Wednesday, April 27, 2005

Os Cavaleiros Contra um Terrível Mal - Parte II

(Obs: clique aqui para ler a parte anterior)

Os cavaleiros permaneciam mudos ante aquela cena tão bizarra. Pareciam quase hipnotizados pelo poder daquele monstro. Muitos sentiam inclusive vontade de se ajoelhar sob o peso de tão funesta impressão, tão pequenos se sentiam contemplando a potência daquele ser. Porém, aquele austero e frugal cavaleiro, espantado com tudo aquilo, não se conteve e, partindo com sua lança na mão, espada na bainha, falou em altos brados:

- Criatura do Satã, aniquilar-vos-ei, em nome do Senhor! – e correu a toda velocidade.

Como que despertados de longo sono, os outros caíram em si e trataram de fazer o mesmo. O capitão, desolado, praguejou:

- Ai da língua do homem! Quem controlará de forma devida? – e acompanhou seus companheiros.

Imediatamente o animal virou a cabeça em direção àquela turba. O ancião, visivelmente assustado, proferiu algumas palavras em um idioma extravagante e correu para dentro da floresta. Dois cavaleiros foram em sua direção. O restante quedou-se perante o monstro, com suas lanças em riste. Então o monstro, para o pavor de todos, lançou-se em direção dos guerreiros em uma frenética correria. Aqueles que não puderam desviar foram pisoteados brutalmente. Feito isto, a criatura volveu-se para trás e novamente correu em direção ao amontoado de homens, naquele instante já aturdidos. Alguns esboçavam uma fuga quando o capitão disse:

- Em nome do Senhor, ó irmãos, não fugis! Permaneçamos como verdadeiros homens para lutar a boa luta! Que venha esse demônio e toda a legião do inferno!

Aquelas palavras infundiram confiança nos cavaleiros e os que pensaram em fugir, envergonhados, permaneceram ao lado de seu líder. E todos se desviaram do atropelo. E um deles arremessou sua lança bem nas costas da criatura. Mas a lança não a feriu.

- Por São Miguel! – gritou – Tamanha é a rijeza de sua carne que não me foi possível feri-la!

- Contenha-te, homem – alguém falou –. Nem que pereçamos todos haveremos de descobrir seu ponto fraco.

A cada passo da criatura o solo retumbava, semelhante a tambores. Por conseguinte, a cada correria o chão vibrava e gemia como se estivesse sob a fúria de um deus. E ela já estava preparada para efetuar um terceiro atropelo quando o austero cavaleiro, invocando seu santo protetor, arremessou com todas as suas forças sua lança bem na cabeça do monstro. Mas sua pontaria o traiu e apenas de raspão a acertou. Contudo, a criatura soltou um alto rugido, causando rebuliço entre as aves que dormiam, protegidas da tempestade, em ninhos nas copas das árvores.

Dando suas costas para aqueles valentes, o monstro desatou em derradeiro atropelo, mas desta vez para o interior da floresta. O capitão ordenou que alguns buscassem seus cavalos e a seguissem, a fim de localizar sua toca. Entrementes, cuidou dos feridos e aguardou o retorno dos dois que foram ao encalço do ancião. E não muito tempo depois eles retornaram, tendo o velho como prisioneiro. Imediatamente o capitão o inquiriu:

- Em nome do Senhor, ó ancião, que espécie de animal era aquele contra o qual eu e meus irmãos pelejamos?

O velho respondeu em seu extravagante idioma. Ainda excitado pela peleja terminada havia pouco, o capitão praguejou:

- Velho, mal saímos de uma batalha e entramos em coisa pior. Nosso grupo retorna de uma expedição vitoriosa contra uma multidão de bárbaros e ficou incumbido de dar as boas novas ao rei. Contudo, atravessando essa floresta três vezes maldita, encaramos um animal bizarro em tua companhia. Então respondes na língua das gentes e fala, conforme a verdade, tudo o que sabes acerca daquele incrível horror. Senão, juro-o perante meus irmãos, haverás de pagar caro pelo sangue de cada um destes nobres homens feridos!

Ao que o ancião respondeu:

- Valoroso capitão, tuas palavras me infundem muito medo. Por São Jerônimo, acalma-te e me poupe de tua ira! Não percebes que sou um velhaco indefeso?

- Velho – replicou o capitão dos cavaleiros –, tu estavas em companhia de uma besta que feriu quatro dos cavaleiros mais valorosos que já vi em toda minha vida. Ao lado deles em infinitos combates com grande honra combati, sem que jamais, por habilidade, fôssemos machucados gravemente pelo ferro assassino. Tudo se pôs a perder em pouquíssimos momentos há pouco! E ainda por cima, quando furtivamente vos observávamos, tu estavas entregues em carinhos e amenidades com aquele demônio. Não podes ser tão indefeso a ponto do demônio se submeter a tua mão.

- Meu senhor – contestou o velho –, não tenho poder nenhum sobre aquela criatura. Eu riria disso se eu não estivesse em situação tão terrível como a que me encontro agora perante vós. Mas é pura verdade, a mais fiel que já emiti em toda minha vida: era ela quem me subjugava, não o contrário!

- Queres dizer então que era ela quem te levava para sorver a água do riacho? Ó velho, caçoas de mim deliberadamente! És louco rematado? Não te será prudente manter semelhante atitude, mui indigna da tua idade.

- Eu juro, eu juro, em nome de minha família!

