Friday, October 06, 2006

O que você vai ser quando crescer?

Geralmente, quando somos pequenos, gostam de nos perguntar assim: “O que você vai ser quando crescer?” São tantas as opções que às vezes não damos uma, mas várias respostas.

Minha lembrança mais remota de quando me fizeram esse tipo de pergunta é da época do meu judô. Já faz um belo tempo. Acho que eu tinha por volta de uns sete anos. Foi quando o professor Ary, um desses sujeitos brincalhões que não perdem a oportunidade de uma distração, pediu para que deixássemos os tai otoshis e ippon-seoi-naguês de lado e disséssemos o que queríamos ser quando crescêssemos. Cada criança, sentada que nem japonês no tatame, foi dando a sua resposta, até chegar a minha vez:

- E você, Cassiano, o que vai ser quando crescer?
- Astronauta, pipoqueiro ou motorista de ônibus!

Ele achou uma graça danada das minhas respostas. Eu havia respondido quase no automático, parecido com a vez em que me perguntaram, dia desses, qual era, na minha opinião, a mulher mais bonita:

- E para você, qual é a mulher mais bonita?
- Monica Bellucci, Ava Gardner e Audrey Hepburn!

Parece que gosto de responder uma pergunta com variantes desde pequeno. Não faço muita idéia do que diria se me perguntassem o mesmo quando era pequeno. Mas me arrisco a cogitar uma opção:

- Mocinho, qual é a mulher mais bonita do mundo?
- Mamãe!

Só quando a gente cresce mais um pouco é que começa a entender que mãe, tia, prima, esposa e filha são modalidades de um tipo de ser: a mulher. Mesmo quando estamos mais grandinhos, às vezes esquecemos dessa constatação óbvia e que tem várias conseqüências importantes. Mas naquela época eu era pequeno demais para ser magnetizado pelos encantos do belo sexo. Mamãe era a mulher mais bonita do mundo.

Acho que o professor chegou a fazer algumas perguntas sobre como é que eu ganharia dinheiro com aquelas profissões... ou será que me perguntou como é que eu faria para ser astronauta no Brasil? A memória agora me trai. É certo que considerações de ordem monetária jamais passaram pela minha cabeça quando respondi, como de certa forma não passaram quando coloquei os pés na faculdade de História, o que já faz parte do passado e é outro assunto.

Dizem que quase toda criança um dia já quis ser astronauta. Pelo menos o meu caso confirma. Na verdade, eu ora dizia que queria ser astronauta, ora dizia que queria ser cientista. Antes que o leitor pergunte que tipo de cientista, respondo que eu não fazia a menor idéia. Que eu me lembre, para mim cientista era um sábio que ficava num laboratório fazendo experiências, cercado por um monte de instrumentos, líquidos coloridos e ajudantes, sempre descobrindo alguma coisa nova. Ele adorava (presumia eu) misturar as substâncias mais díspares (e coloridas) possíveis, sempre descobrindo uma terceira a partir das duas anteriores. Nesse sentido, acho que o que eu entendia por cientista era na verdade um alquimista. Corrobora a hipótese o fato de eu vez ou outra misturar o que havia no banheiro para ver o que acontecia. Por exemplo, eu pegava pasta de dente, xampu, misturava com talco e pingava umas gotas de água, esperando surgir bem diante de meus pequeninos olhos algum fenômeno assombroso jamais visto antes. Como estranhamente nada acontecia, eu várias vezes mudava a proporção das substâncias empregadas no experimento, supondo que a causa do erro fosse a dosagem errada. Às vezes menos talco, outras vezes mais, outras tantas uma quantidade diferente de xampu e água... O máximo que constatei foi o surgimento de uma pasta de cor estranha na pia do banheiro e com cheiro e gosto igualmente esquisitos. Sim, é verdade: além de tudo, eu era cobaia dos meus próprios experimentos, como da vez em que tive a ingrata idéia de meter o dedo na tomada para saber o que aconteceria. Infelizmente, com exceção do choque causado durante o teste da tomada, a natureza jamais se manifestou ante as minhas provocações, e acabei abandonando a vocação devido ao tédio e ao orgulho ferido. A ciência jamais terá noção do talento que perdeu por causa de seus caprichos.

Quanto a ser pipoqueiro, era evidente que eu queria é comer pipoca. Jamais levei em consideração questões de ordem econômica a fim de saber como é que raios eu iria ganhar dinheiro consumindo toda a mercadoria. E se eu levasse tais preocupações em consideração, certamente eu seria uma criança deveras anormal. Outra coisa que me levava a cogitar a respeito desse emprego era o intrigante carrinho de pipoca. Ele me parecia meio misterioso. Aquela produção incessante de pipoca me dava o que pensar. Como aquele carrinho produzia sempre pipoca? Por analogia, eu também cogitava com meus botõezinhos acerca da existência de carrinhos de outras comidas. Todas, é claro, gostosas. Quem é que ia querer saber de um carrinho que fabricasse incessantemente fígado ou língua de boi? Eu me perguntava se haveria algum que produzisse pizzas. Como eu nunca encontrava carrinhos desse tipo, mas cansava de ver os de pipoca, me parecia muito correto que o único tipo de comida que podia ser feita por um carrinho era a pipoca, embora as razões desse fato não me estivessem acessíveis. Ora, sem querer me gabar, o leitor talvez tenha percebido que eu aplicava certa metodologia científica nesse caso, embora ela fosse meio capenga, já que eu me lixava para a teoria explicativa sobre a existência dos carrinhos de pipoca em detrimento dos de pizza. Eu só recolhia dados. Se acaso o leitor for pesquisador, talvez possa formular alguma teoria a respeito e explicá-la para as crianças. Me furto a tão trabalhoso exercício porque agora estou preocupado tão-somente em relatar quais eram as minhas vocações mais antigas.

