Wednesday, August 31, 2005

Cultura no abismo

OBS: O texto a seguir foi publicado anteriormente na versão antiga d' "O Teocrata" alguns anos atrás. Eu até mudaria uma coisa ou outra mas, citando alguém de caráter tão duvidoso quanto Pôncio Pilatos, digo que o que escrevi, escrevi.

Mas que a tentação de retirar o nome de Tchaikovsky foi grande demais, ah, isso foi...

E só uma curiosidade: a parte onde digo "Creio de maneira clara e distinta" foi empolgação depois de ler Descartes. É uma expressão muito escrota, mas enfim, eu estava deslumbrado...


Uma das grandes idéias que se teve a respeito de expandir o acesso de música clássica ao povo foi a cobrança bastante generosa do ingresso do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro. Por apenas cinco reais, pode-se assistir, da galeria, obras de autores do porte de um Tchaikovsky, um Beethoven, um Schubert, entre muitos outros grandes. Frisas e camarotes também são bem acessíveis, já que custam vinte reais. Ainda é exceção à regra em matéria de valores de ingressos. Porém já é um começo.

Outra boa idéia nesse ponto é o programa muito simpático do senador Arthur da Távola. Passa na Rede Senado, em vários horários, e se chama sugestivamente Quem tem medo de música clássica?

Isso pode dar a impressão de que existe uma preocupação real em expandir a música erudita para a população. Infelizmente, tal coisa é bastante duvidosa. Eu mesmo, há alguns anos, deparei-me pela primeira vez com uma orquestra sinfônica ao vivo. Não me recordo bem qual era. Ela estava tocando a céu aberto na Cinelândia. Como eu estava andando sem rumo e fiquei surpreso e curioso em observar a orquestra, pus-me a apreciá-la. Lembro bastante das músicas que tocaram: partes de O Guarani, Aquarela do Brasil, e fecharam de forma triunfal com Assim Falou Zaratustra, de Strauss.

Estava totalmente fascinado, prazerosamente ouvindo a apresentação quando, findado o espetáculo gratuito, eis que o maestro resolveu falar. Para maior surpresa minha (e do público, irmanados comigo nessa impressão), ele noticiava que a respectiva apresentação havia sido motivada devido a pauperização da orquestra e, para alertar a população, resolveram fazer uma espécie de ato público, que poderia também ser revertido em ajuda financeira, mediante a aquisição de cds produzidos pelos músicos que ali estavam. Em outras palavras, estavam mendigando em praça pública.

Claro que todos estavam perplexos! Como seria possível não haver patrocínio para algo tão grandioso? No momento, eu não estava acompanhado pelo dinheiro, caso contrário teria feito minha doação idealista. Saí de lá entristecido.

Hoje, pensando nesse assunto e no esforço de gente que gostaria que todos ouvissem e gostassem de um Bach, tenho de concordar com a verdade, esta sempre disposta a nos constranger para o bem. Ela nos estapeia; mas como se pode querer que todos ajam para tal fim, mesmo que seja algo legítimo e benéfico, se os meios para alcançá-lo são inexistentes ou pouco claros e tênues o suficiente para que não se os perceba?

Creio de maneira clara e distinta no que se segue: podemos até mesmo obrigar e constranger um indivíduo a visualizar as coisas mais belas e notáveis. Contudo, de que isso adiantará se ele anteriormente não tiver obtido todos os pré-requisitos para que seu espírito se torne dócil o suficiente para participar daquilo que é belo? Seja lá quem tenha assistido ao filme Laranja Mecânica, de Kubrick, sabe do que falo. Alex, um psicótico, na prisão, resolveu ler a Bíblia para poder aparentar bom-comportamento e participar de um programa de reabilitação, a fim de se ver livre. Porém, sempre que pensava em Cristo, imaginava-se sendo o Seu carrasco, com todo prazer, e era isso que o motivava a devorar as Sagradas Escrituras...

Penso que a sensibilidade seja uma componente importante para a apreciação daquilo que se revela belo. Não depende, para qualquer cidadão, de seu nível de renda, de sua posição social ou até mesmo, em certo sentido, de sua aquisição intelectual (se por “aquisição intelectual” se entende a mera acumulação de dados e estimulação do raciocínio, sem guiamento moral e verdadeiro). Sim, todos esses fatores servem de auxílio, mas não são de forma alguma seus determinantes. Talvez seja uma disposição individual que vem desde o berço. Mas, com absoluta clareza, a cultivação da docilidade espiritual para com o belo se dá não só por meio do costume, mas também pela aquisição e interiorização daquilo que é mais essencial numa obra de arte – a sua forma, mas muito além disso, o seu fim, que está em nós, e não em si. Quando a ponte entre o indivíduo e a obra de arte é construída, guiada pelo bem, aí sim ela se torna de real valor. E de infinitamente superior valor é aquela obra de arte que se conecta com toda a humanidade, representando possibilidades divinas fornecidas pela própria natureza, engrandecendo o próprio homem.

Caso essa “conexão primordial” não aconteça, então a obra de arte não passará de um amontoado de fragmentos, sem o menor sentido ou finalidade, soltos ao acaso. Não possuindo uma unidade, não significam nada.

Não é de se espantar a total negligência e até o desprezo da população quando o assunto cai em música clássica. Foge-se disso como o diabo da cruz. Para piorar, existe ainda um verdadeiro muro de preconceitos criados pela própria elite. Isso é simplesmente motivado apenas para reafirmar uma aparente superioridade intelectual perante aos demais. Mas é uma superioridade oca. Essa elite cada vez se deteriora mais. Chega ao cúmulo de achar plenamente normal o fato de louvar um Schumann e noutra ocasião agir irresponsavelmente e de forma totalmente repreensível. É essa elite cultural que, ao afirmar a beleza de uma fuga de Bach, o mestre cujas obras possuem um caráter religioso, despreza totalmente qualquer religião, faz apologia ao consumo de determinadas drogas, põe-se debruçada a polêmicas mesquinhas (“direitos” aos gays, cotas raciais) etc.

Sendo assim, sinto-me muito mais angustiado sabendo que a dita elite brasileira perde cada vez mais suas referências no que tange aos valores morais e estéticos do que sabendo (o que sempre se soube) que a maior parte da população está se lixando para Mozart. Até mesmo o chorinho, tão aclamado como música popular de enorme qualidade, se faz desconhecido para o povo. Se essa elite perde a cada dia o solo onde antes confusamente caminhava, então amanhã tombará, e levará para o abismo o restante de seus compatriotas. Nesse transloucado fenômeno, pode vir a ser o contato entre povo e arte, essa menina tão judiada hoje em dia, uma experiência das mais nefastas.

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