- Senhor – disse um dos cavaleiros feridos –, é com pesar que suponho serem verdadeiras as palavras deste ancião. Eu mesmo – ai de mim! –, contemplando aquela besta, somente para mim blasfemei contra o nome do Senhor, chegando por funesto instante a adorá-la!

- Que dizeis, irmão? – perguntou surpreso o capitão.

- Eu também, meu senhor – respondeu outro –, senti tais indignidades por rápido e triste momento. E que o Senhor tenha piedade de mim!

Como muitos dos seus homens respondiam de maneira semelhante, a alma do capitão dos cavaleiros ficou muito intrigada. Somente um demônio infundiria tais sentimentos em homens tão nobres e altivos. Por conseguinte – raciocinou –, aquele ancião necessariamente possuía conhecimento acerca de um terrível e desconhecido mal. Desta forma, julgando que melhor seria nada saber que contaminar a si mesmo e a seus irmãos de luta, e imaginando por bem proteger seu rei e seus súditos de algo que começava a se desvelar terribilíssimo, golpeou o ancião bem no ventre, vindo ele a tombar sem vida de encontro ao chão pedregoso. Aquela atitude causou ruim impressão a todos, que diziam:

- Que impiedade fizestes, meu senhor? O homem estava indefeso e muito útil seria inquiri-lo sobre aquela criatura.

Com torvo aspecto, o capitão lhes respondeu:

- Valentes, acaso não tendes noção do que acabou de suceder-nos? Aquele velho já estava perdido e não fiz nada senão libertá-lo, em nome do Senhor, do grilhão daquela besta, serva do Inominável. Também não quero que eu ou vós, irmãos, sejamos contaminados pelo mal que somente este velho guardava para si, muito menos o nosso torrão querido. Que ao menos uma vez controlemos nossos ouvidos e não ouçamos o mal. Quanto à criatura, nossa lança provocou-lhe suficiente medo. Não há porque arriscarmo-nos novamente contra sua bestial fúria.

- Senhor – disse-lhe o cavaleiro austero –, falastes bem. Lancei-me com justos sentimentos, ainda que não somenos impulsivamente, àquele monstro. Não tive a humildade em reconhecer que nem tudo que está ao alcance da lança e se move e respira pode ser facilmente morto por mãos do homem.

- Ó valentes – falou-lhes o capitão –, sigamos o bom conselho do querido irmão. Ao menos proporcionemos um descanso decente para o infeliz velho. E juremos sobre nossas espadas não proferir uma só palavra sobre o ocorrido, a menos que seja absolutamente necessário. Que São Tiago abençoe nosso pacto.

Assim o fizeram.

Sob forte chuva, conquanto diminuísse paulatinamente, enterraram o ancião e improvisaram uma cruz. E tão logo retornaram os companheiros que correram ao encalço da besta – que misteriosamente desapareceu sem deixar vestígios, segundo afirmaram, surpresos –, lançaram-se em seus cavalos para continuar viagem para dar as boas novas da vitória para lá da banda do Oriente contra bárbaros ao rei.

Epílogo

Em meio à escura caverna, afastada de qualquer razoável aldeia, uma criatura terrível lambia suas próprias patas asquerosas. Em sua confusa mente muitas imagens sucediam-se, porém um motivo era constante: sempre lutara contra homens a fim de impor seu poder. Sempre foi assim, desde que tanto a criatura quanto os homens perambularam no mundo pela primeira vez. Muitos já se prostraram sob sua presença descomunal e opressiva. E mesmo que fosse acuada, ela retornava, pois sua potência era sempre a mesma, enquanto os homens são instáveis. Haveria de chegar novamente, como sempre acontecia, a sua vez, para logo depois ser vencida, em um moto perpétuo.

Doze pessoas ao seu redor a acariciavam e cuidavam de seus ferimentos. Sentiam-se como se fossem dela, mais que de si próprios. Reverenciavam-na tal como se fosse um deus. Elas sentiam a urgência de envidar todos os seus esforços para que mais uma vez os povos adorassem-na e mergulhassem na mais abjeta idolatria.
E o monstro não se lambia mais, mas por elas era lambido.

Glauco para Diomedes

aien aristeuein kai upeirokhon emmenai allon (Ilíada, Z 208)

Neste verso está resumido o ideal de formação da aristocracia arcaica grega: para ser sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-me, disse Glauco para Diomedes, acerca da exortação dada pelo seu pai antes de ir defender Tróia.

Este ideal nobre é algo bem diferente de nossos tempos. Pois afinal de contas, que mais nossa educação preconiza senão a igualitarização - palavra feia - entre todos, custando a admitir que a própria educação leva a uma preeminência de uns sobre outros? E mais distante ainda está a idéia de superação, mediante obstáculos sérios e difíceis. Isto agradava a um nobre aquivo dos tempos de Aquiles Pelida. Hoje em dia, ninguém aprecia o fardo imposto a si mesmo mediante a nobreza residente em nossa alma ou, noutras palavras, a exigência de não sermos inferiores a nós mesmos, sinônimo de ignorância segundo Sócrates no Protágoras (358 c).

Quem sabe a leitura extensiva de Homero e Platão não remediaria este fato?

Monday, April 25, 2005

Recomendação musical da semana: o Miserere de Gregório Allegri

Nesta semana eu recomendo ao leitor a audição de uma bela e famosíssima peça para coro: Miserere mei, Deus, de Gregório Allegri. Esta obra, composta em 1638, possui como letra o Salmo 50 (Miserere), segundo a edição da vulgata.