Falei do pipoqueiro e do astronauta/alquimista. Contudo, a profissão que eu gostava mesmo era de motorista de ônibus. Eu achava a coisa mais legal do mundo ficar passeando para lá e para cá de ônibus. Eu disse “passeando”? Porque, na verdade, eu ficava é imitando o motorista. Gostava tanto de andar de ônibus que fazia questão de sentar naquele banco mais perto do motorista só para vê-lo dirigindo. Quando ele girava o volante, eu fazia um movimento semelhante no apoio em frente ao banco. Quando ele abria a porta para os passageiros, eu fingia que apertava um botão. Até o barulho da porta eu imitava, fazendo um TSSSHHHhhh! quando ela abria ou fechava. Os motoristas gostavam de mim. No ponto final eu era o primeiro a entrar. Mas tenho de confessar uma coisa. Que me perdoem os simpáticos motoristas, mas era eu quem dirigia os ônibus. Os motoristas eram só ajudantes que me substituíam quando eu tinha de ir embora. Era um emprego tão bom que eu labutava voluntariamente. Se eu exigisse hoje honorários não pagos, o sistema de transporte público do Rio de Janeiro entraria em colapso.

Eu gostava tanto de ônibus que uma das brincadeiras minhas prediletas era pegar um monte de carrinhos, colar neles o itinerário de todos os ônibus que eu porventura lembrasse e sair brincando pela casa como se ela fosse a cidade inteira. Eu era bastante criterioso. Passava não sei quanto tempo escrevendo quais eram os pontos finais de cada um dos ônibus, colava o itinerário na frente e ao lado dos carrinhos com fita durex, não permitia que os que transitavam em bairros diferentes se encontrassem (por exemplo, o 456 ficava no quarto e o 574 na sala), tentava, na medida do possível, casar as cores dos carrinhos com as das viações (se os passageiros vissem um 401 amarelo, poderiam confundir com o 170)... ah sim, e fazia questão do TSSSHHHhhh! Eu abstraía as ruas a partir do chão de tacos do meu antigo apartamento. E assim eu passava um tempão distraído, sendo uma espécie de secretário dos transportes públicos especializado em tráfego de ônibus.

Confesso ao leitor que até hoje nutro alguma simpatia por esse tipo de transporte, embora não faça mais os TSSSHHHhhh! quando a porta abre e fecha, nem fique ao lado do motorista imitando-o, até porque se eu ainda fizesse tal gênero de coisas, certamente seria considerado uma pessoa excêntrica ou debochada – ou bêbado, maluco, ou ambos. E só para constar, não tenho mais vontade de dirigir ônibus. Também nunca tive muita vontade de aprender a dirigir carro ou moto. Me contento em ir andando sempre que posso de um canto a outro. Dependo sempre de condução, embora o horário do ônibus e o conforto da viagem não dependam nenhum pouco da minha vontade. Logicamente um carro poderia ser vantajoso, mas digamos que ainda não surgiu a necessidade de ter um.

Se a vontade de dirigir um ônibus desapareceu, como desapareceu a vontade de ser pipoqueiro, ainda que eu continue gostando de pipoca, a simpatia pela ciência permaneceu. Mas permaneceu hibernando, por assim dizer. Porque se a minha vocação me levou para um outro rumo, nunca cheguei a desgostar dela. A cada dia que passa mais tenho gostado da ciência. Admito, contudo, que hoje em dia o seu encanto é diferente. Não acho mais uma coisa tão monstruosamente impressionante como achava quando tinha sete anos. Ainda que eu tenha nascido ontem, nesse pouco tempo de vida venho percebendo que sábio e cientista só de vez em quando se encontram. Mais: é meio difícil encontrar um intelectual inteligente. Às vezes encontramos um sujeito inteligente que não é intelectual, outras vezes um intelectual nada inteligente, e chegamos até a encontrar muitos que manifestam a tolice mais rasa, pois mesmo a tolice tem alguma profundidade. Não me pergunte o leitor a razão, mas hoje em dia é corriqueiro observar a burrice trotando onde há intelectuais, principalmente em seu principal celeiro: a universidade. Em todo o caso, já passei dos ingênuos tempos em que acreditava que cientista era sinônimo de sábio e ciência de sabedoria. Sem querer menosprezar a ciência e sem querer dar um testemunho público e ridículo de amor-próprio, eu diria que ela parecia muito grande porque eu era muito pequenininho. Agora que cresci um tantinho, ela não me parece mais tão grandona como antigamente. Justamente por eu crescer um tantinho, passei a ver certas coisas que meu diminuto tamanho não me permitia.

Depois de pensar em ser astronauta-cientista-alquimista, pipoqueiro e motorista de ônibus, o que mais eu gostaria de ser quando crescer? Ah, se eu puxasse pelo fio da memória, é provável que surgissem outras opções sem parar. É como fusca de palhaço: sai gente sem parar. Essas recordações, no entanto, não deixam de ser aparentadas com a senhorita melancolia, porque apresentam uma série de Cassianos postos de lado com o passar do tempo em prol deste aqui que vos escreve, leitor. Onde será que está o Cassiano motorista de ônibus? E o pipoqueiro? E o motorista de ônibus? Para onde foi toda essa gente? Ou será que estão todos aqui, dormindo, só hoje exigindo direito de se expressar, meio sonolentos? Deixemos essas especulações existenciais para outro instante, até porque este Cassiano atual quer fazer outras coisas da vida. E tenha um bom dia.