma garota ao meu lado. Não a encarei, mas obviamente não pude deixar de notar o seu reduzido porte, quase a metade do meu. Contudo, mal o elevador tendo chegado e eu esboçado um movimento para abrir a porta, subitamente aquela criaturazinha me flanqueou da direita para esquerda, num movimento tão rápido que mal pude contemplar, abriu a porta do elevador e tacitamente me convidou a entrar. Não pude deixar de sorrir e dizer um muito obrigado em tom meio zombeteiro.

Aquela criaturazinha foi bastante simpática e adorável quando abriu a porta para mim. Todavia não me julgo tão desprovido de músculos a ponto de exigir semelhante gentileza de alguém que é visivelmente ainda mais fraco que eu. Talvez eu devesse ter presença de espírito e feito questão de abrir a porta do elevador, mas aquela situação me causou tanta surpresa que me senti constrangido a obedecer aquela pequena mulher, o que aliás prova de modo estranho a influência decisiva das mulheres em nossas ações. Bem poderia ser aplicado a elas o dito de Cristo Jesus: "Meu jugo é suave". Desde que a mulher não seja ditatorial, seu domínio consegue ser extremamente sutil e doce. Agora bem: não estou sendo pessimamente agradecido, muito menos desfazendo da gentil garota, mas semelhante inversão é bastante curiosa porque tão natural. Estou mui distante de reclamar dos mimos femininos, porém esse tipo de delicadeza sempre me deixa inquieto. Por mais que estejamos no séc XXI, sob alguns aspectos pertenço ao séc. XIX, ainda que seja interessante dizer ao leitor que não sou exatamente a pessoa mais cavalheiresca do mundo.

Tuesday, June 17, 2008

Das universidades

Se há de fato uma dúvida séria a respeito da qualidade das universidades, acho que a questão deve ser colocada de forma mais ou menos objetiva, embora a sensação de desamparo que muitas vezes os estudantes têm não possa ser negligenciada de maneira nenhuma. Ela tem os seus direitos legítimos no conjunto da análise. Infelizmente não tenho como fornecer uma regra de ouro para tal análise, porém imagino que seria útil averiguar detidamente qual o volume e qualidade -- isto é, a relevância no conjunto dos estudos destinados a cada tema -- da produção acadêmica de cada área, levando-se em conta toda a quantidade de subsídios empregados, tanto em termos financeiros como humanos, ao longo de mais ou menos três décadas, isto, uma geração. Outras universidades ao redor do mundo, de preferência as melhores, deveriam ser comparadas com as nossas nesses mesmos aspectos a fim de fornecer uma base de comparação. Poderia ser interessante também realizar uma comparação entre a produção acadêmica e não-acadêmica, no sentido de checar até que ponto a produção acadêmica em cada área é ou não superior ao que vem sendo produzido fora das universidades.

Apenas para ilustrar em termos o que eu disse, lembro-me que há seis anos a UFRJ tinha dez professores para cada aluno e uma proporção semelhante de funcionários para cada aluno. São números que deveriam indicar uma enorme disponibilidade de recursos humanos, porém não só era comum haver reclamações de falta de professores e funcionários como o problema parecia existir de fato em determinadas áreas. Um dado sobre a USP de quase oito anos atrás é que ela gastava mais de 94% de seus recursos com folha de pagamento, o que aliás não parece ser exceção à regra das estatais, posto que numa palestra que vi de um comandante do exército há muitos anos ele disse que quase 90% do orçamento militar era destinado à folha salarial. Não posso dizer como a situação é atualmente, mas não creio que tenha havido mudanças radicas. Creio igualmente que a situação da USP seja semelhante a de muitíssimas outras universidades estatais. Por fim, embora eu não tenha os números, a quantidade de pós-graduados, ao menos em História na UFRJ, a julgar pela expansão dos programas de pós-graduação que tem havido há algum tempo, vem aumentando bastante. A expansão das universidades privadas indica não só o óbvio aumento na quantidade de graduados como igualmente no de pós-graduados em praticamente todas as áreas. Contudo, a sensação de mendicância acadêmica continua bastante evidente.

Na minha modestíssima opinião, levando-se em conta esses e outros dados, as universidades infelizmente vem se tornando há muitos anos um trombolho cuja finalidade é assegurar uma vida confortável a alguns poucos. É menos pela necessidade de conhecimento que pelo prazer de ter altíssimos privilégios a sua razão de ser. A situação consegue ser ainda mais calamitosa pelo fato de haver, como se tudo isso já não bastasse, o aparelhamento ideológico numa série de cursos. Assim, a universidade acaba servindo principalmente a dois objetivos: assegurar privilégios e propagação de manias ideológicas. A famosa "produção de conhecimento" é relevada à categoria de cereja do bolo. Evidentemente há exceções, o que não deveria causar espanto, pois até em Sodoma havia justos. A questão não é saber se existe vida inteligente nas universidades, mas avaliar até que ponto a propaganda da necessidade de haver universidades, e ainda mais estatais, se tornou uma bela fantasia de cordeiro para disfarçar um lobo cruel e voraz.

Sunday, June 15, 2008

Algo a partir do que D. Lourenço escreveu sobre o Orkut

Mais uma vez, D. Lourenço criticou o Orkut. Quando ele escreveu a sua primeira crítica, senti-me realmente tentado a abandonar o Orkut. Já o tinha feito antes, provavelmente devido àquele motivo lembrado pelo sábio monge: "o vazio dos jovens é tamanho que eles cansam de si mesmos também". Não o abandonei pela segunda vez, mas praticamente as minhas atuações orkutianas se resumiram em combinar os jogos com meu time de pelada, já que é mais prático assim do que telefonar para cada um.

Pois bem, ainda que as minhas palavras tenham algo de hipócrita, posto que sou usuário, meu maior incômodo não é tanto com o Orkut, mas com essa nossa propensão extraordinariamente moderna de publicidade da vida. Ainda não pensei muito bem sobre o tema, mas creio que carregamos de fato um homem-massa escondido no coração. Embora na maior parte das vezes tenhamos opiniões sumamente tolas, sentimos uma estranha necessidade de compartilhá-las, supondo que haja alguma centelha de genialidade escondida nelas. No fundo está a necessidade de exibição de nós mesmos, como se puséssemos a nossa pessoa num estandarte e saíssemos desfilando com ela, por mais tolos que sejamos. Disso resulta, naturalmente, na publicidade de cada aspecto da nossa vida, por mais insignificante que ele seja, como se o mundo não pudesse dar mais uma volta em torno de si mesmo até que o maior número possível de pessoas saiba da nossa existência, supostamente espetacular a ponto de servir como matéria de publicidade. Cada um de nós acaba sendo um exibicionista em potencial, às vezes em grau heróico. Não é nada espantoso que tudo se torne de interesse público, desde as opiniões até os relacionamentos mais íntimos.

Enquanto somos propagandistas de nós mesmos, no campo político surge o Estado policial. Não sei até que ponto existe uma relação de causa e efeito entre ambos, porém a falta daquilo que toscamente chamarei de "consciência real de intimidade" facilita bastante a atuação de qualquer Estado policial. Se nós mesmos nos fichamos gratuita e alegremente, conforme o sucesso do Orkut não deixa mentir, por que o mesmo não poderia ser feito em nome do Estado? O culto a nossa personalidade, esse exibicionismo de si mesmo, pode desembocar, em termos políticos, na mais completa submissão ao poder do Estado. Talvez seja uma conclusão um tanto precipitada, embora mereça alguma atenção.

Thursday, May 29, 2008

Breve reflexão sobre uma coisa qualquer

Ontem eu pude experimentar o quão próxima e surpreendente pode ser a maldade, pois assim que mencionei o meu desejo de assistir a "A Noviça Rebelde" para minha mãe, ela, essa que me fez vir ao mundo, soltou aquele som característico de quando colocam em dúvida o gênero alheio, para usar uma expressão a um só tempo pedante, estranha e da moda. A última vez que tomei conhecimento de algo ligeiramente semelhante foi quando fofocaram para mim que a mãe do meu tio dissera em certa ocasião que eu era demasiadamente educado, destilando no ambiente a sua pérfida intenção. Agora bem: nem só de desconfianças convivo. Há vários anos, enquanto alguns amigos e eu trocávamos insinuações peraltas acerca da sexualidade de cada um de nós, uma amiga partiu sincera e seriamente em defesa da minha honra masculina, cousa que me deixou mui orgulhoso. Todavia, refletindo com a sabedoria de quase uma década de intervalo, suponho que houve uma inversão total de valores durante o ocorrido, já que foi uma mulher que defendera a minha honra. Se esses tempos não fossem tão originais, algo dessa monta jamais teria passado despercebido.

Ainda que pareçamos uns mata-mouros, solteirice e razoável trato cordial são hoje em dia considerados um pé na veadagem. Segundo o observador moderno, quem quer que seja assim estará prestes a assumir a sua condição e por conseguinte tombará de quatro rapidamente por força das circunstâncias. Isso explica em parte a constante necessidade de mentir dos rapazes acerca de suas relações amorosas, algo aliás que não sei se é tão freqüente entre as moças.

Parece-me fato inequívoco que em não poucas ocasiões as mulheres assumem um comportamento viril. Peço licença ao leitor para contar um episódio. Certa vez eu vi um casal em frente a um bar. A mulher, devido às suas roupas, aparentava ter acabado de sair de uma academia, enquanto seu companheiro parecia ter saído de um escritório. Os dois estavam parados diante do bar decidindo o que fariam. Mal tendo eles tomado a decisão, qual não foi a minha surpresa quando a mulher resolveu entrar no bar para buscar uma mesa, depois duas cadeiras, em seguida uma terceira a fim de acomodar sua mochila e a maleta do homem e, não satisfeita com tudo isso, ainda buscar a cerveja e os copos. Eu, que a tudo observava do meu apartamento, permanecia incrédulo. Mais espantoso ainda era o fato de a mulher também sempre tomar a iniciativa dos beijos, já que o homem estava um tanto apático. Todavia, a fim de evitar recriminações tão-somente àquele pobre cidadão, lanço mão de minha própria experiência. Em pelo menos duas ocasiões em que fui a lanchonetes com alguma amiga, sucedeu o mesmo fato: sem mais nem menos, elas tomavam a iniciativa de ir buscar o que comeríamos, mesmo sob os meus mais vigorosos protestos. Houve também a vez em que fui prontamente abrir uma porta para uma amiga grávida passar, ao que ela tomou a dianteira e ainda por cima disse que não precisava. Insisti, dizendo que seria um prazer me sentir útil, porém ela declinou. Horas antes, quando decidi lavar a louça de sua casa por pura cortesia, ela não só me proibiu, tomando a tarefa para si, ainda me dirigiu para o labor desonroso de evitar que seu pequeno cão mordesse umas caixinhas de sucrilhos que estavam suficientemente próximas de sua tentação.

Por puro capricho, menciono ao leitor que já disputei futebol com mulheres, mas sempre deixando de usar uma força excessiva. Que o leitor não me considere pretensioso, mas joguei como se fosse os EUA em guerra no Vietnã: deixando de usar o que tinha de melhor para ficar próximo do nível do adversário, e perdendo ocasionalmente.

Certamente muitos casos semelhantes poderiam ser trazidos à tona pelo leitor, mas não é a ele que dirijo minha perplexidade, mas à leitora. Talvez ela possa me explicar tão estranhos fatos.

Monday, May 19, 2008

Uma notícia injustamente esquecida por mim por puro desleixo

Já tive oportunidade de reclamar do pedido de perdão feito pelo cardeal Renato Martino na época do julgamento de Saddam Hussein. Pois bem, por mais que eu discorde desse e de muitos outros comentários políticos seus, tenho de confessar que cometi um deslize por puro desleixo. No ano passado, deixei de citar as suas corajosas palavras contra a decisão da Anistia Internacional de apoiar o extermínio sistemático de seres humanos que ainda não nasceram, coisa vulgarmente conhecida como aborto, bem como sua atitude diante do término da cooperação do Vaticano com essa organização. Fiquei muito contente quando soube dessa notícia e desejei escrever a respeito, porém acabei deixando a idéia na gaveta e só fui lembrar dela com quase um ano de atraso. Mas como diz o ditado, a justiça tarda mas não falha. Fica então reparada a injustiça.

Thursday, May 15, 2008

Do quase fanatismo livresco

Hoje, eu, em pé na cozinha, segurando algo para beber, sem camisa, meditava sobre a destemperança de meu fogão. Ignorando completamente o ensinamento grego segundo o qual a virtude é medíocre -- eis uma prova clamorosa de minha má interpretação da sabedoria antiga --, ele insiste em oferecer apenas duas opções de acendimento: um quase nada ou fogo excessivo. Assim, todas as vezes que preciso assar algo no forno, vejo-me obrigado a optar entre o cru -- notai como um simples r torna tudo mais galante -- e o queimado. Sou obrigado a manter prontidão constante, até porque às vezes o fogo baixinho some e a boca só assopra gás. É preciso mudar de vida, ou melhor, de fogão.

Se eu fosse mudar o que tem de ser mudado, passaria a viver num pesadelo heraclitiano. Ademais, como um brasileiro exemplar, prefiro me lamuriar pela falta de vinténs. Na realidade, minha questão com dinheiro vai mais além, porque anos de pouquidão monetária me ensinaram a necessidade de poupar e de estabelecer prioridades inabaláveis. Dada a minha natureza, converto dinheiro normalmente em livros, e de preferência usados. Meu cérebro opera então do seguinte modo: se há um filme interessante em cartaz, em seguida penso no custo e na quantidade de bons livros usados que eu poderia comprar. Este procedimento fatalmente me faz dar adeus ao filme. Julgo até que esse modo de operar do meu cérebro permaneceria semelhante na hipótese de eu receber alguma fortuna. Todavia é bom deixar claro, antes de me acusarem de hipocrisia devido aos meus gastos com Internet, TV a cabo e sorvetes, que minha teimosia livresca nunca se transformou em obstinação fanática, exceto naquelas situações extremíssimas em que tudo é válido em nome da sobrevivência.

Conquanto tudo isso seja verdade, confesso ao estimado leitor que já me pus a cogitar se seria mais do meu agrado a companhia de alguma bela dama ou assistir a aulas de algum grande mestre. Entre a companhia da belíssima Ana Paula Arósio e uma aula de Aristóteles, o que o leitor escolheria? É uma pergunta algo sofística, pois envolve comparação entre gêneros mui diversos -- na verdade é apenas um esclarecimento àqueles que transbordam de maldade no coração. O fato insólito de eu ter me feito essa pergunta e ainda por cima ter claudicado na resposta é um indício de como funciona meu espírito. Preciso dizer, em todo o caso, que já ofereci uma resposta certa vez, mas será um prazer deixar a curiosidade do leitor insaciada.

Àqueles que compartilham desse meu espírito, um bom adeus, e àqueles que consideram tudo isso uma grande disparatada, também.

Wednesday, May 14, 2008

Dos pré-candidatos à prefeitura do Rio

Outro dia um amigo, com autêntico sadismo, listava-me os possíveis candidatos para a prefeitura do Rio de Janeiro, ao que eu respondia a cada nome como Xerxes quando informado do malogro de sua expedição: ai!

Levando-se em consideração qualquer que seja a pobreza de espírito que assolará a capital, este senhor que atualmente nos governa já não me parece mais tão péssimo, afinal de contas não é defensor feroz das drogas, não é apologista contumaz do aborto e de regimes totalitários, nem é fiel receptador de ingênuas esmolas. É portanto provável que sigamos na nossa longa idade das trevas. Daí ser útil aprender que da mesma forma que é comum na natureza a carcaça se tornar uma bela iguaria de chacais e demais carniceiros, no mundo dos homens uma cidade e um país em acentuada decadência são o prato cheio dos mais tenebrosos políticos.

Friday, May 09, 2008

Artur da Távola (1936-2008)


Soube há pouco do falecimento, hoje, do senador Artur da Távola, a quem destinei simpatias desde quando, há oito ou nove anos, assisti pela primeira vez ao seu programa Quem tem medo da música clássica. Seu objetivo era oferecer música clássica a ouvinte calouros. Sua intenção de disseminar cultura era realmente sincera, cousa rara nesses estranhos tempos. Ele participava igualmente de outros programas, tal como um na Rádio MEC cujo nome me escapou.

Sua condição de saúda andava precária há algum tempo. Pude notar isso quando ele, visivelmente debilitado, insistiu em apresentar mais um de seus programas na TV Senado. Causou-me admiração, pois haveria maior demonstração de seu sincero desejo de difundir cultura? Desejei que ele tão logo se recuperasse, mas confesso que vê-lo daquele jeito não me deu muitas esperanças. Recebi portanto a notícia de seu falecimento sem muita surpresa.

Eis o seu derradeiro post:

EMBORA ENFERMO DESDE AGOSTO DE 2007, COM RISCO DE VIDA, NAS BREVES OPORTUNIDADE EM QUE NÃO ESTEVE INTERNADO, O TITULAR DESTE BLOG NELE NÃO MAIS PÔDE ESCREVER. ELE FICOU ABEERTO SUJEITO À INTERFERÊNCIA DE INTERNAUTAS QUE SE COMPRAZEM EM ENTRAR EM DOMÍNIOS ALHEIOS.

EMBORA NÃO MAIS INTERNADO EM HOSPITAL PROSSIGO EM TRATAMENETO DOMÉSTICO E ASIM SERÁ POR ALGUM TEMPO.NESSAS CIRCUNSTÂNCIAS PEÇO DESCULPAS A QUEM O PROCURE. ELE ESTÁ MOMENTÂNEAMENTE CONGELADO POR SEU TITULAR. ESPERO VOLTAR NA OLENITUDE DE MINHAS POSSIBILIDADES DENRO DE DOISOU TRÊS MESES.
E CONTO COM SUA COMPREENSÃO.

FRATERNALMENTE

ARTUR DA TAVOLA



Despeçamo-nos com a frase que mais soía dizer no programa: "Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão". Fique com Deus.

Thursday, May 08, 2008

Dos blogs carolíngios e do parcial fim dos bons blogs de antanho

Meu cumpadre Carlos, em seu furor iniciático, pôs-se a criar não um, mas dois novos blogs, perfazendo assim uma trilogia, se é que posso chamar assim, blogueira, ainda que o seu antigo endereço blogspoteiro -- ó tempos, quase deu um puteiro -- naufragasse quase completamente. Tudo isso que eu disse é, todavia, acochambração, afinal ele já criara outros blogs até chegar a essa trilogia, mas como o número três, por evocar a trindade, é mais belo de ser dito, fiquemos com ele com um entusiasmo fanático.

Ele me disse que era ótimo para criar blogs e ruim para mantê-los, ao que eu respondi, ele e sua noiva poderão dar fé, que meu cumpadre é um ótimo arroz de festa. Agora bem: sou o último cidadão desta gloriosíssima república a reclamar disso, afinal eu mesmo toco o meu blog de maneira assaz canhestra.

Ligo-os evidentemente a este blog, muito embora não me seja permitido cogitar se graças a isso haverá maior freqüência em seus novos endereços. Como minha mentalidade a respeito de números e estatísticas é sumamente medieval, desconheço quase completamente dados referentes a este meu próprio blog, embora a quantidade de comentários seja algum indício -- insuficiente, claro está.

Seja o leitor devidamente informado. Os blogs do Carlos inaugurados há mais ou menos tempo são o Ad Dexteram e Minhas Circunstâncias.

Já que a pauta hoje são blogs, houve o anúncio do naufrágio do famoso portal Wunderblogs. É possível ao urubu esfaimado saborear as carcaças ainda expostas, pois, muito embora tenha sido decretada falência, a navegação por lá permanece viável, ao menos por algum momento. Sinto-me mal porque tanto gostava do portal como isso ocorreu oficialmente após eu ter mencionado minha admiração pelo blog de Alexandre Soares Silva, coisa que o leitor poderá ler em algum post anterior. Alguns membros migraram para outro portal, o Apostos. Confesso que imaginei até escrever uma obra magna em oito volumes chamada "História e declínio dos Wunderblogs", ao que minha preguiça, fiel amante, e meu bom senso, às vezes vivo, me impediram.

Perdoe-me o leitor pela declamação velhaca que farei, mas houve um tempo, e aqui não critico os que hoje existem, em que havia uma grande quantidade de excelentes blogs. Talvez dizer que havia uma grande quantidade seja mui expansivo, mas isso não isola da verdade o fato de ter havido vários excelentes blogs, ao menos para meu alvitre. Podiam ser muito ou pouco conhecidos, algo que em nada influía na ótima qualidade apresentada. Um por um, todavia, eles foram dando um último suspiro, como ocorrido com Gradus ad Parnassum, Alexandrinas, Despoina Damale etc. etc. etc. Os veteranos, contudo, deram espaço a muitos novatos, de maneira que o exemplo, aparentemente, não fora em vão. Apenas lastimo que muitos dos bons blogs de antanho tenham naufragado quase completamente.