Há muito tempo que os compositores musicam o Salmo 50. Um exemplo remoto é o famoso Josquin Des Prés (c.1450-1521), que compôs um Grande Miserere. Infelizmente não posso dizer muita coisa a respeito desta música porque nunca a ouvi, mas ela é geralmente bastante estimada.

Segundo Carpeaux em seu O Livro de Ouro da História da Música, o Miserere de Allegri é cantado na Capela Sistina na quarta-feira da Semana-Santa (imaginem isso!). Seus originais eram um segredo: durante séculos era expressamente proibido copiá-los. Daí que tal obra foi por dois séculos uma das principais atrações turísticas de Roma. Aliás, o próprio Mozart o ouviu quando tinha 14 anos – e a notou de memória...

A música é para dois coros: um de quatro vozes, outro de cinco. Portanto, policoral. Começa com todos cantando em uníssono, para tão logo se alternarem. O que não quer dizer que em vários trechos não voltem a se encontrar, como se estivessem os ressaltando. Em certas passagens, quando apenas um dos coros canta, não há como não lembrar do velho coro gregoriano, como se ele fosse “citado”. O que é interessante é o fato de apenas um dos coros passar esta impressão. O outro já não canta da mesma forma. Dá para notar uma pequena polifonia nele, que por isso eu o chamarei muito impropriamente de “não-gregoriano”, em pequeno contraste com o outro. Mas é bem pequena, quase discreta, esta polifonia dentro dele. Ou quem sabe não foi apenas impressão minha? E tudo isso sem contar que em certas passagens uma das vozes se separa do restante do coro e, exprimindo um tom belo e ao mesmo tempo bastante sentido, produz um atordoante clímax. É algo cativante.

Se o leitor conhecer alguma música de Palestrina, como por exemplo aquela Missa Papae Marcelli (cantada após as cerimônias que iniciam a Páscoa), que indiquei há posts atrás, perceberá que ambas as músicas são a capela. Elas também possuem em comum a declamação clara do texto, ainda que sejam polifônicas, ressaltando de maneira belíssima até mesmo as sílabas do que cantam. Daí que não é muito lícito afirmar que elas são apenas uma declamação, porque elas vão um pouco mais longe. Não quero entrar na questão se isto é uma certa “ousadia contida”, algo como tentar ir o mais longe possível que uma música deste tipo– excelente música – pode permitir. Mas tanto uma como outra pertencem seguramente ao recinto religioso. É um grande exemplo da não menor influência de Palestrina na música da época.

É importante ressaltar o fato de ser uma música destinada à declamação clara, ainda que polifônica, de um texto religioso, porque isto explica uma relativa monotonia do Miserere, assim como da Missa Papae Marcelli e demais do gênero. O que importa é que estas músicas sejam construídas de forma sóbria, artisticamente sóbria, com base nos textos sacros, sem apelar a muitos “contorcionismos estilísticos”. Um Bach, por exemplo, é totalmente diverso deste espírito musical, estando muito aparentado com os compositores góticos anteriores a Palestrina, na opinião de alguns críticos. Daí a curiosa expressão “Bach gótico”, segundo alguns. E este artifício permite que ela conquiste uma profundidade emocional grande, condizente ao espírito religioso católico. Que o leitor ouça a tão citada missa de Palestrina, pois ela é o exemplo claro deste estilo, ainda que segundo alguns não seja o que o compositor fez de melhor. Por isso que “ouso” afirmar que alguém que não seja católico ou possuído de ideais semelhantes provavelmente não compreenderá bem um Miserere, até porque, como cansei de dizer, o seu espírito reporta a “aura” do salmo 50, que é um pedido de perdão a Deus. Achará enfadonho, tanto quanto talvez ache aquele salmo. Aliás, é divertido comparar esta música com aquelas dos “padres showmen” e a importância demasiada que vários dão ao fator “descontração” na missa. É como se o vale de lágrimas desse lugar ao trem da alegria. Mas não tenho realmente uma opinião sobre isto, então deixemos de lado estas considerações.

O leitor curioso poderá baixar o Miserere de Allegri aqui. Semelhante àqueles que peregrinavam até Roma apenas para ouvi-lo, entre no link e pegue o diacho da música. Terá a dupla vantagem, com relação aos antigos, da ínfima despesa e máximo conforto. E vá logo, pois sabe-se lá deus até quando esta oportunidade haverá. E sim, não te esqueça que o salmo está em latim.

PS: Que interessante: uma obra que por séculos apenas em Roma poderia ser ouvida, agora nós, pela Internet, podemos encontrá-la facilmente.

Friday, April 22, 2005

Reflexão da semana

- Estou cada dia mais parecido com Júlio César.

- Cobiça pelo poder? Extraordinária presença de espírito nas mais difícies situações? Grande senso prático? Vontade de ferro? Conduta magnânima?

- Não, não. Calvície mesmo.

Tuesday, April 19, 2005

Os cavaleiros contra um terrível mal - Parte I

Chovia. Os caminhos pelo meio da floresta permaneciam lamacentos. Os cavalos trotavam com muita dificuldade. Era noite fria e os cavaleiros não achavam uma área para acampar. Imaginavam que seria possível, conquanto a chuva atrapalhasse, atravessar todo o percurso naquela noite. O pequeno grupo então fazia o possível para avançar.

A cada estrondo de trovão alguns cavalos empinavam. Um dos cavaleiros, tendo ribombado um sinistro relâmpago, foi jogado ao chão pela sua assustada montaria. Outros cavaleiros não pensavam noutra coisa senão pedir a Deus proteção. Seus corações anunciavam qualquer coisa de estranho e bizarro prestes a ocorrer. Um deles, tomando coragem, falou para o capitão:

- Senhor – sussurrou para que apenas o capitão ouvisse –, acho melhor pararmos. Meu coração está petrificado. Acho que o Espírito do Senhor está me avisando que alguma coisa terrível está para acontecer conosco.

- Meu caro fiel – disse pausadamente o outro –, acreditas seriamente no Nosso Senhor?

- Por São João, e como não?

- Ama e crê com todas as tuas forças?

- Por minha vida, senhor.

- Então – disse abrindo um sorriso – entrega tua vida nas mãos do Eterno. Se tua hora for essa, resignas-te. Caso contrário, siga com teu cavalo até o fim que não acontecer-te-á nada.

Mal terminou de dizer tais palavras, um violento relâmpago iluminou sua face. Em um momento, o outro cavaleiro foi tomado pelo pânico e cerrou os dentes. Outros fizeram o sinal da cruz. Mas aquele que antes vacilara domou seu próprio espírito e permaneceu em coragem.

O capitão seguia na frente, enquanto seus homens permaneciam em fila, cavalgando o mais rapidamente que a estrada lamacenta permitia. A chuva parecia aumentar tanto que um deles exclamou:

- Não vos parece, varões, que o Senhor esqueceu da aliança com Noé e se pôs a inundar novamente o mundo?

Alguns riram. Mas um deles, extremamente piedoso e conhecido pela sua frugalidade e austeridade, respondeu:

- Valente, não blasfemai. Tais palavras apenas acarretam para ti e para nós a ira do Senhor.

- Este lugar é de tal maneira tenebroso que não parece ter sido criado por Deus – disse alguém.

- Que falastes, miserável? – esbravejou o austero cavaleiro. – Tudo no mundo é obra de Deus!

E a discussão talvez terminasse mal se o capitão não interrompesse, pedindo calma a todos, afinal de contas não havia motivos para que perdessem seu espírito daquela maneira. E acrescentou:

- Fostes à peleja contra os bárbaros para lá do Oriente, onde, segundo alguns, aquela gente se alimenta, em épocas de necessidade, primeiro dos próprios filhos, depois dos anciãos, enfim das mulheres e por último dos varões menos capazes. De tal gênero de gente passamos em disparada com nossos cavalos por cima. Ali sim era uma ocasião para temermos, pois além de tudo mais havia uma multidão de inimigos contra alguns poucos de nós. Falo tanto com propriedade que perdemos muitos irmãos na peleja sangrenta, embora tenhamos vencido, em nome de Deus. E estando Ele conosco, qual o motivo para que fiqueis tão receosos de meros trovões e relâmpagos?

- É verdade, senhor – responderam os homens.

- Muito bem: orem para vossos santos protetores e calem vossas bocas até atravessarmos essa maldita floresta.

Assim prosseguiam. Contudo, a despeito dos sons da chuva martelando o solo, da copa das árvores balançando sob as chibatadas dos ventos e das constantes trovejadas, ouviram algo que os deixou inquietos. Não era possível identificar que espécie de barulho era aquele; parecia algum animal respirando lentamente. A julgar, talvez fosse grande. Mas eram baixos os sons. Aquilo inquietou de sobremaneira os homens. O capitão fez alto e se pôs a identificar de onde vinham os ruídos. Pareciam próximos. Então ordenou que seus homens descessem dos cavalos e o acompanhassem. Titubeando muito, enfim o seguiram.

Seguindo a origem daquele estranho som, deram-se com um riacho pequeno, embora agitado pela chuva e pelos ventos. Furtivamente andavam, ao passo que, pela aproximação da origem daquele som, os ruídos aumentavam. Até que, de uma distância segura, observaram algo que lhes infundiu temor maior ainda. Havia uma besta grande sorvendo com sua grande língua a água do riacho. Não era possível precisar que gênero de criatura ela aquela, tão estranha e bizarra se afigurava. Estava apoiada por quatro patas, tal qual um cavalo, mas eram muito grossas. Aliás, toda a sua pele aparentava ser revestida de couro muito espesso. Na sua cabeça disforme havia chifres grandes e assaz pontiagudos. Sua cauda lambia o solo em movimentos lentos. Tal criatura emanava de si qualquer coisa de poderoso, infundindo a quem quer que a observasse, caso não estivesse possuído de espírito forte o suficiente, um sentimento de inferioridade perante o monstro. Fatalmente tal gênero de criatura já subjugou muitas coisas deste mundo, e provavelmente era adorada por algum idólatra.
Ela não estava só. Ao seu lado, sussurrando vez por outra, havia um ancião. Vestido de trapos, embora sua face não aparentasse qualquer coisa de malévola. Ele passava a mão na cabeça do monstro – maior que ele muitos côvados –, e parecia satisfeito em observá-la a sorver com tanto apetite a água do riacho.

(continua...)

Thursday, April 14, 2005

Eclesiastes

E louvei mais os mortos que os vivos: e reputei mais venturosos do que uns e outros, ao que ainda não é nado, e que não tem visto os males que se fazem debaixo do sol. (Ecl 4,2s)

Teógnis

De todas as coisas, a melhor para os homens é não ter nascido
nem ter visto os raios do penetrante sol.
E, uma vez nascido, transpor depressa as portas do Hades
e jazer coberto com muita terra.

(fr. 425-428 A)

Wednesday, April 13, 2005

Uma impressão (?) sobre a morte

Não sei dizer se é um caso de psicopatologia eu pensar com certa freqüência na morte. Quer dizer, não digo que penso na minha ou na de alguém, mas apenas nela e em suas – como eu poderia dizer? – “implicações” (por falta de um termo melhorzinho). Também não quero dizer com isso que fico abismado pelo fato das pessoas morrerem ao invés de viverem para sempre – isso seria muito jeca. Não acho, aliás, nada do que já matutei sobre o assunto original ou digno de renome.

O mais estranho é que não tenho nenhuma grande experiência a respeito da perda de entes queridos. Naturalmente, numa situação onde a morte é coisa tão inusitada, eu deveria antes não tê-la em mente ou, ao seu menor ruído, sentir terrível calafrio ou pavor. Mas não é bem isso. Muito embora eu me ponha a refletir, às vezes, sobre hipotéticas e trágicas situações, em que perco entes queridos, por mais doloroso que seja imaginar algo desta monta não sinto algum tipo de desespero, porém algo próximo à dor da saudade, mas uma saudade que será, nalgum tempo, saciada. Mas em que sentido? Não sei dizer muito bem, talvez como se não fosse a última vez que verei aquela pessoa que deixou este mundo.

Seria estranho eu ter uma experiência a respeito desse tipo de perda e de sua natureza graças a um meio tão aparentemente artificial como um livro ou tão aparentemente distante da nossa realidade concreta como a música? Pior, de gente que há muito, por sua vez, morreu? É esta a questão: foi lendo e ouvindo música que adquiri alguns “vestígios de idéias” em relação à morte. Foi lendo sobre Sto. Tomás de Aquino e como ele se portou ante o velório de sua mãe; foi lendo Heródoto e como ele fazia questão de ressaltar o problema da “Roda da Fortuna”, que molda a vida, sem que possamos verdadeiramente considerar feliz alguém enquanto vivo porque a qualquer momento pode ocorrer-lhe uma desgraça; foi lendo Platão e sua filosofia do “aprender a morrer”; foi lendo o Eclesiastes e sua canseira em relação ao mundo; foi conhecendo um pouco acerca do monaquismo e sua vida dedicada à preparação, ainda aqui, e mais adequada que a de todas as outras pessoas, ao outro mundo; foi lendo, por estranho que possa parecer, biografias de gente como Bach, e a maneira com que lidou freqüentemente com a morte através da perda de vários de seus filhos e inclusive de sua primeira esposa; foi ouvindo réquiens e mais réquiens que tudo isso me tocou de forma ainda mais forte; foi lendo livros de história, que apresentavam exemplos vários do que Heródoto, Platão, Aristóteles, o Eclesiastes e os monges já diziam: que a vida é fragilíssima e que devemos envidar nossos esforços ao que seja realmente de valor, às coisas eternas, as quais, algumas, ainda nesta vida, podemos contemplá-las e segui-las, conforme os Magos seguiram a Estrela para encontrar o recém-nascido Menino Jesus. A Bíblia é uma imensa reflexão sobre a morte, e termina da maneira mais categórica: sim, ela foi vencida em determinada época, e será vencida novamente. Que aguardemos.

Mas tudo isso, naturalmente, tanto pela gravidade da questão como pela minha paupérrima experiência, não serve para que eu firmemente tenha, atualmente, uma posição existencial sobre o problema. Estes “contatos” serviram, isso sim, como uma espécie de obra de arte: causaram-me, antes de mais nada, uma profunda impressão. Porque ainda que eu sinta, ao contrário, toda a sorte de forças que me desviam da impressão que tenho sobre a morte, e ainda que freqüentemente eu aja de forma contrária ao que penso, ainda assim tenho comigo todos aqueles exemplos. Sinto mesmo um certo conformismo a seu respeito. Penso, aliás, que há uma certa justiça na morte, se o leitor me permite disparar uma frase de efeito, a qual não procurarei, por preguiça, explicar. Não quero dizer que a morte seja uma felicidade, ou que devemos esperar pela redenção de nossas almas às custas deste mundo “cruel e feio”. Estou apenas comentando que ela parece apontar para algo que está acima das tribulações ensandecidas de nossa existência, o que me parece um indício de dignidade. Percebam: eu disse “apontar”, que equivale a uma indicação de certa coisa. Na realidade, não é a morte por si que é digna de elogios, mas a referência que ela nos dá a algo mais íntimo em e para nós mesmos, que não sei bem definir o que é, mas que todos aqueles grandes homens que citei, de alguma forma, ainda em vida enxergaram, procurando expressar de variadas formas, seja por escrito, seja pela música, suas impressões. É como se não fosse possível vivermos sem dar algum tipo de solução (ainda que seja provisória e hipotética) ao enigma que ela nos apresenta. Que é que existe depois dela? Será que você, amigo leitor, está lendo um texto que não servirá para nada, ou a atenção que você está gentilmente dispensando para ele será inútil, assim como as realizações minhas e tuas nesta vida, após deixarmos este mundo de justiça imperfeita? E se for assim, tudo inútil, para que tantos trabalhos? A morte é a esfinge que por enquanto devora todos os homens.

Tuesday, April 12, 2005

Ilha dos Bem-Aventurados

Hoje à tarde fui à faculdade de Letras da UFRJ. Perto de sua entrada há uns quadros abstratíssimos, os quais me fizeram, de supetão, lembrar de certas coisas que o Carlos escreveu dia desses. Aliás, por falar em arte, será mesmo verdade que pediram para que alunos de Belas-Artes de uma universidade qualquer analisassem uma pintura feita por um chimpanzé, claro, sem que soubessem deste pormenor, e que muitos deram comentários até mesmo filosóficos? Contaram para mim isso faz muito tempo e nunca mais esqueci.

