Wednesday, May 31, 2006

Pequena e incompleta nota sobre a juventude

Eu disse há alguns posts atrás que vivo com um pé no passado. Ora, tenho 24 anos, portanto jovem. E todos os jovens têm uma característica específica: são demasiadamente impressionáveis. Portanto, nada mais natural que eu, com meus 24 anos, diga que vivo com pé no passado, porque é lógico que só digo uma coisa dessas porque alguém de algumas gerações mais avançadas que a minha me causou essa impressão. Pode ser que a questão de saber quem da geração passada me influenciou seja válida, mas agora ela é acessória. Dispensemos por ora aquilo que nos atrapalhe a voar e sigamos nosso rumo.

Para comprovar o que eu disse, conto uma conversa que tive com um professor. Certa vez eu dizia que estava querendo ler tal livro do Maritain. Então ele me disse: "Por isso e por outras coisas que você me diz, suponho que você conhece alguém mais velho que te fale sobre esses autores." Ora, Maritain era um autor muito lido e discutido há algumas décadas atrás. Meu conhecimento a seu respeito se deu através de autores que lhe eram contemporâneos, os quais hoje em dia teriam a idade para serem meus bisavós. É verdade que uma ou outra pessoa não tão velha mas ainda assim de outra geração mo indicou, o que corrobora meu argumento. Então minhas referências começaram a ser feitas a partir de gente de uma geração diferente da minha, e em muitos casos bem diferente. Nada mais natural que meu professor achasse que havia algum senhor que mo indicasse.

Talvez algum leitor imagine que o que digo seja uma restrição desnecessária, pois qualquer um, independente da idade, pode ser influenciado fortemente por outro. Isso é verdade em termos. Quanto mais velhos somos, menos propensos estamos a ir conforme a maré. A teimosia dos velhinhos é notória, assim como a impaciência juvenil. Por outro lado, o caro Ortega y Gasset já dizia que ao longo dos anos temos a tendência de confiar cada vez menos nos nossos sentidos e de nos apegarmos cada vez mais aos conceitos e coisas que estão na nossa cabeça. Vamos ficando resistentes às coisas ao nosso redor com o passar dos anos. Antes não: tudo é intrigante, tudo parece ter um colorido mais especial. Nossos sentidos parecem centuplicar cada coisa percebida, e tudo parece ser mais agradável, ou seja, mais propenso de ser amado, portanto investigado. Os sábios conseguem conservar esse dom mesmo quando muito idosos, embora ele seja contrabalanceado por aquela resistência mencionada por Ortega. De qualquer modo, em nós jovens essa qualidade se faz muitíssimo mais presente e radical. Ela se espalha por todo o nosso ser. Ai daqueles de nós que já pensam como velhinhos gagás, fechados em si e inimigos do mundo!

Esse nosso deslumbramento faz com que sejamos, normalmente, bons receptores. Estamos mais abertos às coisas, somos mais livres, e portanto somos muito mais irresponsáveis. Não quero me alongar sobre esta última nota. Meu ponto é o seguinte: somos bastante passivos quanto às informações que recebemos. E isso indica outra coisa, mais profunda: nos falta autenticidade.

Tal coisa me parece extremamente evidente. Se somos tão passivos, se recebemos tudo e não criamos nada de novo e de próprio, então agimos e pensamos segundo a ação e pensamento de outros. No máximo, podemos escolher entre o bom e o mau exemplo. Não podemos nos dar ao luxo de olhar para a nossa própria obra e dizer: "isto é especificamente meu!", como certamente Deus fez quando completou a Criação. Há, no máximo, potencialidades latentes, o que também comprova minha tese. Se realmente algo não está em ato, então esse algo não passa de uma vaga promessa.

O velho Aristóteles, quando era jovem, sintetizou bem esse caráter juvenil quando, na Retórica, disse que os jovens são educados segundo "a lei do convencional" (Ret, II, 12). À primeira vista essa afirmação pode se afigurar estranha. Não é comum vermos jovens contestando valores? Não são eles que trazem novidades?

