Sunday, August 28, 2005

O "mundo interior"

Amigos, a Rachel, num comentário ao post anterior, escreveu uma coisa que vale a pena gastarmos um pouco de nosso já sofrido tempo para refletirmos. Vou aqui copiar o que ela disse: "nosso corpo é só matéria... Ainda que hoje em dia algumas pessoas dêem mais importância a ele do que a outras coisas..."

O que ela disse me servirá de gancho para algo que há tempos estou para escrever desde a época do meu primeiro (e finado) blog.

Numa novela mais ou menos recente, havia uma música que agarrava minha atenção. Lembro só de uma parte, que aparentemente é uma bobagem qualquer. Era mais ou menos assim: Money no bolso, saúde e sucesso/ Money no bolso é tudo o que quero. Ora, não era pela beleza dos versos que eu a ouvia com curiosidade, muito menos pelo seu ritmo. Não, nada disso. O que me chamou a atenção é que de repente surgia, em plena novela das oito, um dos ideais populares mais famosos da Antiga Grécia!

"Como certas coisas ditas tão naturalmente hoje são antiqüíssimas!", pensei.

Suspeito que quem compôs aquela música não conheça muita coisa sobre poesia antiga, muito menos o público da novela. Mas em relação às coisas do espírito, não precisamos muitas vezes ler para conhecê-las: muito está no ar. E eis que pesquei, naquela musiquinha, mas em outras palavras, escondidinha, uma famosa canção báquica que resumia em poucas linhas o ideal popular grego. Vejamos qual era:

O bem supremo do mortal é a saúde;
O segundo, a formosura do corpo;
O terceiro, uma fortuna adquirida sem mácula;
O quarto, desfrutar entre amigos o esplendor da juventude.


In: Jaeger, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira, 4a. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 529

Se lembrarmos por exemplo da Ilíada, onde Aquiles preferiu a glória e fama imortal, ainda que morresse na juventude, a passar uma vida tranqüila e sem incidentes em seu país, perceberemos como esses valores, fortuna-saúde-glória, eram plenamente apreciados como o que de mais alto havia na vida. Nada mais familiar a nós: quantos não querem enriquecer, ter sucesso profissional e/ou viver bem?

No entanto, ainda que tudo isso seja natural, o que chama a atenção é a importância dada a esses valores. A hierarquia de uma bela vida, em outras palavras, é puramente material. Como tudo isso é bem antigo, não é apenas uma inovação de nossos tempos. O que chama a atenção é sua persistência, demonstrando que faz parte da realidade humana.

A superação deste ideal de vida foi sem dúvida nenhuma uma das mais gloriosas aquisições da história da humanidade. Tornou-se patrimônio comum. Daí que os responsáveis por tão grandiosa descoberta sejam tão fundamentais e próximos de nós.

Pois bem, naqueles antigos tempos surgiu um homem que seria para sempre considerado um exemplo de conduta e fundador de todo um projeto filosófico. Sua aparência era desconcertante: calvo, cabeçudo, nariz feio, barrigudo. Uma espécie de ogro. Mas esse homem caricato era ele mesmo, em sua própria existência, a representação de uma nova forma de vida, com uma hirarquia de valores absolutamente original. Seu nome era Sócrates. Não nos faltam relatos interessantíssimos acerca de sua vida. Sua preocupação com o cultivo da alma em primeiro lugar o fazia viril a tal ponto que Alcibíades relatou que já o vira, certa vez, num acampamento militar, ficar de pé por horas a fio e em meio à neve, absorto em reflexões. Outros lembraram de seu heroísmo durante a guerra. Embora não fosse miserável, desleixava-se dos bens materiais de modo espantoso, embora nisto em particular alguns de seus discípulos o superassem exageradamente. E é justamente um sujeito desses, que à primeira vista ninguém daria nada, representando (de modo exemplar) em vida e de modo coerente sua hierarquia de valores, que demonstrou a preeminência de um "mundo interior" sobre tudo o mais. Acabou condenado a tomar cicuta pelos próprios atenienses.

Aquele senhor era uma figura estranhíssima para seus contemporâneos. Mas não só pela sua aparência. Então por qual motivo? Porque ele "coloca no plano mais elevado os bens da alma, em segundo lugar os bens do corpo, e no grau inferior os bens materiais, como a riqueza e o poder", como lembrou bem Jaeger em seu livro já citado (p. 528). Isso significa que o filósofo descobriu "algo de novo, o mundo interior" (p. 529). Eis aqui a radical contribuição de Sócrates: "A arete [virtude] que ele nos fala é um valor espíritual" (p.529). Este é um caminho novo, que rapidamente, num dos maiores milagres de todos os tempos, foi seguido, sem interrupção, por outros dois homens que se tornaram igualmente patrimônio comum e legado da humanidade: Platão e Aristóteles. Foi uma das maiores proezas que o homem, apenas com sua razão, já conseguiu, cujos efeitos nos embriagam até hoje.

Essa "missão divina" socrática e o seu "cuidado da alma" não soam estranhos para nós, ou pelo menos não tanto quanto para os seus contemporâneos. Somos seus herdeiros, mas não diretamente. O responsável pela ponte com ele é nada mais nada menos que o Cristianismo, que nesse sentido possui com Sócrates afinidades por demais claras. Essa religião também encontra a riqueza inesgotável de nosso "castelo interior". Mas quanto à hirarquia de valores, Nosso Senhor resumiu quais eram os principais mandamentos que devemos seguir, os quais estão bem longe daquela velha canção báquica: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Eis o verdadeiro "bem supremo do mortal" - embora neste mundo o percebamos confusamente. O resto vem por acréscimo.

No entanto, apenas a descoberta do "mundo interior" não é o suficiente. É necessário relacioná-lo de modo harmonioso com os outros bens, pois do contrário poderemos perigosa e tragicamente cindir em duas a nossa única realidade, cavando um abismo entre o mundo espiritual e o mundo natural. Seja o corpo, por exemplo. Ele nos é um bem precioso à medida que por ele podemos, aqui neste mundo, dar testemunho e graças a Deus e aos próximos. Ele, enquanto "morada da alma" (o que é diferente de uma "prisão") - ainda que a alma resida nele provisoriamente -, ambos em harmonia um com o outro, sendo o corpo fiel e submisso à alma, é sagrado e digno de respeito e admiração, como um servente que realiza adequadamente suas funções. É nesse sentido que nossa saúde é um dos nossos bens fundamentais, pois é óbvio que somente podemos praticar o bem se estivermos vivos. Por outro lado, a monarquia da alma no governo de nossas vontades é a segunda condição para tal. Contudo, havendo uma cisão - ou mesmo descrença - na relação (tensa e frágil) entre aqueles dois mundos, então nosso corpo perde seu caráter sagrado ou, o que talvez seja pior, instaura a anarquia e o caos, antes refreados pelo governo da alma. É o criado provocando uma rebelião anárquica.

Este tema é interessante e pretendo algum dia (isto é, daqui a zilhões de anos) retomá-lo. Mas pelo menos acho que consegui dizer um pouco sobre o que há tempos tenho vontade, me aproveitando gentilmente do comentário mais gentil ainda da Rachel.

No comments: