Thursday, September 22, 2005

Conversa fora

Olá, caro leitor, como vai? Andou lendo muito? Você ouviu alguma música interessante? Quer contar alguma coisa? Mas me conte depois, pois embora eu não tenha muito assunto, quero divagar um pouquinho.

Hoje acordei com uma notícia extremamente grave: senhor de meia-idade romeno fratura o pinto depois de se distrair vendo a bela esposa de 25 anos lavando a roupa. O senhor carregava um pesado saco quando se excitou vendo a mulher. Então sem querer deixou o saco cair em cima do pinto, que quebrou. “Não pudemos fazer muita coisa”, disse o médico. “Ele poderá usar o pinto para tudo, exceto relações sexuais”. (Aliás, diga-se de passagem que já escrevi uma pequena história parecida.)

Que azar. Parece que ele tinha uns 50 e poucos anos. É equivalente a ganhar na loteria e logo em seguida ter um enfarte. Que será daqui em diante daquele casal? Se pudesse, eu escreveria um e-mail para eles, afinal de contas nós homens temos entre nossa classe uma espécie de elo empático em assuntos de tão grave (e dolorida) natureza. Se quem me está lendo for homem, ótimo, não preciso me justificar. Se mulher, faça um teste: chegue para algum homem e conte essa história. Na hora, garanto, ele, se for mesmo homem, de alguma maneira sentirá uma pontada de dor também, fazendo mesmo alguma caretinha.

Esse tipo de infortúnio é similar ao que havia com George Constanza. Não, ele não vivia quebrando o pinto ou coisa parecida, mas freqüentemente dava um azar monumental quando tudo parecia bem. O fracasso era apaixonado pelo pobre amigo de Seinfeld. Tudo dava errado. Com certeza aquele sujeito, por tantos funestos acontecimentos contra ele, como se o mundo estivesse contra si mesmo, com certeza ele devia ser gnóstico. Seinfeld era judeu, Elaine não sei, e Kramer... Bem, esse acho que nem Deus explica.

Infelizmente esse assunto que escolhi para abrir este texto é como o sexo: não dá para inventar muito e variações demais podem causar algum mal. É dessas coisas que dão tédio. Mas por falar nisso (em tédio, não em sexo), senti um súbito cansaço com relação ao Orkut. Talvez seja a overdose – embora varie de objeto para objeto –, porque tenho passado tempo demais por lá. Basicamente as mesmíssimas pessoas que conheço fazem parte da minha lista de contato. Logo, por que diabos fico entrando lá? Certo, as comunidades... Estou em mais de cem, o que não é nada assombroso, já que vi com esses olhos aqui que a terra há de comer gente que está em mais de 500 e até mesmo em 999 – o diabo de ponta-cabeça, segundo interpretação “midraxiana” que acabei de fazer. (Quem sabe não viro mestre judeu? Por sinal, certa vez, no Saturday Night Live, um comediante estava andando de um lado para o outro quando quase tropeça num fio elétrico. Ele: “Nossa, quase viro judeu”. Vi faz anos aquilo, mas até hoje fico rindo.) Também vi o perfil de um sujeito gordinho, dos seus 40 e poucos anos e que estava em mais de 500 comunidades dedicadas ao Chavez et magna caterva. Até criaram uma comunidade para o infeliz.

Eu criei uma também: “Saudades da Inquisição”, onde há uma descrição explicando o motivo do nome e tal, mas que ainda assim uma miríade de antas entra para perturbar, ofender e cobrar por explicações. Até com o Holocausto comparam a Inquisição. Por essas e outras dá vontade de ser professor, só para ensinar para uns poucos que a Inquisição estava muito, mas muito longe de ser como o Holocausto, que a Revolução Francesa por exemplo estaria talvez mais próxima disso, etc, etc, etc. E dá vontade também de virar professor só para tentar explicar alguma coisa que valha sobre a Idade Média. E é melhor virar professor que purpurina, muito embora minha vida não esteja pendendo nem para um lado nem para outro. Mas estou fugindo do assunto, ou ele está escapando de mim. Assunto, vem cá, vem.