Não é o jovem que contesta valores. Ele é apenas o local por onde ressoam as idéias de pessoas mais experientes. O século XX foi marcado por jovens na rua e em movimentos revolucionários. Mas por trás da Juventude Hitlerista estavam as idéias de Hitler, que não era nenhum moço, e, por trás dele, a pseudociência e o ressentimento da ralé para com os judeus. A propósito da relação entre Hitler e os jovens, certa vez vi um cartaz nazista que demonstrava de modo eloqüente como isso se dava. Nele havia um garoto num canto e, no fundo de todo o cartaz, em preto e branco, tal como uma sombra opressiva, o rosto em perfil do ditador. Os nazistas realmente entendiam muito bem de propaganda. Mas a manipulação de jovens não é característica só de nazistas. De modo semelhante, por trás dos jovens do Maio de 68 estava Sartre (e toda uma série de professores maníacos). Não é o jovem, portanto, com toda a sua ingenuidade, autor de algo genuíno, pois como ele não é autêntico, não faz nada que lhe seja realmente seu, exceto, é evidente, as questões mais diretas que envolvem responsabilidade pessoal pelos atos que ele mesmo executa. E mesmo assim há em muitos casos certos atenuantes explicáveis pela idade. Mas não estou discutindo isso. O problema é a autenticidade de suas obras. Eis aqui o seu problema mais angustiante, porque os mais velhos estão para ele como a idéia está para a matéria.

A própria mania que nós temos de auto-afirmação é reflexo dessa nossa radical inconsistência. Da mesma forma que todo o cristão sempre tem em vista o outro mundo, o jovem tem de viver para a sua própria madurez. Nosso estado é como um vislumbre do futuro, porque nós ainda não somos de fato: estamos prestes a ser, como se não passássemos de esboços andando para lá e para cá. Daí que se alguém fracassa na vida, fracassa porque não conseguiu ser mais que esboço de si mesmo. Vira uma caricatura de si mesmo.

Por outro lado, não é verdade que o jovem traz algo de novo. Pelo contrário. Não há nada mais óbvio que o comportamento juvenil. Nós mesmos temos a tendência de andar em rebanho, temos um comportamento padronizado segundo nosso grupo, etc. Não é mera coincidência, portanto, o fato de nós termos aparecido tanto na história como nunca acontecer ao mesmo tempo em que virávamos multidões apoiando revoluções em todos os lugares. Ainda em movimentos menos turbulentos, como no caso dos cara-pintadas, isso é evidente. Um simples raciocínio a priori ajuda a entender isso. Certamente somos agora uma idéia original encarnada de algum homem maduro de ontem ou mesmo de hoje. É como se fôssemos uma espécie de conclusão de um silogismo mais ou menos pretérito.

