Sunday, October 31, 2004

Mudanças no sistema de comentários e indicações de réquiens

Para oferecer mais comodidade ao leitor, o sistema de comentários deste pobre blog será alterado. Mas como tudo neste mundo de ordem imperfeita exige uma reparação, ei-la, pois: teus singelos comentários serão deletados. Não é culpa minha, mas da tal da desordem imperante neste mundo. Sendo assim, mais uma vez sou obrigado a pedir mil perdões ao tão maltratado leitor.

Deixarei tal mudança para dia propício: Finados. In memoriam, sepultarei tuas pequenas idéias, leitor, mas que elas sirvam como adubo ao que – conto convosco – virá.

***

Finados é propício para ouvir o Réquiem de Mozart. É uma de suas mais belas obras, embora póstuma (seu discípulo, Süssmeyer, finalizou-a). Embora seja evidentemente uma música para o descanso da alma do finado, ela está imersa numa força que a torna grandiosa. Que o leitor não imagine que essa força equivale a um ritmo impetuoso ou estridente: é uma força bem serena, que só revela um vigor quase agressivo no Dies Irae, cantado por todo o coro. Seu contraponto é a Lacrimosa, também cantada por todo o coro, que é lindíssima e serena. Se lembrarmos que a Sequentia começa com a Ira de Deus e termina com as Lágrimas, talvez se torne mais compreensível o porquê disto. Pois a Lacrimosa é uma súplica para acalmar a temível Ira Divina, um pedido de perdão, uma prece pelo descanso eterno.

No entanto, a parte mais grandiosa é a Communio. Abre com o soprano pedindo ao Senhor que a luz eterna os ilumine em companhia dos santos, para sempre, apelando à Misericórdia divina. É cantada de forma doce, que chega a nos emocionar pelo sentimento de sua prece. Logo em seguida o coro, dividido em dois, após uma breve repetição da prece cantada pelo soprano e de parte da prece da Introdução, entoa uma poderosa fuga final quase obsessiva. Este ponto da obra é quase o mesmo do Kyrie, com a diferença da prece: nele o fiel somente pede piedade de Deus, enquanto no trecho final ele pede a companhia piedosa de todos os santos no descanso eterno. Tanto um trecho quanto o outro, pelo caráter obsessivo, lembram bastante a oração ininterrupta praticada por alguns ascetas, onde invocam incessantemente a piedade de Deus (Kyrie Eleison). E seria um pecado não citar neste parágrafo a fuga do último verso do Domine Jesu Christe (embora não tão poderosa quanto às outras duas citadas – porque o Kyrie também é construído como fuga.), onde é lembrada a promessa a Abraão e a toda sua posteridade.

Se eu fosse escrever aqui tudo aquilo que merece este réquiem, mais fácil seria escrever um livro. Pois deixemos este; há outros que também valem a pena ouvir. Apenas a título de citação eu recomendaria o do Verdi e o de Brahms. Mas algumas palavras indispensáveis faço questão de dizer ao leitor sobre essas obras.

O Réquiem de Verdi não é de modo algum parecido com o de Mozart, muito menos com o de Brahms. Se o leitor me permitisse usar um termo muito impróprio, eu diria que é bem “carnavalesco”. Aqui não resulta, de minha parte, nenhuma afronta à obra do grande Verdi. O seu Dies Irae, por exemplo, é muito mais potente que o de Mozart. Também aqui não faço juízo de valor. É de uma potência realmente avassaladora, embora serene aos poucos conforme se aproxime do fim. A obra toda, aliás, tem um ímpeto dramático enorme, e o coral está maravilhosamente bem entrosado com a orquestra. Este réquiem é, à primeira vista, muito impressionável, ainda mais se não conhecermos o de Mozart ou de Brahms. Porém a impressão que passa, e nisso talvez algum leitor que o ouviu concorde, é que ele é mais uma obra de impacto “cênico” que propriamente religiosa. Quero dizer com isso que dá para pedir no funeral Mozart, mas não Verdi; no teatro Verdi imediatamente causa grande impacto.