Mas minha ida àquela biblioteca não serviu apenas para digressões acerca da arte contemporânea. Sempre que vou ao campus da UFRJ lá no Fundão fico pensando também sobre a questão da Ilha dos Bem-Aventurados. Segundo Platão, é para lá que os justos vão depois de morrerem. Mas Aristóteles, nalgum diálogo de juventude, considerava a própria Academia como uma espécie de Ilha dos Bem-Aventurados, no sentido de todos ali se reunirem a fim de se dedicarem a mais ilustre maneira de viver, que é a dedicada à filosofia. E não apenas por isso: ali reunia-se também muita gente altamente capacitada, ligada pela amizade uns com os outros e pelo amor ao saber.

Ora, que seria a Universidade senão uma Ilha dos Bem-Aventurados, separada fisicamente da celeuma dos habitantes da cidade, com o intuito tão-só da dedicação ao saber, num clima de verdadeira confraternização entre seus membros? Daí que ela não deva ser apenas mais um lugar de ensino, mas o centro de ensino por excelência.

Não há um dia sequer que, ao passar por lá, eu não pense nisso. No entanto, a julgar pelo que costumo ver na UFRJ, parece que ela está infestada de mercadores disfarçados de alunos e professores, somente para criar azáfama. Nada mais distante da Universidade.

Pequena história do homem que derreteu até sobrar apenas a cabeça

Era uma vez uma pessoa que, devido ao constante calor do Rio de Janeiro, derretia. Primeiro foram os pés e pernas, em seguida o tronco e os braços. Mas a cabeça não derreteu, graças a uma arte engenhosa: havia espaço na geladeira. Viveu desse modo na casa do irmão, pois afinal de contas, como uma cabeça entraria por lá sozinha, e como cuidaria de si mesma?

O único problema foi quando, em certo dia, um amigo de seu irmão abriu a geladeira e viu a cabeça lá dentro. Assustado, fingiu que esquecera de alimentar seu alce de estimação (infelizmente, ele não era bom para dar desculpas de improviso) e saiu, telefonando em seguida à polícia, dizendo que seu amigo havia matado alguém e deixado a cabeça na geladeira. Quão cômico, meu deus, não foi quando a polícia por lá chegou e, após momento tenso, viu que tudo não passava de mal-entendido! Todos riram até não poder mais, inclusive o sujeito da geladeira.

Dentro da geladeira ele viveu para sempre, ao redor de muita comida e bebida, principalmente sorvete napolitano, e vez ou outra lia um livro, artifício assaz complicado, já que apenas uma cabeça não consegue virar uma página de maneira adequada. Que o leitor tente ler um livro sem o auxílio de nada mais além da própria cabeça para saber quão difícil é.

Sunday, April 10, 2005

Tolkien, de novo

Dia desses indiquei um interessante texto sobre O Senhor dos Anéis. Agora tive a felicidade de encontrar outro, antigo já de três anos. É de Martim Vasques da Cunha, que escrevia para "O Indivíduo" antes de virar blog. Texto altamente recomendável para quem gostou do livro, é uma análise séria sobre aquela obra de Tolkien e, por tabela, do próprio escritor. Ou seria o contrário? Enfim, colocarei dois trechos para que o leitor saiba em quê se meterá:

"Nunca houve um livro mais mal-interpretado no século XX do que 'O Senhor dos Anéis', de J.R.R. Tolkien. Seus detratores afirmam que é 'um livro muito mal escrito', sem 'a angst de um Wagner', com 'insinuações homossexuais', 'uma pura babaquice de criança', 'uma historinha da carrochinha com duendes e elfos', terminando na mais interessante das conclusões - 'mais um negócio que prova o seguinte ditado: a cada minuto nasce um otário'. Mas o pior mesmo são justamente os seus defensores, fãs que levam o mundo que Tolkien criou durante sessenta anos à uma realidade que nunca existiu, fantasiosa, um meio para a fuga da vida que se transforma em estéril fanatismo e em tudo o que seu criador não queria."

"(...)Não se pode entender 'O Senhor dos Anéis' sem entender o fato de quem era o homem Tolkien e como pensava esse sujeito. Apesar de viver no século XX, J.R.R.Tolkien era alguém que não tinha nada a ver com o pensamento moderno que impregnou nossa civilização. Era um peixe fora da água: católico quando sua Igreja passava pela maior crise espiritual de sua existência durante a Segunda Guerra Mundial, papista quando a figura do Papa era levada a descrédito total, conservador em gostos literários quando todos se impregnavam de 'fluxo de consciência' e de 'estilos fragmentados', obecado pela verdade dos mitos quando o mito era utilizado como paródia por James Joyce e T.S.Eliot. Somado a tudo isso, adicione a revolução urbana, a decadência dos valores tradicionais e a sensação que, com o advento do nazismo e a descoberta dos campos de concentração, o fim de um mundo estava se aproximando com o ritmo inexorável do fatalismo. A Europa não seria mais como antes, e realmente a obra de Tolkien exala um profundo cheiro de nostalgia, em que a saudade de um mundo dá lugar ao empobrecimento do espírito humano."

Qual é o problema de um filme como "Inteligência Artificial"?