Há comunidades legais no Orkut, umas bem engraçadas. Mas pude notar, pela “Gilmore Girls Brasil”, que a quantidade de garotas que gostam daquele seriado é enorme. Será que é um seriado-mulherzinha? Que seja, é de boa qualidade, gosto muito. Há outros seriados que gosto bastante, como O.C., Smallville, etc. Detesto aqueles do tipo realidade-escrotíssima, com um de polícia que passa na AXN, ou aqueles com gente sendo dissecada ou hospitalizada. Se eu quiser ver um negócio horroroso desses, basta eu andar aqui pela Rua Mem de Sá, onde tem uma churrascaria entre um IML e um INCA, sem contar os travecos e prédios com aparência de Dresden após o bombardeio aliado. É uma das ruas mais horríveis que já vi. Aliás, já divaguei cá com meus botões várias vezes sobre aquela rua, mas deixo minhas opiniões por enquanto dentro do saco.

Por outro lado, voltando ao Orkut, além daqueles reencontros com fulano que há milênios não vemos e que provavelmente não voltaremos mesmo a encontrar sem ser por lá, e sem contar uma ou outra agradável surpresa – afinal de contas sempre conhecemos gente legal –, o que achei mais legal foi ter encontrado o profile do Olavo de Carvalho. Fiquei desconfiado, achando que era falso, mas depois pude ver que não. É legal visitar seu scrapbook. Infelizmente até lá aparecem retardados insultando-o, mas o filósofo nunca deixa nada passar, sempre insultando na mesma medida, o que é sempre engraçado. Eu só soube que ele também usava o Orkut quando uma vez, numa das comunidades dedicadas a ele, durante uma discussão acerca de um artigo seu sobre o darwinismo, e em meio a uma polêmica, ele apareceu e começou a postar um monte de textos indicando as fontes em que se apoiava para dizer o que disse, além de sair refutando todo mundo. É, Sócrates estava perfeitamente certo quando dizia que era um espetáculo interessante a refutação de supostos sábios: não é à toa que O Imbecil Coletivo (tanto o primeiro quanto o segundo) e vários de seus artigos fizeram e fazem com que o Olavo de Carvalho tenha tantos admiradores – e inimigos, claro, claro. É uma leitura divertida e séria ao mesmo tempo, embora a obra do filósofo seja muito mais extensa que sua parte polêmica.

Bom, chega de divagações por ora. E ótimo dia, leitor, adeus. Ou melhor, me conte o que leu, que música ouviu, o que houve contigo. Sabia que adoro dormir de madrugada? Não? Só espere um minuto para eu pegar o cafezinho. Fique à vontade.

Sunday, September 18, 2005

O início da piada

Todo mundo sabe que um dos principais personagens de qualquer piada de português deve se chamar Manoel, embora Joaquim seja uma variação ou sidekick. E todo mundo sabe que tanto um quanto outro se destacam pela sua absoluta paspalhice.

Muito bem, tive hoje um insight. Todo mundo diz que o Brasil é uma palhaçada, que é uma piada, etc. Não é para menos: nossa república foi fundada por ninguém mais ninguém menos que um Manuel: o Manuel Diodoro da Fonseca. Aquele ilustre senhor não era português, mas tenho certeza que percebeu que bobajada fez e onde se enfiou, já que em um mísero casal de anos pulou fora da presidência. (E olha que nem fiz menção à célebre Proclamção da República, onde dizem que Manuel teria tirado o chapéu e gritado sinceramente: "Viva o Imperador!")

Então a nossa história republicana poderia começar mais ou menos assim:

- Certa vez, Manuel resolveu fundar uma república no Brasil...

Sunday, September 11, 2005

Quem quer ficar nu?

Meus queridos e poucos leitores, já faz um tempinho que penso no seguinte: a vida intelectual é equivalente a ficar peladão numa avenida movimentada.

Ora, mais que o corpo, o nosso mais profundo retiro é nossa própria mente. Só Deus sabe o que cada um realmente pensa. Daí que revelar nossas idéias seja sempre um espetáculo um tanto quanto desconcertante, a menos, é claro, que estejamos bem desavergonhados ou nos comportemos como Adão e Eva, que viviam nus sem saber. Mas o desafio é, tendo comido a maçã da autoconsciência, permanecermos corajosamente nus.

Porém me permitam os quatro amigos leitores uma pequena digressão. Não que eu tenha um belo conhecimento do assunto, mas acho estranho imaginar que a mente e o corpo estejam radicalmente separados. Nesse sentido, apelo às sábias e filosóficas palavras de Drago no Rocky IV: "Se morrer, morreu". O sujeito só voltará no Dia do Juízo Final. Por acreditar nessa grande união, acho que a defesa da intimidade da alma está relacionada à defesa da intimidade do corpo. Isso porque não somos criaturas descarnadas: o que se passa na alma tem reflexos no corpo e vice-versa. Mas notem bem que não fundamento nada porque são apenas impressões minhas. Deixemos então para lá.