Breve lembrança de idas ao dentista

Animou-me a escrever algo a desdita da Cris ao arrancar seu siso. Tenho de admitir que quase caí na tentação de dizer que seu siso era caro, porém seria uma audácia da minha parte, pois nunca fomos apresentados e, agora que foi extraído, não o seremos mais, exceto, é possível, quando soar o momento dos mortos se levantarem. Que fique ao leitor piedoso a mensagem.

Mas eu falava, ou melhor, dizia da inspiração momentânea. Pois bem, eu também passei por uma experiência dessas, quando me divorciei dos sisos superiores há dois anos. O que me causou espécie não foi a extração em si, pois, exceto uma agulhada dolorida na hora de fazer o ponto, minha dentista conduziu tudo com enorme habilidade. O problema foi depois, já que meu modo de falar por cerca de meia hora ficou mui semelhante ao do veteraníssimo Sylvester Stallone. Cheguei a fazer uma troça do fato à dentista, porém ela não considerou muita graça nisso e riu tão-somente por piedade de mim, eu, que ainda por cima era obrigado a lutar contra uma baba que insistia em passear mundo afora.

O leitor não poderia viver sem saber também que minhas experiências ao dentista não foram somente aquelas. Eu já era veterano quando do ocorrido, pois eu havia sobrevivido sem traumas a um tratamento de canal. Diga-se de passagem que só consenti em ser submetido a esse tratamento porque conduzi uma situação precária até o derradeiro instante em que passei a sentir furiosíssimas dores de dente. Ignorei o que houve com muitos a minha volta e sofri, o que confirma os dizeres homéricos a respeito dos tolos só aprenderem com a experiência.

Em matéria de desgraça a humanidade se rejubila. Foi portanto natural que me dissessem apocalipses a respeito do tratamento de canal, e eu mesmo, confesso, senti algum prazer quando mencionei o que ocorre durante a extração do siso a uma prima que será a próxima vítima de algum dentista. Todavia não me abalei demais, não por heroísmo, mas por cálculo. Se o tratamento de canal era a única solução, então não adiantaria me lamuriar. Quando a sobrevivência corre perigo, tudo é válido. Foi pensando nessas coisas sumamente dramáticas que busquei um dentista.

Não me recordo o número de sessões de tortura em potencial a que fui submetido, mas sobrevivi intacto, principalmente por causa da invocação contínua a Santo Inácio de Loyola. A recordação de sua impassibilidade quando puseram seu osso no lugar após fratura na guerra me encheu de coragem. Além do mais, ficava imaginando por que espécie de sofrimento um Alexandre Magno e um Carlos Magno tiveram de suportar naqueles tempos tão brutais. Ora, se eles sofreram inumeráveis dores sem anestesia, por que eu deveria chorar havendo à minha disposição anestesia e tudo o mais? Sem jamais deixar de invocar o Santo Inácio de Loyola, fiquei um tanto mais tranqüilo na cadeira do dentista. Fui, portanto, homem, pelo menos enquanto a anestesia surtiu efeito. E para evitar qualquer desdoiro, ela surtiu efeito sempre que foi solicitada.

Como não sou ingrato demais, naquela época me surgiu uma enorme curiosidade de saber qualquer coisa da história da anestesia. Fiz uma longuíssima pesquisa de dez minutos na Internet e descobri de fato alguma coisa, mas infelizmente tudo isso agora está perdido em algum compartimento inacessível do meu cérebro. Impossibilitado de escrever qualquer linha desse assunto, invito o leitor a pesquisar também. Ainda assim, fica, pois, outra homenagem feita por mim àqueles que descobriram a anestesia. E digo outra homenagem porque na época fiz ao meu dentista algum brevíssimo elogio a ela e aos seus responsáveis.

Se Shostakovich se aventurou a criar uma sinfonia em honra à industrialização soviética, espero que algum outro talentoso músico crie uma música em homenagem a algo bem mais universalmente válido, como é o caso da anestesia. E ainda teria algo a dizer sobre o inusitado de ter alguém manipulando literalmente a nossa boca, mas me despeço já, adeus.

Friday, April 04, 2008

Uma feliz Páscoa

Mantendo-me fiel ao meu desleixo, gostaria de desejar uma feliz Páscoa atrasada a todos.

Algumas palavras sobre qualquer coisa

Ainda que seja sumamente ridículo, devo confessar ao leitor que hoje em dia me escapa frivolamente o motivo do nome deste meu querido blog. Sim, frivolamente, porque haveria outro motivo senão a pura gaiatice da lembrança? É precisamente isto, enfim, que me falta, a lembrança. Junto com ela, e me parece bastante evidente, está a perda do fio que liga este que vos escreve hoje à idéia um dia concebida há alguns anos atrás por mim mesmo. É tão-somente a minha teimosia que não me permite modificar o título desse blog, além de ele exercer sobre mim um misterioso fascínio.

Nunca é demais repetir ao leitor que o blog, ou melhor, minha estréia em um blog, não nasceu na primeira data escrita ali ao lado, mas em outra. A verdadeira estréia é anterior coisa de um ano apenas, em 2003, porém o velho blog, também batizado como este aqui, teve breve existência e foi tragado pelas intempéries cibernéticas. Mas o ensaio foi sucedido por outro ensaio, mais breve ainda, donde é necessário concluir que este blog atual é uma re-re-estréia, sendo que nenhum dos outros deixou rastros facilmente visíveis.

Levando-se em conta que praticamente tenho 26 anos, posto que farei aniversário agora em abril e coincidentemente no dia de mesmo número da idade que terei, 26, pode o leitor facilmente verificar que publico alguma coisa desde os 21 anos. Não lembro agora se meus amigos Carlos, Francisco e eu chegamos a desenvolver "O Teocrata" já em 2002, mas creio que sim. Isso quer dizer que venho garrancheando na Internet, sem jamais abrir mão de um amadorismo atroz, há seis anos, isto é, desde meus 20 anos. São, portanto, seis anos de experiências irregulares e amadorísticas.

Sinceramente, é uma diversão tremenda. Isso não significa dizer que é uma frivolidade total, ainda que haja qualquer coisa do gênero. Agora bem: que seria do homem se fosse apenas seriedades e tragédias? Eu mesmo respondo: seria nada, porque teria sido há muito aniquilado pelo peso do mundo hostil. É, portanto, necessário respirar. Todavia, julgo ser necessário deixar claro que, no meu caso em particular, a asfixia universitária que me oprimia me levou a buscar correndo alguma fresta de ar. Eu poderia dramatizar e dizer que foi uma questão de sanidade mental o que me levou a buscar um ambiente paralelo ao que eu freqüentava. Aliás, eu gostaria de mencionar que os belíssimos sites de Pedro Sette Câmara e de Alexandre Soares Silva, e me desculpem os outros que injustamente não foram citados, estejam ainda na ativa ou não, foram e são verdadeiras delícias para qualquer espírito angustiado -- culturalmente falando. Ao menos para este que vos fala, o ambiente universitário carregado demais e eu diria até azedo para nosso espírito. Agora bem: não fosse por tais exemplos, talvez nunca o Carlos teria tido a idéia de criarmos um blog no lugar do o site que já tínhamos.