Se nós jovens tivéssemos realmente como própria e particular a maior parte de nossas idéias, certamente não haveríamos de trocá-las tão impunemente. O velho Goethe dizia, em tom complacente, que os jovens se caracterizam por suas promessas não cumpridas. E novamente vejamos o que Aristóteles tem a dizer sobre nós: "Também [os jovens] são facilmente variáveis e em seguida se cansam de seus prazeres, e também os apetecem com violência, porém também se acalmam rapidamente." Isso explica porque temos a tendência de marcar um compromisso para logo em seguida desmarcá-lo, ou porque pulamos de idéia em idéia como macaquinhos de galho em galho. Devo, no entanto, alertar o leitor que Aristóteles, na Ética a Nicômaco, diz que a juventude pode ser também uma disposição de caráter não relacionada com a idade. Isso quer dizer que se um sujeito com muita idade ainda é volúvel, ele permanece jovem no pior aspecto. Hoje em dia isso virou praga. São os nossos famosos "coroas enxutos", que teimam em se comportar como adolescentes – geralmente se esforçando em manter aquilo que há de pior –, muito embora o tipo "rapazinho mimado" seja o caráter predominante de nossa época. (Compare o leitor nossa época com a dos medievais. Aquela gente se sentia velhíssima e no entanto morria muito mais cedo que nós.) Só lutando podemos nos livrar do predomínio deste caráter, ou melhor, desta forma de ser homem. Infelizmente isso também depõe contra nós, já que, por natureza, estamos mais propícios a fazer só o que nos agrada ao invés de aquilo que deve ser feito. Conquista requer tempo e experiência, dois atributos que geralmente nos faltam. Mas as observações aristotélicas acerca da juventude propriamente dita são gerais. Há espaço para exceções. Nada mais claro que suas própria palavras: "[o jovem] tende a seguir suas paixões". Ótimo exemplo de exceção é o próprio filósofo, que, segundo consta, e para a minha inveja e vergonha, era um mestre da teoria da retórica e já demonstrava grande domínio lógico apenas com a minha idade. A Retórica foi escrita quando ele tinha 24 anos. Aristóteles era um jovem maduro.

(Talvez um dia continue...)

Friday, May 26, 2006

Novo blog no "Parada Obrigatória"

Amigos, há algum tempo descobri um blog legal. Seu nome é Bona Musica e, como o nome indica, trata de música (dããã). Até onde li, principalmente clássica (ou erudita, ou ocidental, ou... ah, deixemos para lá).

É um blog interessante, porque essencialmente didático, mas sem tratar o leitor como um demente. É escrito em conjunto pela dupla portuguesa Viktor e Pamina, ambos ligados à área musical. (Supondo que sejam anônimos, nunca entendi bem porque prezar tanto assim o mistério. Ora, será que pensam que serão defenestrados? E vejam que legal, sempre quis ter uma desculpa para escrever "defenestrados". Repitam comigo: de-fe-nes-tra-dos. De novo: de-fe...) Melhor dizendo: bem escrito. É agradável, sempre com exemplos sonoros das músicas tratadas em questão. E para os preguiçosos, é uma mão na roda, já que os posts são curtinhos.

A iniciativa é boa, fazendo parte daquela idéia de como apresentar música clássica (ou erudita, ou...) a todos sem parecer mala sem alça. (O programa do Artur da Távola ia por esse caminho, Quem tem medo de música clássica?, na TV Senado. Não sei se ainda existe. Passava, se não me falha a memória, sábado às 18h. Eu gostei tanto da idéia do Távola que até votei nele para o Senado. Quem quiser ganhar meu voto já sabe.) Quando digo "todos", me refiro a gente que tem curiosidade de aprender mais sobre o que ouve mas não sabe xongas de teoria ou nem mesmo de coisas mais simples, como por exemplo que é um naipe, um movimento, etc.

Ergo minha caneca cheia de sorvete napolitano desejando longa vida ao Bona Musica.

Thursday, May 25, 2006

A estratégia e tática do Diabo

A estratégia é de uma simplicidade assustadora. Usa-se a caridade, um dos princípios do Cristianismo, para destruir os próprios cristãos.

A tática já é um pouco tortuosa. Cria-se um problema de perspectiva: ninguém sabe mais até onde vai o amar ao próximo como a si mesmo e o amar a Deus acima de todas as coisas. As relações mútuas entre uma idéia e outra acabam se tornando nebulosas e até contraditórias. Então surge uma espécie de religião monstrenga, como se fosse um ogro de duas cabeças. Cada cabeça corresponde a uma prática diversa. Uns cedem tudo, variando apenas a celeridade com que buscam agradar a todos. Não conseguem nem mesmo perceber, graças a racionalizações, o perigo que estão correndo, considerando até que estão vivendo segundo as riquezas da verdadeira fé, embora estejam de fato querendo agradar de algum jeito os inimigos mais odiosos e jurados da Igreja. Já outros são tão pior quanto. Tosca e vaidosamente, atacam qualquer um para, logo em seguida, encastelarem-se em seu mundo filisteu, com a Bíblia debaixo do braço, crentes que agem como autênticos monges-guerreiros, despreendidos do mundo.

Saturday, May 20, 2006

Post curto feito perninha de barata

Três coisas fazem muita falta e só são periféricas a quem tem preguiça de imaginar. Primeiro, todo mundo devia saber tocar um instrumento e, obrigatoriamente, as mulheres o piano em casa, muito embora, como não sei quem já disse, o passar do tempo e o gramofone nos pouparam de ouvir senhoritas de vozes esganiçadas e as subseqüentes obrigações de lhes render estóica e cavalheirescamente palmas. Segundo, todos tinham de usar armas. Todo cavalheiro deveria ter uma colt à mão. Em último lugar, e já dito melancolicamente por mim diversas vezes, a confusão do mundo deveria ser menos onipresente. Alguém consegue imaginar um eremita no Rio de Janeiro? Mas não reclamemos de tudo. Além de terem concebido a Internet e câmeras digitais, por essa mesma Internet é possível lermos uma entrevista com um ermitão. Não é portanto o mundo admirável pelos seus caminhos tortos mas certeiros?

Aqui vou eu, oprimido pelo sono. Bom dia, leitor.

Saturday, May 13, 2006

Criticando a marteladas

Assassinos por Natureza, ô filme escroto.

Dei uma rápida olhadela nalguns sites e li coisas magníficas: "'Assassinos por natureza' retrata a multiplicidade e a complexificação da violência, baseada na construção do mito bandido na TV etc, etc."; "'Assassinos por Natureza' é considerado um dos filmes mais importantes da década de noventa, etc etc."; "ASSASSINOS POR NATUREZA era uma viagem lisérgica, etc, etc" (observação: quem escreveu isso não estava sendo sarcástico; era um elogio); "Um filme como ASSASSINOS POR NATUREZA, de Oliver Stone, por exemplo, consegue abordar o tema nietzscheano da naturalização dos valores de uma maneira situacional, muito melhor fundada e mergulhada na coisa mesma do que muitos tratados sobre Nietzsche."

Não vou nem contar os "até que não é ruim", "gosto demais desse filme" ou "ele é super-hiper-cool" que catei aqui e acolá. O fato é que esse filme é uma bosta. É do tipo "Pulp Fiction" quanto à violência retardada, e isso me faz lembrar, meio que de longe, o "Laranja Mecânica" (dizem que "Taxi Driver" está nesse baixo mundo também, e obviamente também celebrado como filme cult por sujeitos que têm a sensibilidade de um mosquito da dengue).

O que é mais cândido é que ele se presta a ser uma crítica da glamourização do bandido. Como ele critica? Glamourizando o bandido e rebaixado quase literalmente o mundo inteiro ao nível de psicopatas por tabela. Críticas desse tipo, pela experiência que todos nós temos, só poderia vir de uma espécie de cidadão: o esquerdizóide. Sujeitos dessa classe têm o costume de deturpar a realidade e criticá-la a partir de suas psicoses. É a crítica, por excelência, do diabo: somos todos depravados, perdidos, portanto em essência maus. A maldade está repartida eqüitativamente entre nós, e o mais puro homem é essencialmente igual ao mais cafajeste. Nessa ótica tresloucada, há - que coisa paradoxal! - uma classe de gente que se considera iluminada, está acima do bem e do mal, que pode, à parte de seu lado inferior, apontar o dedo inquisidor para o homem moribundo e gritar com toda força cada um de seus mais torpes pecados, enquanto ela mesma considera que está fazendo um serviço divino, um opus dei às avessas. Eis o pacto demoníaco realizado por baixo de nossas barbas. Somente um sujeito inconseqüente ou totalmente pervertido compactuaria com uma coisa tão lamentável. Daí a impressão que tive, assistindo a esse filme, que ele parecia obra de um jovem irresponsável que julgava possuir algo interessante para nos revelar sobre nós mesmos.