Quando o intelectual (seja lá de que ramo for: escritor, cientista, etc) se dá conta de que está, de certa maneira, dando a cara a tapa, surge logo um dilema: prosseguir até as últimas conseqüências ou nunca mais se distinguir de todos, tornando-se membro indiscernível d'"a massa", no máximo um bajulador do povo, um vendedor de feira? Percebam que me refiro ao próprio ofício do intelectual como algo totalmente diverso do comum das gentes, algo que o torna a um só tempo esquisito e transparente, vulnerável, uma criatura singular.

Darei um exemplo de cada atitude.

Pensem vocês nos grandes tempos da Grécia Clássica, onde todo intelectual é de alguma forma cidadão daquela pólis que se tornou eterna para nós. Naqueles idos surgiu uma raça nova de homens. De repente começaram a questionar tudo o que havia entre o céu e a terra, e mesmo o que havia no céu e debaixo da terra. Nada lhes escapava. Todavia, até porque se embriagaram um pouco com suas próprias e estupendas descobertas, entraram em choque com sua própria cultura, com seu próprio povo, sendo então vistos com desconfiança. O famoso Protágoras, no homônimo e maravilhoso diálogo de Platão, chegou a dizer que ele era o único que tinha coragem de se autoproclamar sofista. O termo grego que se ajusta bem a isso tudo é a palavra hybris, que quer dizer desmedida. Pois bem, toda aquela saga humana parecia descambar numa terrível hybris, uma desmedida ambição que parecia não só desconhecer os limites da humanidade como também a menosprezava. Isso era, do ponto de vista antigo, um crime de impiedade. Como se isso tudo já não bastasse, Sócrates teve a "audácia" de descobrir um novo mundo, o mundo interior, afirmando ao mesmo tempo que em nome de sua missão divina jamais cessaria de buscar a verdade, mesmo se terrivelmente ameaçado. Tudo culminou com a sua pena de morte. Ainda assim, aquelas conquistas foram passadas a seus sucessores imediatos, notadamente Platão e Aristóteles.

No extremo oposto temos uma época que morreu há pouco, o século XX. Longe de vermos em tão grande escala homens dispostos a enfrentar a fúria da multidão, armados contra os ataques do mundo, como diria Kleist, o que houve foi, pelo contrário, a revanche d' "a massa". De repente, os intelectuais sentiram não apenas vergonha, mas nojo de si mesmos. Todo seu afazer parecia estúpido e sem sentido. Necessitavam de justificativas segundo o que eles mesmos imaginavam ser o "espírito do povo" ou "a justiça dos oprimidos". Então, na mais perturbadora reviravolta de valores de todos os tempos (mas que teve ensaios sangrentos desde 1789), os intelectuais começaram a se suicidar, blasfemando contra si mesmos, em arroubos incríveis de paroxismo delirante. Esses senhores tomaram para si a estranha missão de defender a justiça, em nome do povo, contra qualquer um que ousasse se elevar dentre os demais. Em muitíssimos casos, como no comunismo e no nazismo, houve mesmo perseguições violentíssimas, prisões em massa, genocídios, etc. Aquela casta era vista como inimiga, podre e corrompida. Consta que o gordo Marechal-do-Reich Göring certa vez disse: "Cada vez que ouço falar em Bildung [formação, no mesmo sentido de paidéia] saco o meu revólver". Nunca foi tão difícil ser intelectual como no século passado (e, por que não?, também nesse começo de século).

Infelizmente a casta intelectual de nosso país constantemente dá uma série de pavorosas demonstrações de temor e tremor ante o seu próprio ofício, preferindo bajular (numa estranha inversão da hybris) "a massa" enquanto envenena seu afazer próprio. Não foi à toa que chegamos a ter o presidente mais tolo de nossa história, amplamente escorado pela nossa fina flor cultural.

Contudo, é preciso explicar um pouco melhor esse problema na vida intelectual que é "a massa", e por que pus esse termo entre aspas. Mas pertenço ao gênero humano, tendo de prestar contas ao animal faminto que compartilha minha natureza. Ai, a fome. E sem contar o cansaço: ser espírito de luz talvez tivesse suas vantagens, embora parece um tanto aboiolado... Aliás, a julgar o céu, parece que hoje será um dia esplêndido. Tenham um bom dia.