O problema mais grave de um filme como o “Inteligência Artificial” é o que chamo de “complexo de inho”. É um robozinho que tem aparência de menininho e que é adotado por um casalzinho, cujo filhinho está gravemente incapacitado. Ah: existe ainda um ursinho que vive atrás do robozinho. Isso sem contar em como este sujeitinho é enjoadinho. Confesso que se eu comprasse um robô assim, depois das primeiras três horas me seria difícil resistir à tentação de jogá-lo fora ou pelo menos devolvê-lo. Haja paciência...

Esses inhos têm seu motivo, e não é nada relacionado propriamente ao filme, mas a quem o vê. Porque das várias maneiras de cativar um espectador, uma das mais fáceis é a apelação aos sentimentalismos(inhos). Quem não fica emocionado vendo a história de um garotinho – ainda que seja um robozinho – que acaba sendo largado às próprias custas pela mamãezinha que ele tanto ama, esta uma mulherzinha muito carente, coitada? Quem resiste às desventuras do garotinho, acompanhado pelo seu ursinho e por um robô-prostituto bonzinho? E a beleza das cores do filme, com aquela cidade toda de néon à noite? Ora, se mulher pelada é para quem tem o sangue fervendo, e a violência gratuita é para quem for desprovido de sentimentos, o “complexo do inho” é a maneira de cativar quem tem coração mole ou está cansado das outras duas maneiras de apelação.

O pior de tudo é que o argumento do filme é muito bom. Vejam só quantas questões sobre o fato de uma empresa resolver produzir andróides com o intuito de serem substitutos de crianças para pais que, por diversos motivos, não podem tê-las, não surgem! É um tema sério e tenebroso por natureza. Todo mundo pode adivinhar que as conseqüências de algo assim não serão nenhuma beleza, e o próprio filme o comprova. Aliás, o pior de tudo é que o diretor não é nenhum incompetente. Nos lampejos sem apelação, ele mostra todo o seu potencial. Aquela cena mais para o fim, onde o garotinho vê uma série de cópias de si mesmo na empresa que o fabricou, por exemplo, é quase digna de redimir o filme. Ou aquela onde vários robôs buscam, no meio da sucata, alguma coisa que lhes sirva, inevitavelmente nos demonstra a gravidade do problema. Ou mesmo aquela cena onde o garotinho é abandonado pela mãe, que comove seriamente - a despeito de algum exagero por parte dos atores ou da trilha sonora, não me lembro direito. No entanto, Spielberg joga tudo fora quando quer porque quer meter um bando de ETs a fim de dar um final feliz, mesmo às custas da nossa paciência. Se o leitor prestar atenção no desenrolar do filme, verá que não há alternativa alguma para que ele termine bem. Tudo conspira contra aquele garotinho infeliz, o que de certa maneira, dentro daquele enredo, faz sentido, ou seja, faz bem. Então qual foi a única maneira de não deixar o público chateadinho? Foi inventar aquele esdrúxulo expediente dos ETs, quando era para o filme terminar, com todas aquelas explicações chatas. Seria menos pior se o próprio Jesus Cristo transformasse o garotinho num moleque de verdade.

Kubrick participou da elaboração do argumento daquele filme. Ora, pergunto ao leitor: se fosse ele o diretor em lugar do Spielberg, você poderia imaginar todos esses inhos? Respondo por ti: não! Ainda que o filmasse como uma fábula, provavelmente seria de propósito canhestra, afinal de contas, dadas as circunstâncias em que se passa o filme, a redenção do robozinho em gente de carne e osso não responderia a questão: e quanto aos outros milhares que surgiriam? E o problema da criação deles? É por causa de problemas assim que fica difícil comparar o “Inteligência Artificial” com Pinóquio: ambos se passam em circunstâncias muito diversas. Gepeto não criava simulacros de crianças. E sua sociedade nem podia imaginar um tráfico de bonecos ou um mal-estar de algumas pessoas diante de andróides (ou bonecos, que seja).

Por fim, toda a fábula possui um vilão. Pergunto: quem é o sujeito malvado da hitória? O caçador de robôs? Não, ele é, digamos assim, "politicamente correto", afinal tem muita preocupação em não pegar uma pessoa por engano. Os motoqueiros? Não, aparecem muito rápido. O público que quer ver os andróides serem destruídos? Mas não, diacho!, a gente compreende perfeitamente a posição deles. O único vilão que concebo é o menininho que foi causa da expulsão do andróide. Convenhamos que um vilãozinho desses não dá para o gasto...

Embora eu tenha criticado tão asperamente “Inteligência Artificial”, ele não é uma porcaria. Como eu disse antes, há cenas realmente belas, fora toda aquela potencialidade do roteiro. Mas bateu na trave, e por culpa consciente do diretor, fazer o quê?

Enfim, se eu tiver que recomendar esse filme a um público específico, recomendo aos de coração mole, que acham que tudo tem de ser muito bonitinho e fofo, independente do conteúdo infantilizante com que se depararem, e todo o gênero de pessoas impressionáveis. Pelo mesmo motivo recomendo a quem está habituado a assistir porcarias como “Cidade de Deus” e adjacências, porque pelo menos um filme como “Inteligência Artificial” pode servir como inspiração a conversas mais sérias e elevadas, o que não é o caso daquele troço horroroso.

Thursday, April 07, 2005

Uma bela recordação de João Paulo II



"Você tem que regularizar teus assuntos com a Igreja!", dizia asperamente João Paulo II a Ernesto Cardenal, na época ministro do governo revolucionário da Nicarágua e ao mesmo tempo sacerdote.