O que me levou a rabiscar na Internet foi o desejo de expressar alguma coisa diferente do que era obrigado a engolir na faculdade, muito embora, verdade seja dita, a pretensão não acompanhasse e nem acompanhe a qualidade mirada. Na realidade, não demorou muito para eu perceber que a faculdade era um anel que se estreitava quanto mais eu procurava me movimentar de acordo com, por assim dizer, outros ritmos. A algumas pessoas, é possível desligar a si mesmo e levar as coisas de um modo robótico. Infelizmente, tentei por bastante tempo agir assim e não fui muito bem sucedido. Rabiscar na Internet não foi uma válvuda de escape a toda a prova, mas serviu realmente como respiradouro. Talvez o leitor considere o que direi um tanto poético ou algo obscuro, mas poucas são as coisas mais agradáveis do que o sentimento de liberdade retamente guiado pelo que é verdadeiramente bom.

Parece-me um pouco afetado esse modo de dizer, mas não sei como expressar de outra forma tudo o que disse. Muito embora possam parecer afetadas, nem por isso essas palavras carecem de verdade.

Não sei se algum dia justifiquei a existência desse ou de qualquer outro blog que criei. Bom, aproveito a ocasião para solenemente dizer que não há a menor justificativa senão essas que eu disse, seja lá se ficaram claras ou não. Não chegarei ao cúmulo de dizer que este meu blog é auto-justificável, logo necessário, como se fosse um axioma. Que o amável leitor tenha apenas em sua mente essas sofridas palavras, escritas pelo não menos sofrido cidadão que vos fala. E tenha um bom dia.

Monday, March 31, 2008

Bach, Erbarme dich, mein Gott (da Paixão segundo São Mateus)

Meu caro leitor, eis um outro belo vídeo, ou melhor, outra bela música. Ela faz parte da Paixão segundo São Mateus, de Bach. Essa parte se chama "Erbarme dich, mein Gott". Em minha humilíssima opinião, é uma das músicas por assim dizer mais sentidas da história do mundo. É verdadeiramente inacreditável como Bach transpôs tão felizmente para música o sentimento de súplica do fiel arrependido para Deus. São obras assim que parecem nos transportar para um mundo superior. Que o leitor ouça e julgue por si próprio ouvindo essa belíssima interpretação da Julia Hamari. Serão os melhores sete minutos e meio já gastos.



Eis o texto em alemão, seguido por uma tradução em inglês:

Erbarme dich,
Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Schaue hier,
Herz und Auge weint vor dir
Bitterlich


Have mercy Lord,

My God, because of this my weeping!
Look thou here,
Heart and eyes now weep for thee
Bitterly.

Saturday, March 22, 2008

Allegri, Miserere

Levando-se em consideração que estamos no fim da Semana Santa, e continuando a seqüência de músicas pelo Youtube, eu gostaria de indicar ao leitor uma das peças mais famosas da história da música: o Miserere do compositor italiano Gregorio Allegri. É a segunda vez que o indico ao estimado leitor, mas dessa vez teremos a oportunidade de ouvi-lo com uma qualidade maior e graças a uma generosíssima alma que resolveu colocá-lo no Youtube.



Sunday, March 16, 2008

Rossini, Tarantela napolitana

Caríssimo leitor, eu vos deixo com a versão de Rossini para a Tarantela Napolitana, cantada pelo legendário Enrico Caruso. É uma música que particularmente gosto bastante por causa do seu agradável sabor regional, seu ritmo irresistível, sua alegre energia e sua ingenuidade popular. Há tembém de dizer que não deixa de ser divertida uma certa pompa nessa orquestração, o que torna a atmosfera vigorosa da música ainda mais divertida. Como se tudo isso parecesse pouco, a voz de Enrico Caruso torna tudo ainda melhor. Portanto, ligue a tua caixa de som e aproveite os próximos três minutos. Esteja à vontade para dançar.



A letra, inclusive com tradução para inglês, francês e alemão, pode ser encontrada aqui. E para uma comparação, que o leitor ouça a voz de Mario Lanza cantando a mesmíssima música, porém numa versão ainda mais rápida e breve.

Sunday, March 09, 2008

Um último exemplo da superioridade nipônica em relação ao Brasil ou: Jiban é superior à Tropa de elite

Houve grande celeuma em torno do filme Tropa de elite. Sem entrar no mérito, nós, criaturas que pela primeira vez viram a luz entre os anos 1978-84, teríamos de ser os últimos a manifestar grande espanto ou incredulidade, ao menos aqueles que tiveram uma formação espiritual semelhante a minha. A explicação disso é demasiado simples: desde a infância, já conhecíamos alguém muitíssimo superior ao Capitão Nascimento, em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Refiro-me ao policial de aço Jiban. Note bem o leitor que no todo e nos detalhes, o policial de aço Jiban antecipa e supera a qualquer coisa semelhante ao BOPE, inclusive na cláusula estabelecida pelo sábio legislador e citada pelo policial, segundo a qual é garantido ao agente da lei executar um criminoso se as circunstâncias assim o exigirem.



Essa é a prova mais cabal e definitiva da real superioridade nipônica. Enquanto a nação se embasbaca com as ações praticadas pelo BOPE, nós, criaturas desmamadas em séries japonesas, tranqüilamente contemplamos a tudo isso. Por fim, eu gostaria de iniciar uma campanha para encaminhar toda a série Jiban para os nossos sapientíssimos legisladores, pois assim eles terão a oportunidade de refletir bastante sobre o problema da segurança pública.

Dois exemplos da superioridade nipônica em relação a nós

Na humílima opinião deste que vos escreve, o vídeo que o leitor terá a oportunidade de assistir é moral e artisticamente mil vezes superior a praticamente toda a produção de cinema e televisão de nossa pátria, embora o caráter demasiado positivista desse vídeo não me agrade e destrua um pouco o sentido poético da filmagem. Ouso até dizer que a trilha sonora, apenas pelo trecho que nos é permitido ouvir, facilmente supera muito da MPB.



Caso não tenha ficado satisfeito, que o leitor veja um outro, cujo comentário superior, linha por linha, poderia ser repetido neste parágrafo.



Seria impossível para mim, ainda, deixar de lado um derradeiro vídeo, um verdadeiro Gradus ad Parnassum desse gênero tão japonês. Sua qualidade dramática já é caracteristicamente ressaltada na canção de abertura.