Paulo Francis já dizia que Oliver Stone era retardado por causa de seu filme "JFK". Nunca o assisti, mas, a julgar pelo "Assassinos por Natureza", tenho a enorme tentação de concordar com o crítico. Bom, não serei tão radical, afinal de contas o passar dos anos às vezes nos purga de nossas tolices lamentáveis, e eu já tenho muitas na minha conta.

Friday, May 12, 2006

Reflexões melancólicas sobre o Rio

Não sei dizer se em tempos passados o mundo costumava entrar com mais sem-cerimônia que a habitual em nossas casas. De qualquer modo, antigamente havia os ermos lugares para onde acorriam, como o leitor pode concluir antecipadamente, os ermitões. Lá no alto penhasco, na densa floresta ou isolada ilha, havia refúgio. Havia também um dado que hoje não temos: o tempo, comparado com o nosso, parecia um velhinho de bengalas. Tudo acontecia devagar. As guerras duravam cem anos, os homens estudavam por uns vinte anos na universidade, Cícero discursava no Senado por horas. Mas, que coisa curiosa!, ainda que a arte fosse longa, a vida conseguia ser mais breve que a de hoje. Breve, porém vivida como se fôssemos eternos.

Essa serena e imponente calmaria, que podemos ainda contemplar numa melancólica ruína ateniense ou romana, virou pó. Os tempos mudaram demais. E todo o tumulto que acontecia por baixo daquele andar vagaroso a nós parece algo menor. Mesmo um ambicioso como Marco Antônio, aos olhos de hoje, parece antes um líder de centro acadêmico universitário que um general populista romano. Hoje, qualquer zebedeu arregimenta massas imensas e delira publicamente como se fosse profeta. Lembremos do cabo austríaco ou do operário sem dedo.

Vejamos um exemplo retirado de minha própria experiência. Segunda-feira última, estava eu em casa quando fui surpreendido por uma gritaria. Pensei que minha Roma, que é meu prédio, estava sendo invadida por um bando de arruaceiros, os hunos de todos os tempos. Ora, se havia invasão, era metafórica: a bagunça ocorria há muitos e infelizmente não maiores metros. Como toda bagunça tem o dom de repercutir com intensidade por tudo ao seu redor, mais ou menos como um terremoto, então era realmente como se houvesse um comício na porta de minha casa. Minha casa, meu mosteiro! E se nem mesmo as casas piedosas escapam da turba violenta, que diria meu lar infestado pelo século!

Lembro que escutei uns zurros (porque pessoas não se comunicam aos gritos e urros), e o que era particularmente mais belo era que quem liderava aquela supina sem-educação não era outra pessoa senão nossa atual governadora. A senhora governadora liderava a gritaria, os xingamentos e as palavras de ordem. Eu era obrigado a ouvir tudo aquilo, porque não havia como eu fisicamente fugir. Sim, fisicamente: depois lembrei que seria mais sábio colocar uns fones de ouvido e ouvir música, coisa que prontamente o fiz. Meu espírito se afastou para lugares mais belos, se bem que levei muita chibatada até ele se fazer presente.

Leitor, essas considerações são melancólicas, o que está de acordo com meu caráter sentimental. Todavia, não é algo tão subjetivo assim. Realmente é uma pena quando sabemos que a cidade nem sempre foi assim, até porque nem sempre pessoas tão desavergonhadas tiveram a audácia de se candidatar a governador, muito menos ganhar. Coisas desse tipo aconteciam uma vez ou outra ao longo da história e só em momentos calamitosos. Hoje é lei. Sugiro ao leitor amigo a leitura d’A Rebelião das massas, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, para que entenda melhor o que quero dizer.