Vi a admoestação do papa faz poucos anos num programa. Lembro-me apenas desta parte: o papa no aeroporto apontando sucessivamente o dedo bem no rosto do Cardenal (repararam como ele lembra o Leonardo Boff?) e dizendo algo, zangado. Cardenal nem se mexeu.

Acho que não é possível que nenhuma pessoa razoável tenha percebido a própria mão do Espírito Santo naquela ocasião. Aquele feito, aparentemente tão simples, apresentava-se com um contorno heróico e acabou por ser memorável. Afinal de contas, não era isto que todos esperavam que acontecesse com todo o clérigo que namorasse o marxismo?

Não estou apto para dizer algo sobre o pontificado de João Paulo II, afinal de contas não tenho a menor obrigação ou competência para comentá-lo, ainda que seja a respeito do tão divulgado beijo que o papa deu no Corão, seja ainda sobre a excomunhão de Dom Lefebvre. Porém aquela foto, além daquele vídeo que assisti, estarão para sempre na minha memória.

Wednesday, April 06, 2005

Ao invés de Catilina, José Dirceu

Eis que, pela estranha imaginação do escritor destas linhas, Cícero (sim, Marco Túlio Cícero, o eminente romano) é transportado para a atualidade deste nosso belíssimo país. Ora, que seria de nós se aquele homem, vivendo bem nestas plagas, descobrisse as sórdidas ligações entre o PT, as FARCs e outros grupos terroristas, que teriam como fim a revolução, não apenas no Brasil senão em toda a América Latina e quiçá no resto do mundo? Então, em sessão do senado, Cícero entraria e, encontrando José Dirceu, eis que, com postura altiva, pediria a palavra e, olhando bem nos olhos de Dirceu, em tom grave dispararia no plenário:

Até quando, José Dirceu, abusarás de nossa paciência? quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? onde vai dar consigo tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas de Brasília, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bons, nem este seguríssimo lugar do Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos estes inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste? Oh tempos! oh costumes! percebe estas coisas o Senado, o presidente as vê, e ainda assim vive semelhante homem! Que digo, vive? antes vem ao Senado, é participante do conselho público, assinala e designa com os olhos, para a morte, a cada um de nós. E nós, homens de valor, nos parece ter satisfeito à República, evitando as suas armas e insolência! Muito tempo há, José Dirceu, que tu devias ser preso por ordem dos supremos magistrados, e cair sobre ti a ruína que há tanto tempo maquinas contra todos nós. Porventura, na antiga Roma, o insigne P. Cipião, Pontífice Máximo, não matou a Tibério Graco, por deteriorar um pouco o estado de sua república? e nós havemos de sofrer a José Dirceu, que com acordos escusos com as FARCs e outros terroristas quer assolar nosso país e a América Latina? Passo em silêncio aqueles antiqüíssimos exemplos, de quando, também em Roma, C. Servílio Ahala matou com suas próprias mãos a Spúrio Mélio, que procurava introduzir novidades. Houve antigamente na história dos nossos antepassados esta fortaleza, de reprimirem homens de valor com mais severos castigos ao cidadão pernicioso que ao cruelíssimo inimigo. Temos pois já contra ti, José Dirceu, decreto veemente e severo; não falta conselho à República do Brasil; nós, abertamente o digo, nós somos os que faltamos.

O discurso não pararia por aí, mas sim a minha imaginação. Basta o leitor ler a Primeira Oração de Cícero contra L. Catilina, tendo a boa vontade de fazer as devidas adaptações para o nosso contexto. Pena que isso ficará apenas no mundo das idéias. E até, boa noite.

Sunday, April 03, 2005

Duas recomendações musicais da semana

Recomendo espalhafatosamente a Fantasia e fuga em lá menor do velho da peruca. Esta música de 1720 para órgão não é apenas boa: é de outro mundo. Somente as modulações iniciais já dão uma idéia de sua beleza. Infelizmente estas pobres palavras não se servem para explicar sua qualidade. Aliás, que palavras servem para esgotar qualquer música? Então que o leitor corra e a ouça o mais rápido possível.

Outra recomendação para esta semana, em homenagem ao papa João Paulo II, é a Missa Papae Marcelli, de Giovanni Pierluigi da Palestrina. Esta música, de 1567 e para coro a capela, é de outro mundo, mas por motivo diferente da de Bach: é suave, toda declamada, própria dentro de uma igreja, sendo aqui fora algo meio esquisito, deslocado. Não acho, porém, que seja uma blasfêmia escutá-la na comodidade do lar; é como se o ouvinte fosse transportado para uma catedral. Aliás, reza a lenda que, em vésperas da música polifônica ser abolida no Concílio de Trento, a fim de apenas ser permitido o coral gregoriano, os prelados, tomando conhecimento desta obra, mudaram de idéia. Por que a proibiriam? Porque, segundo eles, não era possível compreender o que era cantado, tal era a complexidade da música polifônica, composta por mestres flamengos, na época. O texto era apenas um pequeno suporte para suas músicas, sem contar o grande número de textos profanos com que trabalhavam. Palestrina simplificou a polifonia, tornando a letra compreensível. Não esqueça o leitor que tudo isso acontecia no ambiente da Contra-Reforma.

Bom, em todo o caso, aqui fica a sugestão. Se o leitor quiser uma dica, faça como eu: busque pelo Soulseek, um desses programas que compartilham arquivos entre os usuários online. Foi assim que encontrei essas duas músicas.