Saturday, March 01, 2008

Brevíssimo agradecimento à preguiça

Enquanto Sócrates tinha em si o famoso dáimon que não lhe deixava fazer algo equívoco, eu possuo um que me tem sido bastante útil, embora nada perfeito e moral e teologicamente duvidoso. Todavia, apesar dos pesares, e como este mundo carece de perfeição, eu não poderia deixar mais um ano sem o elogio a essa figura que me tem acompanhado há tanto tempo. Portanto, caríssimo leitor, enquanto o virtuoso Sócrates tinha a companhia de seu dáimon, eu tenho a da preguiça, espécie de dáimon dos pobres de espírito. Seria sumamente injusto eu criticá-la sem discernimento, apesar dos graves ditos de muitos santos. Daí que eu invoco à maneira dos antigos a musa, para que eu possa listar alguns empreendimentos duvidosos que deixei de praticar por causa desse querido e pecaminoso não-ser: filiar-me ao PSB; participar de Centros Acadêmicos ou de chapas; ler uma pilha monumental de textos que hoje em dia apenas jazem em algumas gavetas, enquanto outros provavelmente estão dando algum trabalho a um eventual catador de papel; participar de laboratórios de estudos acerca de peripécias em Angola e Moçambique; ir a passeatas, embora tenha sido bastante agradável o final de uma em que participei etc. E muito mais eu listaria, se para tanto trabalho não fosse tão longa a preguiça.

Friday, February 01, 2008

Uma galinha mexicana seguiu o conselho mui sábio de Herr Smith

Vejam vocês como a vida imita a arte. Acabei de saber que no México estão botando ovos verdes. Infelizmente não foi ainda uma pessoa, como Herr Smith desejava, pois o método tradicional ainda vigora: uma galinha chamada Rabanita foi a autora da proeza. Celebremos tal feito belíssimo e torçamos para que logo alguém faça o mesmo que Rabanita e bote ovos inusitados. E bom dia.

***

Galinha "Rabanita" atrai atenção ao pôr ovos verdes
http://www.tvcanal13.com.br/noticias/galinharabanita-atrai-atencao-ao-por-ovos-verdes-13156.asp

"Rabanita", uma galinha que em um primeiro momento parece ser uma ave normal, vem chamando atenção na província de Huecatitla, no México, ao colocar ovos em tom esverdeado.

Até agora, ninguém conseguiu dar uma explicação para o fenômeno, afirma Elvira Romero, dona de Rabanita, mostrando orgulhosa um cesto cheio de ovos verdes.

Esteban Rosas, o marido de Elvira, assegurou que "todo mundo da cidade veio ver, porque ninguém acreditava".

A dona da galinha exibe orgulhosa os ovos esverdeados.

Elvira agora é conhecida como "a mulher da galinha dos ovos verdes" e até mesmo seu neto, de 11 anos, está fazendo sucesso na escola.

Rabanita é a única das 13 galinhas de Elvira que coloca ovos verdes e ela diz estar tomando conta da ave "com todo carinho".

"Não vou deixá-la até que Deus a leve", disse.
Terra
30/01/2008 00:50h

Friday, January 18, 2008

E um feliz Natal

Não considero que desejar com atraso um Feliz Natal seja um despropósito. Gostaria de invocar um exemplo forçado: os Reis Magos só visitaram o Menino Jesus algum tempo depois de Seu nascimento. Ora, se eles se atrasaram um pouquinho, por que eu também não poderia? Portanto, desejo a todos um Feliz Natal.

Um feliz ano-novo atrasado

Gostaria de desejar muitas felicidades aos amigos que freqüentam, assim imagino, este mal escrito blog, pois, afinal de contas, novamente o enorme pedaço de pedra que habitamos e flutua no espaço graças a várias tensões físicas que equilibram os corpos no universo vai, de novo, dar outra volta ao redor de um astro que por sua vez também dá uma volta ao nosso redor, caso você, ó leitor, se coloque como referencial do movimento. Todos sabemos que este fenômeno é um acontecimento sideral interessantíssimo, afinal de contas são vários globos interagindo no universo, criando aquilo que certos homens com imagem poética mais dilatada costumam chamar de harmonia das esferas, algo que, em termos práticos, não servirá nem para você ter um emprego melhor, nem para cozinhar mais decentemente, nem para acordar sempre no horário, nem para contar uma agradável piada – desconsiderando, é claro, a querela a respeito do valor da astrologia. Não podemos esquecer também que é muito mais bonito desejarmos felicidades duas ou três vezes por ano, e isso por causa de uns poucos motivos: o que se faz só de vez em quando mas com certa pompa nos parece mais aprazível e menos vulgar; porque o Natal e o Ano-Bom sempre são motivos de júbilo, e também o aniversário, mas este é opcional porque esquecível – o dos outros, claro está; e, finalmente, porque consideramos louco perigoso quem deseja toda hora felicidades ou quer nos abraçar demais. Seria muito ridículo desejarmos felicidades todos os dias, exceto no caso de Deus, pois a criação é leve para ele, ou seja, boa e feliz.

Deixemos porém este prefácio um tanto formal a fim de conhecermos algo sobre um notável senhor, que chamarei de Herr Smith. Era um homem dado a originalidades, ou seja, bastante excêntrico. Vejamos o que ele disse quando ouviu os tradicionais votos de felicidade, numa roda de amigos, durante uma virada de ano:

-- Escuto, amigos, vários votos de felicidade e de saúde. Pois eu desejaria a todos vocês que pusessem ovos.

Naturalmente o mundo ficou chocado, e isto era exatamente a intenção de Herr Smith. Se o mundo fosse chocado, surgiria algo de novo e original. Tal é o poder do ser humano, que se transforma em chocadeira deste enorme globo. Era essa a sua opinião. Mas seria melhor acompanharmos o seu raciocínio:

-- Sabemos que não há nada de novo debaixo do sol. Ora, como haveria num front? O título da obra daquele senhor alemão é desnecessário. Abram as páginas do livro do Eclesiastes e vocês lerão basicamente tudo o que precisam. Novamente nosso mundo dará outra volta, como sempre, ao redor do sol. Portanto, amigos, eu desejaria um ano cheio de surpresas a todos vocês, contrariando aparentemente o ensinamento bíblico. Não me ocorreu melhor pensamento que desejar a todos vocês que pusessem ovos. Evidente que não qualquer ovo, mas os mais elegantes. Homens e mulheres, coloquem muitos ovos, de preferência coloridos!

São esses os pensamentos de Herr Smith. As opiniões a respeito do que ele disse eram em geral favoráveis, seja pelo inusitado da proposta, seja pelo estado ébrio dos convivas. E já que mal saímos da grande festança de Reveillon, desejo igualmente aos caros leitores que coloquem muitos ovos ao longo deste ano que promete tanto dessa vez –- e de preferência ovos coloridos. Ignoremos tristezas e angústias, porque o que importa, com exceção de Deus e de sua legião de fiéis, é que botemos ovos mui elegantes. E aqui me despeço, deixando para todos vocês um último pensamento do caro Herr Smith: “Se os homens pusessem ovos, jamais haveria o flagelo da fome, e se houvesse ovos de ouro, jamais haveria pobreza.”