Sei que estarei incorrendo num adágio batidíssimo, mas a verdade me obriga a dizer que antes houve tempos melhores. É por esta razão que te peço paciência, caro leitor, para que leia comigo um texto de Gustavo Corção chamado Rio Antigo. Vejamos o que ele diz:

Correndo os olhos pelo Rio Antigo, de Charles J. Dunlop, primeiro distraidamente, depois com atenção e a saudade despertadas, vi na fotografia de Augusto Malta, Marques Ferrez, George Leuzinger, E. A. Mortimer, e outros, sem sombra de dúvida, com a firme convicção de que não estava sendo vítima de uma injustiça ditada pelas lembranças pessoais e pela nostalgia de minha própria vida passada, vi que o Rio daquele tempo, do princípio do século e mesmo dos gloriosos tempos de Pereira Passos, era mais belo, mais limpo, mais claro, mais amável, mais espaçoso, mais luminoso do que este Rio de hoje, que cresceu errado, que andou pelos bordéis da péssima arquitetura e das administrações públicas ainda mais prostituídas. Bom, bom Rio de antigamente! Não consigo separar bem a saudade da apreciação puramente objetiva, mas torno a dizer que tenho a certeza – uma certeza difícil de provar – de não ser injusto nas apresentações que faço do crescimento torto desta infeliz cidade. Não me prendo também ao pitoresco, ao aspecto puramente silvestre e rústico. Justamente, de todo o agradável livro de Charles J. Dunlop, os capítulos e as fotografias que mais forte impressão me causaram são aquelas que se referem ao primeiro passo do progresso, às obras do engenheiro Francisco Pereira Passos, que prometia uma cidade maravilhosa, infelizmente abortada mais tarde pelos seus continuadores.

Desde o capítulo intitulado Primeiras Aplicações Industriais da Luz Elétrica, surge a figura extraordinária do homem de governo que os cariocas de hoje ignoram. O redator do referido capítulo menciona o fato de ter sido a antiga estrada de ferro Dom Pedro II, no ano de 1879, na gestão do engenheiro Francisco Pereira Passos, o primeiro estabelecimento do Brasil que teve iluminação elétrica. A inauguração do novo sistema ocorreu às oito e meia da noite do dia 21 de fevereiro, com a augusta presença de SS. MM. Imperiais, do presidente do conselho, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu; ministro do Império, Carlos Leôncio de Carvalho, e demais personalidades de destaque. Eis como o Sr. Dunlop narra a cerimônia no seu momento máximo: “Da sala das máquinas, o imperador e sua comitiva dirigiram-se para o saguão. Nesse instante, apagaram-se os bicos de gás. Súbito acenderam os globos opalinos, e uma luz brilhante iluminou o saguão, o vestíbulo e a plataforma dos passageiros. Eram, ao todo, 6 lâmpadas de arco Jablochkov (do engenheiro russo Paul Jablochkov, que morreu na miséria em 1894), sendo 4 na plataforma, 1 no vestíbulo e 1 no saguão. O resultado deve ter sido excelente, pois a “Gazeta de notícias”, do dia seguinte, informou que a luz dava uma claridade que se podia comparar à luz da lua cheia, numa noite perfeitamente limpa de nuvens.”

No capítulo intitulado Campo de São Cristóvão, estamos em 1906, vinte e sete anos mais tarde. O engenheiro Pereira Passos é agora o prefeito da cidade. Diz lá o narrador daquele melhoramento municipal: “Um dia o prefeito Pereira Passos lembrou-se de embelezá-lo (o Campo de São Cristóvão que era um lugar mau freqüentado e sujo), e ordenou fosse levada a efeito a idéia. Iniciados os trabalhos, em poucos dias estavam podadas as árvores, desentulhado o lixo, cortado o capim e revolvida a terra. Surgiu depois o primeiro canteiro, e, a seguir, dezenas deles, simetricamente plantados. Apareceram, após, as alamedas e os belos repuxos, e começaram a florescer as roseiras e muitas outras plantas. Já era outro o aspecto do Campo de São Cristóvão. Afinal, no domingo, dia 11 de novembro de 1906, foi ele oficialmente inaugurado...”.