Saturday, September 10, 2005

Sunday, September 04, 2005

Homenagem aos desinformados

O marido é interrompido em sua leitura pela esposa:

- Amor, você soube do Katrina? Que arrasou New Orleans?

- "O" Katrina? É drag queen? Ouvi falar. Causou furor em New York.

- Não, amor, o furacão!

- Aquele time do sul? Qual é mesmo o nome? Ferroviário?

- Ai, amor, esquece, vai... Continua lendo isso aí. Que homem mais desinformado!

Então ele volta a ler: "Maria Stuart", de Schiller.

Saturday, September 03, 2005

Os sofrimentos do jovem boi

Dia 1

Querido diário,

Nesta fazenda é tudo muito calmo. Tão calmo e devagar que resolvi escrever um diário, pois eu precisava me distrair. Mas não sei o que dizer, porque nada demais acontece em minha vida. Fico apenas parado, comendo grama.

Não quero deixar de ressaltar a bondade do meu dono. Simplesmente me deixa aqui, no meu canto, comendo, conversando ou dormindo, em sua propriedade. Enquanto isso, briga com seus dois filhos por só quererem passar o dia todinho deitados na rede e vendo TV. Acho que ele gosta mais de mim que deles.

Dia 6

Hoje foi um dia aborrecido para mim. Suponho que todos os meus amigos tenham algum tipo de disfunção mental. Um deles, por exemplo, quando me aproximo e digo "olá!", começa então a babar. Algo me diz que ele sofreu lobotomia.

Ninguém supera, entretanto, um outro. Mal começa a caminhar, defeca. Poxa, isso é uma falta de higiene terrível, por causa de seres assim que a medicina tem tanto trabalho. No meu caso, sempre procuro um lugar reservado. E o pior de tudo é que ele finge que não é com ele quando chamo a atenção: simplesmente ignora minha bronca e vai embora. Nojentinho.

Por outro lado, há um muito, muito enjoado. Ele tem um problema de atenção, porque quando algo lhe desperta interesse, ele fica lá, paradinho, de boca aberta, olhos esbugalhados. Mas quando pergunto o que foi, ele não sabe me dizer nada. Só diz "Hmm".

Meus amigos, aliás, são muito monossilábicos.

Dia 20

Um dia fui beber água e notei uma vaquinha me observando. Fingi que não era comigo. Ela cochichou algo com as amigas e ficaram rindo. Sei que era de mim, afinal eu era o único que estava ali. Quer dizer, tinha um marreco, mas ele sempre estava por lá, nunca ninguém ligou pra ele, ainda que tente chamar a atenção de tudo que é jeito. Aliás, ele veio de uma família que passou por muitas tragédias. Seu pai e dois irmãos foram assassinados por alguns moleques. Seu cunhado teve uma brilhante vida terminada de modo trágico, nas bocas de um cão. Por causa disso que o marreco busca atenção e carinho. E ele tem uma visão da vida muito trágica (evidentemente), berrando que seremos todos traídos e mortos. Ora, é um absurdo imaginar que todos os nossos companheiros que foram viajar na verdade foram mortos. Além do que seria bastante estúpido o nosso dono gastar anos e dinheiro conosco para simplesmente nos matar. Mas nada convence o marreco.

A vaquinha é bonitinha. Boa cor, esbanja saúde, educada ao se abaixar para apanhar grama (diferentemente de certas sujeitinhas, que são muito atiradas para o meu gosto). Eu já a observava antes, porém discretamente, sem acreditar que pudéssemos ficar juntos. Mas agora, depois dela me olhar daquele jeito, sinto um arrepio no meu dorso. Tenho esperança agora.

A única coisa que me incomoda é quando os filho do dono vêm tirar seu leite. Por que ela fica ali parada, deixando aquelas mãos bobas fazerem o que querem? Será que vale a pena ter de passar por isso? Eu só não faço nada porque o dono já salvou minha vida, quando um cachorrão surgiu do nada e pulou em meu pescoço (ui, dói só de lembrar). Minha dívida, minha gratidão, tudo me impede - ainda que de modo meio envergonhado - de tomar uma atitude contra aquela sem-vergonhice danada que só.