Se por um acaso o leitor imaginou que nada mais haveria de ser dito, devo advertir que você esqueceu que uma das características das artes de nosso tempo -- incluindo a literatura -- é que jamais sabemos quando algo termina direito, e às vezes sequer entendemos quando e de onde começou, além de muitas vezes nos indagarmos do sentido daquilo que vemos, lemos ou ouvimos. Isso tudo foi para dizer que a parte que segue é uma espécie de epílogo, embora maior que a parte anterior. Vejamos então o resto sem mais desfazer as horas.

Uma senhora, que por razões de sigilo não divulgarei o nome, tendo ouvido de longe o que disse Herr Smith, foi para a sua casa absorta em reflexões. Seu marido estranhou, pois não era muito comum ver aquela senhora tão entrincheirada em divagações. Seu olhar perdia-se na curvatura do mundo, assemelhando-se mais a um boi parado ouvindo alguém berrando para que ele saia do lugar. Mas o marido, ruim observador de pessoas –- e, por conseguinte, com muito potencial para marido traído –-, achou que sua mulher estava apenas em processo de assimilação do novo ano. “O calendário pode ser algo misterioso para certos indivíduos”, foi o que achou. Em seguida coçou de uma maneira gostosinha o queixo e pensou: "Algumas coisas só as mulheres percebem." E assim rumaram para casa, quedos.

Quando o marido virou para o lado e dormiu na cama, a mulher se levantou e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho e viu as marcas da vida. Ao que tudo indicava, a vida foi para ela uma espécie de engenheira de obras incompetente, que busca fazer reformas sem ter um bom plano, apenas conseguindo no final um resultado tosco e disfarçado superficialmente. Isso a teria deixado deprimida se as palavras que ouvira por acaso de Herr Smith não tivessem ecoado dentro de seu frágil cocoruto cabisbaixo. Ela contemplou uma oportunidade de realizar finalmente algo de especial. Animada, pois parecia ser uma linda idéia, trancou-se no banheiro e fico de cócoras, fazendo um certo esforço. Todavia, aquela situação insólita lhe fez pensar numa questão prática –- ao menos para o que ela entendia como prática naquele instante: ela não ouvira qual o modo mais apropriado de se botar ovos. Ora, sabemos que os seres humanos são dados a imitações, e o próprio Aristóteles já fez elucubrações das mais elevadas sobre o tema. Na falta de um modelo humano, a senhora se viu obrigada a imitar o modelo que parecia mais simples e conveniente: a mamãe-galinha. Mas de chofre ela foi constrangida pela verdade, porque não sabia exatamente como uma galinha botava ovos. Seu saber era por demais genérico. Dessa forma, bem entre seu desejo e a consumação desse desejo havia um muro prosaico que, por não se mostrar transponível, acabou se revelando o motor de sua frustração. Uma pequena inviabilidade técnico-prática estava vaporizando o seu sonho. Mas a senhora não deixaria mais uma vez que dificuldades dessem conselho ao desânimo, como tantas vezes houve em sua vida. Foi então que ela tomou uma decisão grave: depois de quase vinte mil anos... perdão, depois de quase vinte anos longe dos livros, ela voltaria a freqüentá-los a fim de se preparar para entrar em algum curso de apicultura! E foi o que ela contou ao marido no dia seguinte. Ele, sendo aquilo que se costuma chamar popularmente de “mosca-morta”, concordou, embora estranhasse. Que diabos ela faria num curso de apicultura?

A mulher passou sete anos estudando para entrar no curso – é evidente. Você não pensaria, insigne leitor, que rapidamente ela voltaria a se acostumar com os estudos, se é que um dia já esteve acostumada, não é mesmo? O conto se tornaria bizarramente inverossímil caso isso acontecesse.

Quando ela enfim entrou no curso de apicultura após tanto tempo, houve muitos festejos. Foi grande a surpresa do mundo. Herr Smith foi convidado para uma comemoração, fato este que o surpreendeu, já que nunca vira aquela senhora mais gorda senão naquela dia. Mas ela fez questão de cumprimentar-lhe entusiasticamente, dizendo-lhe que ele foi um dos motivos de ela entrar naquele curso. Ele nada entendeu e pediu explicações.

-- Herr Smith, não se lembra da vez em que, numa virada de ano, disseste que deveríamos todos botar ovos?

-- Perdão, madame, mas digo muitas coisas, ainda mais em estado ébrio.

-- Imaginei que fosses casado...

-- Hein? Não, não. Eu quis dizer que... Enfim, o que tem essa história de botar ovos?

A senhora percebeu que estava se abrindo demais a alguém que não conhecia direito. Além do mais, não é muito conveniente falar acerca de questões muito graves em eventos sociais. Ela adotou um tom mais genérico:

-- Gostaria apenas de dizer que o senhor inspirou meu ingresso no curso de apicultura.

-- A senhora há de compreender minha ignorância, porém não consigo compreender qual a ligação entre aquela conversa sobre botar e o curso de apicultura.

Com um pouco de dificuldade, a senhora controlou seu desejo de divulgar ao mundo a idéia tão filantrópica de botar ovos. Limitou-se novamente ao mais genérico:

-- Porque o estudioso de apicultura domina a arte da criação de aves e de multiplicá-las.

-- Apicultura? Entendo... Contudo, diga-me uma coisa, amável senhora: a definição que me deste sobre o trabalho do apicultor aprendeste onde por um acaso? Estou bastante espantado.

-- Lembro-me disso desde meus tempos de jovem ingênua. Havia um apicultor amigo de meu pai. Nunca vi o trabalho dele. Mas assim que soube que era apicultor, perguntei o que significava. Ele me disse que cuidava das mais doces, pequenas e tenras criaturas aladas, e que me mostraria seu pinto calçudo em privado assim que eu quisesse vê-lo. Jamais tornei a vê-lo, porque ele e meu pai brigaram. Nunca entendi o motivo. Qual deve ter sido a espécie de passarinhos que ele cuidava, Herr Smith?

-- Não sei, querida senhora, provavelmente alguma que ele tinha dificuldade de manter sob controle. Mas aquele homem parecia ser dado à poesia. Preciso confessar que tua conclusão acerca de ele ter sido criador de pássaros me deixou admirado. Me responda ainda outra coisa, por gentileza: quando procuraste o curso, acaso viste alguma imagem de animais? Umas abelhas, por acaso?

-- Oh, eu vi! Que curioso o senhor ter comentado isso. Vi muitas abelhas. Creio que sejam mascotes da instituição. Havia tantas imagens delas!

-- Amável senhora, percebo, ou melhor, é evidente que serás uma tremenda apicultura. Também estou espantado com a qualidade desse curso que a senhora ingressou. É tudo interessante demais.

Logo em seguida, Herr Smith se despediu, dizendo que urgentemente precisava voltar para casa, pois teria que saber quanto custava o boi gordo. Na realidade, assim que ouviu aquela definição tão heterodoxa da arte da apicultura, ele lembrou das razões que o haviam levado a não mais ir a eventos sociais. Despediu-se e foi embora rapidamente.

E o que aconteceu com a senhora?

Apenas no meio do curso estranhou o fato de jamais mencionarem aves. Fez um esforço mental supremo a fim de lembrar alguma coisa das suas lições de biologia na época do então presidente Washington -– não o George, mas o Luís, bem brasileiro. Como nada conseguia – exceto um escorrer de mucosas pelas vias aéreas – concluiu então que as abelhas faziam parte da classe das aves. Quando ela exprimiu essa opinião durante uma aula, foi motivo de incredulidade da multidão, com a exceção de um rapaz que há algum tempo achava necessário repensar a divisão biológica dos seres vivos, incluindo um componente aí que não fosse necessariamente físico-químico. O que o levou a ingressar num curso de apicultura, é difícil saber. Mas, sentindo-se inspirado pelo que entendeu como audácia científica da parte daquela senhora, encheu-se de coragem e seguiu adiante em suas especulações, o que no futuro se mostrou recompensador, pois, graças a elas, recebeu os mais variados e belos prêmios no campo da pesquisa científica. Atualmente sua hipótese da divisão dos seres vivos segundo uma gradação que considera a potência espiritual como elemento mais importante vai se tornando cada vez mais aceita.

Mas, finalmente, o que aconteceu com aquela senhora? Ela continuou por muito tempo a aplicar, ou melhor, tentando aplicar seus conhecimentos apicuários para que lograsse botar ovos. Para sua lástima, tudo parecia infrutífero, afinal as abelhas e aves não parecem formar um todo harmônico. Todavia, em certa ocasião, ela acordou com um ovo laranja com detalhes em amarelo ao seu lado. Mal tendo percebido isso, uma gotinha de lágrima se formou em seu delicado olho esquerdo e só desceu por ali, porque no primeiro a remela havia construído uma impávida fortificação. E a senhora permaneceria a contemplar aquele ovo laranja com detalhes em amarelo por muito tempo, se não fosse a insensatez de seu marido, que, num momento de puro hábito, pousou a sua busanfa, já alargada pela idade e pela má vontade da natureza, bem naquele ovo, onde talvez houvesse uma vida em potencial. Sua mulher gritou cheia de horror farsesco, mas ele, insensível, apenas supôs que já havia chegado a hora temida de usar fraldas geriátricas.

Saturday, January 12, 2008

O funesto conto do homem que ousou vilipendiar o bebê

Resolveram colocar a criança para falar no telefone com Josué. Um raio de pensamento logrou atingir-lhe: “Pelos céus, não quero falar com esse projeto de bigorrilho, que coisa mais chata.” Mas a mamãe não se deu conta disso e colocou o bebê para falar:

- Fala, filhinho, fala com o tio!

Bebê:

- ...

Josué, tentando parecer simpático:

- Oi, bebê, fala com o titio, fala. – mas pensando: “Ai, saco...”

Bebê:

- ...

Mamãe:

- Olha, ele quer falar alguma coisa!

Josué, tentando parecer simpático:

- Sou eu, o titio, bebê! – mas pensando: “Que ordinária! Não tá vendo que essa coisa não vai falar porcaria nenhuma?”

Bebê:

- ...

Mamãe:

- Fala, bebê, fala!

Josué, esquecendo os rudimentos da vida urbana:

- Espero que você não puxe a retardada da sua mãe, moleque idiota. Seus pais devem ser primos de primeiro grau.

Bebê:

- Gloooshfp!

Mamãe:

- Olha, ele está quase falando meu nome! Ouviu?

Josué, meio assustado:

- Como é que é? – mas pensando: “Será que esse moleque me xingou? Me respondeu? E agora? Olha a merda que fiz... Daqui a pouco esse moleque cresce, vira bandido e me dá uns tiros, tudo por causa disso...”

Mamãe, agora no telefone:

- Ouviu ele falando? Agora ele está todo agitado.

- É, ouvi. – mas pensando: “Se for verdade que as primeiras impressões são as mais fundamentais, inculquei ódio a mim mesmo nesse moleque. Meu Deus, o que foi que fiz?.”

- Vou ter que desligar, ele não me deixa falar.

- Tudo bem, depois a gente conversa. – mas pensando: “Ele deve estar pleno de ódio no coração.”

- Tchau, beijos!

- Espere! Ele está precisando de alguma coisinha?

- Ah, não precisa, está tudo bem...

- Não, que isso, vou levar um brinquedo bem chique dez pra ele. – mas pensando: “Espero que dê para subornar esse moleque, não tô a fim de ser assassinado.”

- Ah, jura? Traz um patinho? Ele adora patinhos! – mas pensando: “Chique dez? O que ele quis dizer?”

- Sim, eu levo. Deixa o titio falar com esse bebê fofo só uma coisinha...

- Não dá, ele acabou de fazer cocô.

- Cocô? – mas pensando: “O que isso quer dizer? É algum símbolo, não me resta a menor dúvida. Preciso raciocinar como se eu fosse uma criança de seis meses, é questão de vida ou morte.”

- Olha, tenho que ir, beijos.

- Ah, tudo bem... Beijos... – mas pensando: “Aniquilei meu próprio futuro, chucrute!”

Josué passou o resto de seus dias apreensivo, olhando sempre de soslaio o filho de sua amiga, suando demais e sentindo seus músculos se contraírem descontrolados, efeito este que o obrigava a fazer movimentos inusitados. Houve o boato de que Josué estava praticando algum tipo de ioga, e muitas pessoas, quando o viam se contorcendo daquela maneira tão original, balançavam a cabeça com aprovação angélica, supondo que ele estava se tornando espiritualmente mais elevado. O fato de ele se tornar mais melancólico confirmava as suspeitas. A senhora De Souza (née Childerica), praticante de um rito cristiano-oriental-cosmológico-panteísta, costumava dizer que aquela melancolia era o resultado de uma profunda desilusão energética, o que era bom, porque resultado da confluência dos poderes magnéticos do seu avatar intergalático com a evolução sumamente pessoal de seu espírito, o que poderia ser resumido com o termo “Hiai”, supostamente de origem assíria. De qualquer forma, certas atitudes suas permaneciam inexplicáveis, como da vez em que Josué, enquanto segurava o bebê, ao mesmo tempo em que o pequeno babava-lhe desmesuradamente, bradou com horror: “Comigo é nove da garrucha trouxada!”, para espanto de todas as criaturas visíveis e invisíveis que se encontravam no recinto. Em outra ocasião, a criança, com idade um pouco mais avançada, jogou-lhe feijão na camisa, o que fez Josué dar um pulo meio canastrão e gritar: “A realidade é uma quimera!” Todos esses eventos tornavam a figura de Josué enigmática, o que lhe dava, ainda mais, uma aura de divino mistério e – para não poucas senhoras e senhoritas – de inacreditável sedução. Quanto ao garoto, perturbava-lhe muito os agrados que o “titio” tão insistentemente lhe oferecia, sem contar aqueles esgares sinistros. Nunca houve explicações. Tudo permaneceu no tenebroso reino do subtendido. Portanto, eis aqui a moral da história: pientíssimo leitor, se tiveres de xingar um neném de seis meses, xingue, porém arcarás com todas as funestas conseqüências enquanto ainda fores habitante deste mundo sublunar e quiçá para depois desta vida.