Admira, leitor amigo, a genial singeleza deste último período e sobretudo saboreia o discreto, decente, o civilizado advérbio dos bons tempos do engenheiro Francisco Pereira Passos: “Afinal... foi inaugurado...”. Primeiro a limpeza, o revolver da terra, o corte do capim. Depois a vez das rosas abrirem suas pétalas não oficiais, e muitas outras plantas. “Afinal...” Bons, excelentes tempos! A fotografia mostra o coreto em que os personagens importantes compareceram, de cartola, no dia solene da inauguração: lá está a figura do Presidente da República, Rodrigues Alves, que vem a ser tio-avô do governador Carvalho Pinto de São Paulo; e lá está ao lado do pequenino Presidente a figura majestosa do prefeito Pereira Passos. Eis como está narrada a cerimônia: “Aí, o prefeito fez a entrega do Campo, radicalmente transformado, ao povo de São Cristóvão. Estava, incontestavelmente, um primor. Ressoaram palmas e todos ergueram vivas aos Drs. Rodrigues Alves e Pereira Passos. Seguiu-se um lauto almoço em que tomou parte o Presidente etc. etc. Foi esplêndido o ‘menu’ servido, tendo o Comendador Gomes Carneiro, durante o ágape, recitado poesias de sua lavra. Ao champagne foram erguidos diversos brindes. O de honra foi levantado ao povo de São Cristóvão. A fotografia mostra...”.

A fotografia mostra, além dos personagens oficiais e do coreto, uma coisa fina que estava no ar do Campo de São Cristóvão como poderia estar na Place de l’Etoile. A direção em que estava perdido o olhar do prefeito Pereira Passos era uma outra, que evidentemente não foi seguida pelos que trouxeram o colesterol da cafajestagem para as artérias desta pobre República. A fotografia mostra aquilo que era claro, que era limpo, que era belo no Rio de Janeiro do meu tempo de criança. E note bem o leitor que esse tempo de infância a que me refiro foi também uma época de grande pobreza para a nossa família. Mas a casa em que morávamos pobres, e que certamente já foi destruída neste afã de erguer jazigos perpétuos de vinte andares, era feita de tábuas vindas do golfo do Báltico, telhas vindas da França, pedras de Portugal, ferragens da Inglaterra. Expliquem-me isto os economistas, sobretudo aqueles que se apregoam a necessidade de ter tudo nacional, como se o Brasil fosse um planeta perdido na escuridão do espaço. Expliquem-me como se fazia para ser pobre e feliz em casas tão pouco nacionalizadas. E expliquem-me outros doutores a misteriosa razão que leva não sei que Gênio mau a esconder dos cariocas de hoje a lembrança do prefeito Pereira Passos. Quando mudaram o nome da Avenida Central para Rio Branco, seria mais razoável, sem nenhum desapreço ao diplomata, lembrar o nome do Prefeito. Mais tarde, quando parecia que a oposição ia derrubar de vez o mito Vargas, foi procurado um nome para a Avenida que até hoje ficou sendo Presidente Vargas, graças ao suicídio do dito Presidente. Lembraram diversos nomes. Creio que se não fosse o suicídio mudariam para Castro Alves. Ninguém, que me conste, lembrou o nome do engenheiro Pereira Passos.

Lembro-me agora das ressonâncias que tinha em nós, em casa, o nome do grande engenheiro. Foi talvez ele que me plantou na alma o gosto da profissão, de tanto ouvir falar em torno, com respeito e até veneração. Lembro-me de minha mãe, num dia muito claro e muito antigo, a me explicar a obra daquele grande homem que n’’O Malho’ eu via caricaturado ou fotografado ao lado do presidente da República, que eu aprendi a desenhar assim: um círculo, dois círculos menores no lugar dos óculos, e cinco fios de barbante paralelos.