Dia 23

Meu dono apareceu com um desconhecido. Falavam alguma coisa que não dava para escutar direito. Cheguei perto, como quem não quer nada, e ouvi o desconhecido me elogiando, dizendo que pareço ser alguém de muito valor. Meu dono sorriu orgulhoso, o que me deixou envaidecido. Resolvi então andar perto deles, querendo que a Mimosinha, a vaquinha musa de meus sonhos, visse tudo. Dei sorte, porque ela olhou para o lado e me viu todo garboso. O resto da conversa não escutei, tão enfeitiçado que estava com a vaquinha. Só deu para ouvir algo como "estamos acertados".

Que tudo se dane, quero viver só para ela!

Dia 29

Meu Deus, quero me matar! Estou apaixonado pela Mimosinha e querem me vender! Justamente quando a minha vida parecia tão maravilhosa, os pastos tão gostosos, meus amigos tão divertidos! Ai, que vida! que tormento!

Meus olhos arderam ao vê-la, sabendo que poderia ser a última vez. Ela permaneceu quieta, calada, com a graminha na boca, olhando perdidamente para o vazio. Sei que está por dentro muito triste. Mas nós, seres bovinos, temos um código de ética muito rígido para essas coisas. Temos de ter calma, acima de tudo. Somos criaturas civilizadas, pacíficas. Melhor morrer que matar. Porém assim não posso suportar!

Segundo mês, dia 4

Me despedi de todos, menos dela, porque era cedo demais quando me pegaram e ela dormia. Meu dono e o comprador foram unânimes em dizer que me achavam um pouco mais magro, de pior aparência que há dias atrás. Tive vontade de morder a manga de suas camisas, puxá-los para perto de mim e dizer: "Acaso vocês haveriam de gostar se fossem bruscamente separados de suas amadas? Já conheceram o amor?" No entanto, ao invés disso, num arroubo de desespero, atirei-me aos pés de meu antigo dono, murmurando coisas desencontradas. Pensaram que eu estava doente, mas depois de uma pequena discussão, assim mesmo me puseram num caminhão e me levaram embora.

Contudo, antes deixei, como lembrança, um poeminha nas patas de um pequeno e bondoso bezerrinho, filho de uma das amigas de minha musa e que costuma estar perto dos machos mais adultos a fim de aprender a pastar adequadamente. Implorei para que o mancebo o entregasse tão logo a Mimosinha acordasse. Seu conteúdo era o seguinte:

Muitas horas já pastei,
Muitas vezes já comi,
Mas jamais me cansarei
De tudo que sinto por ti.

Apenas te vendo pastando
Sentia meu peito pulando:
Não há mais bela vaquinha
Do que você, Mimosinha.

O destino porém me trocou o dono.
Longe de ti, sentirei abandono,
Porque irei para outra fazenda,

O coração sem qualquer remenda,
Pensando em que belo presentinho
Não seria um nosso bezerrinho!


Com que dor escrevo essas coisas. Acho até que não há mais razão de existir esse diário. Ou minha vida. Que dor, que traição!

Adeus, minha amada imortal, adeus!

Thursday, September 01, 2005

Eutanásia nos outros é refresco

Já aparecem notícias sobre um pai que quer pedir à justiça a eutanásia do filho. (Aliás, pena de morte todo mundo é contra, mas aborto e eutanásia, pelo visto, não são um problema. Se o Estado não pode executar criminosos condenados, então com que direito ele pode permitir que inocentes sejam mortos?) Será a versão nacional do caso Schiavo.

Havendo coisas dessa espécie, não deixo de pensar que vivo na época mais porca de todos os tempos. Isso porque ninguém pode dar a desculpa da "inocente ignorância", pela qual outras civilizações praticaram as mais sórdidas barbáries com a consciência mais limpa. Nada disso: já passamos por tanta coisa ao longo desses três mil anos que esse tipo de atitude hoje em dia só indica uma satânica perversidade.

Por sinal, numa época tão besta como a nossa, realmente não consigo entender por que muita gente se preocupa em esticar sua expectativa de vida até ao máximo. É como querer por livre e espontânea vontade assistir por uma semana Cidade de Deus, com direito ao mais exaustivo making of. Eu hein, que gente masoquista! Não, obrigado: esta vida já é grande o suficiente e para mim já bastam as canalhices destes anos; dispenso as apresentações do século vindouro.

Nada melhor que relembrarmos as palavras do velho Eclesiastes:

E louvei mais os mortos que os vivos: e reputei mais venturosos do que uns e outros, ao que ainda não é nado, e que não tem visto os males que se fazem debaixo do sol. (Ecl 4,2s)