Meus queridos e poucos leitores, já faz um tempinho que penso no seguinte: a vida intelectual é equivalente a ficar peladão numa avenida movimentada.
Ora, mais que o corpo, o nosso mais profundo retiro é nossa própria mente. Só Deus sabe o que cada um realmente pensa. Daí que revelar nossas idéias seja sempre um espetáculo um tanto quanto desconcertante, a menos, é claro, que estejamos bem desavergonhados ou nos comportemos como Adão e Eva, que viviam nus sem saber. Mas o desafio é, tendo comido a maçã da autoconsciência, permanecermos corajosamente nus.
Porém me permitam os quatro amigos leitores uma pequena digressão. Não que eu tenha um belo conhecimento do assunto, mas acho estranho imaginar que a mente e o corpo estejam radicalmente separados. Nesse sentido, apelo às sábias e filosóficas palavras de Drago no Rocky IV: "Se morrer, morreu". O sujeito só voltará no Dia do Juízo Final. Por acreditar nessa grande união, acho que a defesa da intimidade da alma está relacionada à defesa da intimidade do corpo. Isso porque não somos criaturas descarnadas: o que se passa na alma tem reflexos no corpo e vice-versa. Mas notem bem que não fundamento nada porque são apenas impressões minhas. Deixemos então para lá.
Quando o intelectual (seja lá de que ramo for: escritor, cientista, etc) se dá conta de que está, de certa maneira, dando a cara a tapa, surge logo um dilema: prosseguir até as últimas conseqüências ou nunca mais se distinguir de todos, tornando-se membro indiscernível d'"a massa", no máximo um bajulador do povo, um vendedor de feira? Percebam que me refiro ao próprio ofício do intelectual como algo totalmente diverso do comum das gentes, algo que o torna a um só tempo esquisito e transparente, vulnerável, uma criatura singular.
Darei um exemplo de cada atitude.
Pensem vocês nos grandes tempos da Grécia Clássica, onde todo intelectual é de alguma forma cidadão daquela pólis que se tornou eterna para nós. Naqueles idos surgiu uma raça nova de homens. De repente começaram a questionar tudo o que havia entre o céu e a terra, e mesmo o que havia no céu e debaixo da terra. Nada lhes escapava. Todavia, até porque se embriagaram um pouco com suas próprias e estupendas descobertas, entraram em choque com sua própria cultura, com seu próprio povo, sendo então vistos com desconfiança. O famoso Protágoras, no homônimo e maravilhoso diálogo de Platão, chegou a dizer que ele era o único que tinha coragem de se autoproclamar sofista. O termo grego que se ajusta bem a isso tudo é a palavra hybris, que quer dizer desmedida. Pois bem, toda aquela saga humana parecia descambar numa terrível hybris, uma desmedida ambição que parecia não só desconhecer os limites da humanidade como também a menosprezava. Isso era, do ponto de vista antigo, um crime de impiedade. Como se isso tudo já não bastasse, Sócrates teve a "audácia" de descobrir um novo mundo, o mundo interior, afirmando ao mesmo tempo que em nome de sua missão divina jamais cessaria de buscar a verdade, mesmo se terrivelmente ameaçado. Tudo culminou com a sua pena de morte. Ainda assim, aquelas conquistas foram passadas a seus sucessores imediatos, notadamente Platão e Aristóteles.
No extremo oposto temos uma época que morreu há pouco, o século XX. Longe de vermos em tão grande escala homens dispostos a enfrentar a fúria da multidão, armados contra os ataques do mundo, como diria Kleist, o que houve foi, pelo contrário, a revanche d' "a massa". De repente, os intelectuais sentiram não apenas vergonha, mas nojo de si mesmos. Todo seu afazer parecia estúpido e sem sentido. Necessitavam de justificativas segundo o que eles mesmos imaginavam ser o "espírito do povo" ou "a justiça dos oprimidos". Então, na mais perturbadora reviravolta de valores de todos os tempos (mas que teve ensaios sangrentos desde 1789), os intelectuais começaram a se suicidar, blasfemando contra si mesmos, em arroubos incríveis de paroxismo delirante. Esses senhores tomaram para si a estranha missão de defender a justiça, em nome do povo, contra qualquer um que ousasse se elevar dentre os demais. Em muitíssimos casos, como no comunismo e no nazismo, houve mesmo perseguições violentíssimas, prisões em massa, genocídios, etc. Aquela casta era vista como inimiga, podre e corrompida. Consta que o gordo Marechal-do-Reich Göring certa vez disse: "Cada vez que ouço falar em Bildung [formação, no mesmo sentido de paidéia] saco o meu revólver". Nunca foi tão difícil ser intelectual como no século passado (e, por que não?, também nesse começo de século).
Infelizmente a casta intelectual de nosso país constantemente dá uma série de pavorosas demonstrações de temor e tremor ante o seu próprio ofício, preferindo bajular (numa estranha inversão da hybris) "a massa" enquanto envenena seu afazer próprio. Não foi à toa que chegamos a ter o presidente mais tolo de nossa história, amplamente escorado pela nossa fina flor cultural.
Contudo, é preciso explicar um pouco melhor esse problema na vida intelectual que é "a massa", e por que pus esse termo entre aspas. Mas pertenço ao gênero humano, tendo de prestar contas ao animal faminto que compartilha minha natureza. Ai, a fome. E sem contar o cansaço: ser espírito de luz talvez tivesse suas vantagens, embora parece um tanto aboiolado... Aliás, a julgar o céu, parece que hoje será um dia esplêndido. Tenham um bom dia.
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