Naquela fotografia do Campo de São Cristóvão, e em outras, vê-se também que as cartolas da época não ofendiam os brios de ninguém. O povo era mais bem vestido, e sobretudo a tenue, a posição do corpo era mais ereta, mais briosa, mais desempenhada que a de hoje. Corra você mesmo, leitor, seu álbum de avós e repare como eles eram mais altivos e verticais. E então? O que foi que houve, com os homens, com as cidades? O que foi que aconteceu?

O que me parece certo, para a cidade, se não para os homens, é que não seguimos hoje a linha de crescimento que estava esboçada naquele coreto em que compareceram Rodrigues Alves e Francisco Pereira Passos. Houve um desvio, uma deflexão, uma inclinação, uma curvatura, uma deformação, e em certo ponto começa uma outra história em que predomina a coisa espessa e feia chamada cafajestagem, e em que inaugura-se um jardim antes de nascerem as rosas...

Sim, paciente leitor, a belle époque já esteve aqui, e os políticos recitavam poesias de sua própria lavra, o povo andava com garbo e sobriedade, havia cartolas para serem tiradas durante um verdadeiramente cortês “bom dia!”, e toda mulher era senhora ou senhorita, enquanto os homens eram, necessariamente, senhores. Aliás, confesso novamente que sinto uma certa melancolia ao dizer essas coisas, mas que agora tem a companhia de uma estranha sensação de nostalgia por um tempo que nunca vivi. Ah, como falta uma palavra para designar tal sensação!

Usando um jargão platônico, todos nós participamos da boa e bela educação. Nós, seja qual época for, participamos da cidade celeste. E há épocas em que a boa e bela educação é praticada mais forte e naturalmente, de tal modo que transborda até em nossos atos mais simples e irrelevantes. É um estado natural de fleuma, por assim dizer. Abundam homens de notável caráter, só diferindo-se entre si pela grandeza demonstrada. Já constatava Hume, um fleumático, que Buffon, que era outro, tinha um ar de Marechal da França. A esse propósto, o caráter de Buffon, segundo Le Senne, poderia ser de um tipo da família do “fleumático majestoso”, cuja dignidade se faz patente “pela nobreza dos modos e do linguajar” (Le Senne, Traité de Caractérologie, 3a. ed, P.U.F., p. 522). Realmente os homens se comportavam como cavalheiros, até porque as mulheres eram, por assim dizer, mais exigentes (tema este que merece uma atenção especial, conforme o próprio Ortega y Gasset já chamou a atenção em seu livro Sobre el amor; ataquemos melhor esse assunto em outra ocasião). Sendo todas as mulheres como um ideal encarnado, todas pareciam princesas, e os homens necessariamente marechais da França ou algo em vias disso. (Daí vem a especial graça de toda uma série de personagens de Machado de Assis. Eles parecem especialmente cômicos quando comparados ao fundo em que se moviam. Só no séc. XIX que poderia surgir um Simão Bacamarte.) E mesmo o mais nervoso dos homens daquelas épocas gloriosas mais parece um fleumático crasso, um apático, perante os nossos irrequietos olhos modernos. Mesmo a poesia de um Villon, surgida numa época tão problemática quanto aquele fim de Idade Média, parece algo infinitamente aristocrático se comparada a muita coisa escrita hoje em dia. Nada mais natural, portanto, que, numa época em que vivemos curvados sob o peso de uma não sei qual angústia e não sei qual tristeza, nada mais natural que a política esteja tão infestada dessa coisa espessa e feia chamada “cafajestagem”.

Tenho algo em comum com aquele notório bigodudo alemão. Eu e ele temos um pé num tempo diferente do vivido. A diferença é que Nietzsche tinha uma mente póstuma. Eu nasci pretérito mas com o outro pé atoladíssimo no presente. É uma melancolia danada...