Wednesday, February 14, 2007

Padre Emílio, pena de morte, e a nossa época maluca

Lendo hoje o Permanência, não tive como deixar de citar aqui as considerações do Pe. Emílio da Silva sobre a pena de morte, em entrevista para A Hora Presente, em maio, 1971. Vejamos um trecho da entrevista:

Padre Emílio acha que nessa matéria "há apenas um ponto de tangência com a ordem moral e que poderia ser assim formulado: Na sua luta contra o crime, sobretudo quando o índice de criminalidade se acha em assustadora elevação, pode o Estado usar de meios os mais enérgicos, inclusive da pena capital, para restaurar a tranqüilidade e a segurança pessoal no seio da sociedade? A resposta tem sido afirmativa na Igreja docente, dos seus primórdios, até o dia de hoje. Ainda mais: o Papa Inocêncio III condenou os hereges albigenses que negavam ao Estado o direito de impor a pena capital aos delinqüentes. Se, pois, esse poder é perfeitamente lícito e aceito pela Igreja em todos os tempos, é ao próprio Estado, exclusivamente, que cabe a incumbência de verificar se é oportuna e conveniente a sua aplicação".

Acha o padre Emílio perfeitamente normal que alguém, em nome próprio, seja contra a pena de morte, "da mesma forma que é normal que alguém não goste da profissão de coveiro, mesmo sabendo que enterrar os mortos é obra de misericórdia". Mas tais opções deixam de ser lícitas, na sua opinião, "quando se passa da estimação pessoal para proferir um juízo moral condenatório sobre esses assuntos. Condenar o instituto da pena capital em nome de princípios cristãos é algo contraditório e absurdo".

O padre Emílio aponta exemplos, de Jesus Cristo -- "que declarou a Pilatos que o poder de infligir a morte de cruz era dado pelo Céu aos governantes" -- a Pio XII, que em seus escritos afirmou mais de 20 vezes "a liceidade da pena capital". É um constante ensinamento -- segundo acrescenta -- de São Paulo, de todos os Santos Padres e Doutores da Igreja, como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, dos teólogos, moralistas e filósofos. "Qualquer catecismo explicado ou tratado de moral -- diz o padre Emílio -- responde que são as seguintes as ocasiões nas quais é lícito matar: na guerra justa, por sentença judicial e em legítima defesa".


O pessoal do Permanência publicou esse trecho em razão do assassinato bárbaro daquele menino aqui no Rio. Quando aparecer algum bispo recriminando a pena de morte, seria bom que alguém lhe desse a entrevista do padre Emílio. Por sinal, deveriam ter feito a mesma coisa quando o cardeal Martino pediu para que poupassem a vida do Saddam Hussein, afinal de contas o ditador iraquiano era um monstro. Mas parece que até o papa gostou do que ele disse, o que deduzo pelo velho adágio "quem cala, consente".

Pois bem, é nessas horas que pergunto aqui para meus botões: esses bispos todos e esses cardeais realmente não sabem disso ou simplesmente dão de ombros? Sou eu um gênio tão maravilhoso que traz à luz uma doutrina contida na própria tradição e que nem mesmo um cardeal conhece, ou toda essa gente não está nem aí para isso? Aproveito para relembrar ao leitor aquele episódio ocorrido há alguns anos, onde um padre fez greve de fome por causa de um rio. Agora bem, e quanto a esse menino? Vai aparecer alguém fazendo greve de fome?

Note bem, meu caro leitor, não estou exigindo mortificações por parte de clérigos. Não. O que estou dizendo é que de repente as prioridades deram uma cambalhota e tudo ficou de pernas para o ar. De repente vejo um cardeal se humilhando perante os holofotes implorando pela vida de um ditador sanguinário e um padre fazendo greve de fome por causa de um rio, enquanto os fiéis são atacados dia após dia por gente impiedosa em todos os cantos do mundo. Para piorar tudo, eu, que não sou exemplo para ninguém, de repente me vejo obrigado, sabe-se lá a razão, a fazer esse tipo de comentário. Êta época doida, sô!

Sunday, February 11, 2007

Deus escreve certo por linhas tortas

OBS: Como escrevi com muito sono, embora não quisesse perder o lampejo, talvez haja um monte de coisas erradas. Depois dou um jeito, se a preguiça, minha companheira, me permitir. Até lá estarei dormindo e/ou longe daqui. Adeus.

Hoje farei uma pequena confissão ao amável leitor desse blog. Os meus primeiros interesses sobre Cristianismo surgiram através de ninguém menos que Nietzsche e Marx, bigode e barba, só faltando o cabelo. Sim, é verdade: o filósofo do anticristo e apologeta do materialismo dialético foram por assim dizer os motores da minha aproximação do Cristianismo.

Qual a razão desse fato tão insólito? A resposta não é nenhum pouco insólita, porque o que me levou a conhecer mais de perto o Cristianismo foi uma espécie de instinto básico e benéfico, que é conhecer mais de perto o criticado antes de abraçar a crítica. Não que eu fosse um exímio conhecedor daqueles dois alemães. Justamente o pouco que conhecia de cada um deles fez com que eu tivesse muita cautela antes de sair repetindo o que eles diziam a respeito de algo que eu não sabia direito. Por outro lado, não que na época eu imaginasse que eles estivessem mentindo ou, na mais inocente das hipóteses, só confusos, porque eu só queria ter uma opinião melhor a fim de poder falar mal com mais propriedade. E aqui vale um adendo: tal como houve a respeito do Cristianismo, minha frônesis me fez ir direto a Platão, também por causa de Nietzsche, muito embora naquela época eu já estivesse tendo uns primeiros contatos com Aristóteles por motivos que agora não vêm ao caso, os quais já começavam a ser igualmente benéficos.

Não sei se o leitor já teve a experiência de seguir (ou perseguir) as palavras de Platão ou da religião cristã. Se já passou por algo semelhante, é muitíssimo provável que de repente se veja num mundo completamente novo e curioso. É incrível a sensação de elevação que algumas leituras de Platão ou do Cristianismo nos dão. Para dizer bem a verdade, é como se de repente fôssemos compelidos a realizar um grande esforço para atingir pontos cada vez mais altos de uma montanha, de onde pudéssemos olhar através de uma perspectiva mais elevada as coisas que se movem nos planos mais inferiores. De repente surgem problemas que nunca nos déramos conta, ou alguns antigos problemões viram apenas distração de criança. E vamos seguindo sempre adiante, como que guiados por mão segura, rumo a um destino que por enquanto é ainda nebuloso. Nesse sentido, é de espanto em espanto que vamos avançando.

Quando tomei contato com o Cristianismo, uma das primeiras coisas que notei é que tudo o que sabia a seu respeito estava na verdade de pernas para o ar. Pior que não saber nada, eu achava que sabia alguma coisa, embora tudo o que soubesse não passasse de um amontoado grosseiro de erro atrás de erro. Não sou nenhum grande estudioso de Cristianismo, mas posso assegurar ao querido leitor que essa religião é tão rica e tão versátil que é literalmente impossível esgotar a sua compreensão. E da mesma forma que ela é inesgotável do ponto de vista de seu conhecimento, sua história também é riquíssima. Mas onde se lê riquíssima também se deve ler complicadíssima. Porque não há nada mais difícil que estudar algo assim tão vivo. Além do mais, o Cristianismo é das coisas mais problemáticas do mundo porque ele abarca todos os problemas mais radicais da nossa vida - note bem, leitor, tanto da nossa vida no sentido da comunidade de todos os homens (vivos e mortos) como no sentido de cada vida em particular.

Não sei bem se o sentimento de espanto em relação ao Cristianismo e a Platão surgiu em mim por causa do ensino distante que tive de ambos. Em todo o caso, aquela frônesis de repente me colocou diante de duas coisas maravilhosas. Não tenho como agradecer a ela. Mas há outro ponto que faço questão de salientar. O exemplo da minha relação com o Cristianismo e com Platão foi me fazendo compreender que eu não tinha a menor idéia do que dizia e menos ainda do que pensava a respeito de muitíssimas outras coisas. Apenas quando nos deparamos com algo verdadeiramente colossal é que sentimos a nossa pequenez. Pois bem, tanto um quanto o outro equivalem a umas dez pirâmides. Só é possivel sentir-se superior a um e outro mediante ua falsificação tão grosseira e tão radical que o resultado último é, sem a menor sombra de dúvidas, a destruição da nossa inteligência.

É uma sensação curiosa quando de repente você sente que as bases aparentemente tão firmes onde você colocava seus pés com confiança na verdade não passavam de palha, e que você só não afundava de vez no poço porque sua cabeça era tão vazia que o ar ali dentro te fazia flutuar. Penso até que, dependendo do grau de desencanto que você tiver com esse falseamento dos dados mais radicais, você pode muito bem afundar de vez. Embora não sejam exatamente nesse sentido, aqueles dizeres de J. Ortega y Gasset, segundo o qual tínhamos de ser tão profundos que tocássemos o fundo do mar, mas tão vivos que voltássemos para a superfície com a mais valiosa pérola, talvez forneçam uma bela imagem do que estou tentando barrocamente dizer.

Posso dizer que de uma forma ou de outra essa sensação imensa de ignorância me salvou de umas poucas e boas. Sim, porque é uma sensação proveniente de um fato real: minha ignorância é enorme. Agora bem, essa incapacidade para lidar com as questões mais agudas poderia muito bem ter sido aliviada pela falsa consciência de superioridade trazida pelos argumentos daqueles dois alemães, assim como de muitas outras pessoas. Poderia muito bem estar aqui comentando sobre a crítica de Kant à metafísica ou ao argumento ontológico. Isto e aquilo têm qualquer coisa de medonhos, e Kant de salvador. Pois bem, que sei eu de metafísica e de argumento ontológico? Como posso saber se Kant está certo se eu não souber de que maneira o melhor metafísico ou expositor do argumento ontológico defenderiam suas teses? Esgotei já o conhecimento da discussão do assunto para poder tomar partido? Ou então eu poderia fazer uma pergunta que de certa forma é ao mesmo tempo lateral e principal: esse assunto, qual relevância ele possui em minha vida? Digo tudo isso porque, a bem da verdade, todos nós temos a péssima mania de começar tudo pela crítica, hábito esse característico de nossa mentalidade moderna, desconfiada de tudo, exceto de si mesma. E quanto mais aparentemente grandioso for o objeto da crítica, quanto mais ele parecer já ter cabelos brancos, como é o caso da metafísica ou do argumento dito ontológico, mais a crítica parecerá essencial e básica. Essa falsa consciência adquirida pela crítica irresponsável é um dos maiores males que fazemos conosco.

(Mais um texto que no dia de são nunca continuará...)