Wednesday, February 19, 2014

De uma fagulha que se acendeu em minha cabeça e que bem merece ulteriores explicações

Experiência, sentimento e intuição me dizem que talvez não seja bom, desde novo, rememorar o passado. Parece antinatural. Com efeito, segundo um antigo sábio e a sabedoria popular, os mais novos, por terem diante de si uma longa avenida de anos e pouca bagagem, tendem a sorrir para o futuro, que se lhes abre como uma favorável trilha. Já os mais velhos, movidos pelos achaques da idade e das más experiências, mas sobretudo pelo temor da brevidade dos dias, tendem a encarar, desconfiados, os dias que virão, ao mesmo tempo que se comprazem com aqueles que já se tornaram patrimônios da memória. Estes, sem dúvida, adquirem uma tal integridade e coesão que, vislumbrados pela simpatia favorável de uma perspectiva mais ampla, assemelham-se mais a preciosidades de antiquário. Os de mais idade, com essa ótica especial, contemplam à distância os idos que se perfilam como quadros de uma exposição que apresentaria, uma a uma, cenas capturadas de suas próprias vidas. Isso na melhor das hipóteses. Comumente, as representações que temos do passado são um tanto fragmentadas. Todavia, independente da sua consistência, lá atrás cintilaria uma época risonha, grávida de augustas possibilidades.

Ora, essa artimanha, se bem entendida, não seria motivo de lamentações velhacas. Se tudo pareceu mais gracioso, conforme tal perspectiva, por que o agora não guardaria em si tão bons pressentimentos? O passado, embora engessado, adquire uma tonalidade mais vívida, não tanto por ter sido como foi, mas pelas vias promissoras que antes eram almejadas. É a fecundidade latente, a vida que despontava, que brilha nos olhos dos mais velhos. Conservassem esse espírito hoje e só envelheceriam de corpo. Infelizmente, mutilada a vida de um dos seus aspectos importantes, a capacidade de permanecer criando, as conseqüências mais imediatas são um empobrecimento do presente em relação ao passado e as más perspectivas diante do futuro. Com efeito, é o que ocorre quando, na realidade, a perspectiva é ofuscada por uma ilusão. A consciência do fracasso atual vai mendigar alguma compensação que se encontra, normalmente, numa suposta época dourada. Não obstante, a sensação de existência radicalmente fraturada permanece e conduz, inevitavelmente, ao célebre e triste verso de Manoel Bandeira: "a vida inteira que podia ter sido e que não foi." Agora sobraram apenas ruínas, cuja melancólica beleza não se furta à depressão. A alma, assim constrangida, geme em lamentações.

Há outro fator a se considerar. A areia movediça do presente e a dúvida quanto ao futuro se contrapoem à estrutura coisificada do passado. Este, mal ou bem, já é um dado acabado, independente do nosso posicionamento em relação a ele. Saudade e desejo de estabilidade são termos que, nesse caso, têm mais em comum que a rima acidental. Parafraseando Camões, poderíamos dizer que o amador conserva a coisa amada, isto é, aferra-se ao estável, que se traduz num apego tanto mais mórbido aos tempos passados quão depressivas sejam as circunstâncias atuais. O complemento disto poderá até, quem sabe, redundar numa projeção, de certo modo idealizada, de um futuro alucinado cujo termo é a morte. Quem quer que se ponha entre a bigorna e o martelo sucumbirá à reverência desmesurada pelo passado, com todo o seu aspecto de pleno acabamento, ou à estranha projeção idealista, que culmina no desejo de atravessar logo as fronteiras da vida. Que isso não seja verdadeiro amor parece evidente, pois radica numa ojeriza de si mesmo e da vida que atualmente se leva.