Já Brahms é diferente. Para começar, não é um réquiem no sentido tradicional: a letra é completamente distinta. Ele selecionou trechos da Bíblia e a partir daí montou o texto. Até mesmo batizou de maneira peculiar sua obra: Ein Deutsches Requiem (Um Réquiem Alemão). Ele é o oposto de Verdi: talvez alguém que simpatize demais com o primeiro não goste do segundo, e vice-versa. Ele é muito introspectivo; tanto o texto quanto a música e as vozes criam uma atmosfera de profundidade, comunicando-nos a miséria deste mundo e de nossas vidas e a glória do Senhor. Não sei dizer se aqui está, de certa forma, o espírito protestante alemão traduzido em música pelo não tão religioso Brahms. Mas – fato curioso – nada disso impede que essa música tenha seus momentos grandiloqüentes. Por sua dura visão do mundo, e pela atmosfera de introspecção que sua música e as vozes criam, talvez o ouvinte comum não se sinta bem ao escutá-la e, conseqüentemente, não a aprecie. Realmente em termos mais formais outros réquiens são melhores, mas apenas ele comunica diretamente e de forma tão patética o sentimento de miséria do mundo.

Bom, eis aqui uma pequena indicação comentada. Se não ouviu pelo menos alguma dessas músicas, que o leitor aproveite os Defuntos e faça-lhes uma pequena homenagem.

Friday, October 29, 2004

Macaquinho no bar

-- Garçom, pode me dar duas caipirinhas pra viagem?

Começou assim o macaquinho no bar ali na esquina da Presidente Vargas com a Santana. Todos riram e alguém disse, sem evitar a bebida saindo pelo nariz:

-- Que chique, o Seu Tadeu virou garçom!

O macaquinho novamente pediu duas caipirinhas. Seu Tadeu, sério, perguntou:

-- Qual tua idade?

-- Três.

-- Comé que vô vender caipirinha prum macaquinho de três anos?

-- Não é pra mim, é pro meu pai e pra minha mãe.

-- Por causa de quê eles num vêm comprá ?

-- Mamãe tá ocupada e papai também.

-- Tão fazendo o quê?

Nesse momento mais um pessoal começou a rir. Dona Maria, a velha que sempre compra cigarro, resolveu se intrometer:

-- Dá logo a caipirinha pro macaquinho, ô Seu Tadeu! Qual é teu nome?

-- Joãozinho Dengoso.

-- Dá logo pro Joãozinho Dengoso o diacho das caipirinhas, ô Seu Tadeu. Tadinho do rapaz.

O bar entrou em confusão. Todo mundo falava e ria ao mesmo tempo. A gritaria era tão grande que uma patrulinha que passava na rua Santana parou ali em frente ao boteco. Saíram duas escopetas... Não, dois policiais armados com escopetas. Um deles perguntou:

-- Que que tá havendo?

-- O macaquinho quer comprar duas caipirinhas, seu guarda, mas ele tem só três anos. – resmungou Seu Tadeu.

-- Ô macaquinho, tu num pode tá bebendo não. Hoje é dia de eleição.

-- Acabou esse negócio, cara... Geral tá podendo beber. – disse seu colega.

-- Ah é, eu tinha esquecido. Libera aê a bebida pro companheiro aê que tá tudo certo.

Meio contrariado, Seu Tadeu acabou por atender o macaquinho. Deu as duas caipirinhas para ele em copo de plástico e tampou. O macaquinho voltou pra casa todo alegre.

Os dois policiais já estavam entrando na patrulinha quando um deles parou e começou a refletir algo. De qualquer modo, entrou. Já com a patrulinha em movimento, o colega perguntou:

-- Aê, que que foi que tu ficou pensando antes de entrar no carro?

-- Fiquei bolado com um negócio. É que nunca vi neguinho vender caipirinha pra viagem. Aquele cara lá teve uma idéia manera.

-- A gente é que demo mole. Dava pra arrumar bebida pra gente na moral e tá aqui bebendo, tá entendendo?

-- Amanhã a gente passa lá de novo.

-- Falou.

Saturday, October 23, 2004

Ditadura e divórcio

Admiro-me que não tenham feito ainda, que eu saiba, a aproximação entre dois fenômenos evidentemente semelhantes: a ditadura e o divórcio. Em ambos existe o mesmo oportunismo que pretende dar golpes na vida, e a mesma recusa de pacto ou juramento. Em ambos, a mesma miopia de memória; a mesma miragem do sucesso imediato.

O divórcio é o maquiavelismo a domicílio. A ditadura é o divórcio em política. Corre nos dois fenômenos, como idêntica seiva, a coleante traição diante dos obstáculos, isto é, a esperteza. Em política, está maduro (ou podre) para a ditadura o povo convencido de que um tratado ou uma constituição são meros farrapos de papel, sendo admissível somente a conveniência ou a etapa. Na vida familiar, a esperteza, que pretende se ajustar aos minutos que passam, conduz à falência do matrimônio. É dura a vida civil, com suas leis, seus úteis embaraços, e seus inevitáveis sacrifícios; mas muito mais dura é a vida conjugal. O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os vermes da astúcia que pedem alimento de meia em meia hora. É uma vida de longo alcance, de incalculável alcance. Uma artilharia pesada que precisa da instalação muito firme para atirar obuzes por cima dos séculos.


Admiro-me pois que essa aproximação, tão clara a meu ver, não tenha sido tentada. Mas, como já tenho visto muita contradição neste vale de lágrimas, não me espanta em demasia que muitos ardorosos democratas, que fulminam o maquiavismo político em alto jornalismo, defendam ao mesmo tempo o maquiavelismo caseiro. Não me espanto porque, antes disso, eu vi os ardorosos defensores do casamento sacramental e dos costumes, os pilares da Igreja, defenderem a ditadura, e respirarem, como um ar de delícias, a atmosfera dos decretos-leis.

(Trecho de Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção, de 1946, ed. Agir, p.173-4. Este livro é uma espécie de introdução ao G.K. Chesterton. Foi através dele que tomei conhecimento de um livro muito interessante de Chesterton, Barbarism of Berlin. Basicamente, ele diz o que eu escrevi em parte no texto anterior: que a palavra é o fundamento da civilização. O livro foi publicado, se não me engano, em 1915, durante a Grande Guerra. Ora, Berlim era composta por barbáros justamente pelo fato de quebrar juramentos solenes. Eles eram o que Chesterton chamava de "barbarismo negativo", que era o impulso de destruição dos pilares da civilização por bárbaros. Era o Huno, que se comprazia em devastar Roma. Este era o Alemão, e não sei se fará sentido a comparação, mas o próprio Nietszche, muitos anos antes, já dizia que a Alemanha era composta por bárbaros, mas no sentido de gente inculta. O "barbarismo positivo", pelo contrário, procura evoluir com a civilização. É como um godo que pretende trabalhar junto a Roma em prol de ambos. O Russo entraria neste caso, pois procuraria se integrar à Europa.)

Thursday, October 21, 2004

Divórcio e barbárie

Provavelmente o leitor acharia muito estranho se um filho fosse ao cartório para anular sua união com os pais ou vice-versa. Isso não seria menos esquisito se ocorresse com nossos irmãos, tios, primos, avós, etc. Mas é bem possível que o leitor não estranhe tanto se um marido insatisfeito fosse ao mesmo cartório para anular suas ligações com a esposa. Estamos tão habituados com a idéia de divórcio que ela se tornou algo tão natural quanto o Corcovado.

O que é o casamento? É a união indissolúvel entre marido e mulher, visando constituição de família. Atentemos para a palavra “indissolúvel”: se é assim, então onde fica o divórcio? Não fica; aliás pode até ficar no caso do casamento civil. Pois o Estado até matrimônios gere, como se não bastasse sugar nossos míseros centavos a cada mês com dezenas de impostos, obrigatoriedade do voto, do serviço militar... Até violar seus cidadãos quando mortos, sob o pomposo nome de “autopsia”, ele quer. Só que, em se tratando de casamento, o Estado não supre uma peculiaridade desta união. É que a Igreja une sob os auspícios de um dom sobrenatural, criando no instante dos votos um parentesco que não foi o de nascimento. Assim, por causa desse dom, os nubentes vêem suas famílias crescer: surge uma segunda mãe, um segundo pai, um segundo primo, um segundo avô etc. etc. Quando um casal se une desse modo, pode-se dizer que cada um se casa com a família do outro. E o resultado dessa união, realmente espantosa, é a junção de várias pessoas em uma só: de um pouco de sangue de cada família surge uma nova criaturazinha, que é conclusão concreta (melhor: carnal) dessa união. Eis que a ligação de sangue sobrenatural se desdobrou e criou uma ligação carnal em forma de pessoa. A palavra empenhada ao pé do altar se fez carne: é o nascimento da criança.

Se pai e mãe são tão parentes quanto primo e tia, como é possível haver o divórcio? Só pode ficar no casamento civil, que une sem unir. Não quero dizer com isso que os anjos não desceram dos céus e transformaram a união de duas pessoas no cartório no principal acontecimento do universo naquele exato instante. E se várias pessoas se casam ao mesmo tempo, então por um mistério também cada uma será o centro do universo. Porém o que eu quero dizer é que o Estado não tem o poder sobrenatural para sacralizar esta união. Tenho um certo receio de usar a palavra “conveniência” para explicar isso, pois dá margem a equívocos. Se o leitor tiver boa vontade, entenderá que com isso digo que o casamento em cartório acaba se baseando em formalidade jurídica, um assinar de papéis, embora um assinar de papéis todo especial. Mas é apenas ali no papel que está a salvaguarda do casamento. E sabemos como papéis são frágeis.

Há um agravante nesta já insólita situação, que não sei dizer se filosoficamente é causa do movimento ou final disso tudo. É o problema da palavra empenhada. Antigamente, quando quase ninguém sabia escrever, só alguém muito original consideraria indispensável um contrato por escrito e assinado para empenhar um juramento. Em épocas muito remotas, as pessoas juravam nas e pelas coisas mais insólitas: água, vinho, fogo... Até os coitados dos santos eram empenhados, ou as mães. Coitados de ambos! Esses hábitos até hoje podem ser vistos na nossa própria sociedade, ainda que tenham perdido a freqüência e importância original. Em pleno século XX, meu avô, segundo lendas, quando empenhava a palavra, dizia também que jurava pelo seu bigode, pois aquilo era a prova de ele ser um homem, e homens não quebram a palavra. Bigode! Não sei dizer se ele se viu muitas vezes com o bigode aparado; em todo caso, é um exemplo engraçado de como essas coisas permaneceram até os dias de hoje.

Devemos acrescentar na nossa breve história dos juramentos que eles sempre tinham um caráter sagrado. Ninguém escolhia a água por ela ser uma substância intrigante ou o vinho porque o juramento era coisa de gente bêbada. Jurava-se sob a água porque muitos acreditavam que no princípio tudo era água, sendo as coisas agora compostas substancialmente por ela – era a substância mais importante que existia. Ou o fogo, segundo outros. Quanto ao vinho, não sei dizer o motivo, mas imagino que tenha alguma relação com Baco ou outro deus. Além disso, não podemos esquecer que a palavra, por si só, é um atributo que os deuses gentilmente nos emprestaram. Se atentássemos para a sua importância, pensaríamos cinco, dez vezes antes de usá-la. Então o juramento é (ou era, se formos muito pessimistas) algo muito especial e até misterioso, sagrado quanto à sua natureza. Quebrar uma promessa, um pacto, só gente impiedosa, só gente completamente afastada da civilização, só teria coragem um bárbaro.

E o que seria o divórcio senão uma quebra de um juramento? Para piorar a situação, um dos mais importantes juramentos que duas pessoas podem fazer? Não é verdade que apenas os bárbaros não empenham seriamente a palavra? Pois aí está, leitor: nós somos incivilizados, impiedosos, pois em uma quantidade absurda de casos, além de não pensarmos no absurdo que é o desligamento de um laço de parentesco, não levamos a sério nossos próprios votos. Não medimos as conseqüências da nossa própria palavra empenhada e não hesitamos em quebrá-la quando melhor nos convém. Elegemos a eficiência como o mais soberbo princípio e, a partir daí, vivemos na mais medíocre prática de conveniências, de egoísmos e do amor-próprio. Esse problema é tão grave que chega a ameaçar uma sociedade. Se do ponto de vista individual cria inimizades, de um ponto de vista mais geral o juramento se torna uma prática vazia. A sociedade acaba aceitando o império universal da desconfiança. Por que não poderia alguém se “divorciar” da sociedade e, por razões de conveniência, realizar um golpe de Estado e rasgar a Constituição? E o que impediria, em um mundo assim, de um país quebrar tratados cuja tinta que serviu para sua assinatura mal secara? É o mundo das traições, das apunhaladas, dos advogados e promotores em número absurdo, do medo, da desconfiança e do descrédito. É a volta a quatro patas a um estado primitivo, onde tudo parece conspirar contra nós.

Wednesday, October 20, 2004

Pátria Perdida

Que estranha simpatia repentina
Destino à minha pátria ferida!
Nenhum momento de minha vida
Julguei que meu peito lhe arderia
Por afronta ao grande pavilhão,
Muitas vezes por mim mal julgado.

Como violasse belo quinhão,
Injúria tão grave não deverá
Ter clemências para vil culpado:
Maldito traidor, que sangra a pátria
Covardemente; de si brotará
Peste, que com fogo só se cura.

Mas nesta terra secou a Razão
Bela, há apenas mui torpeza pura.
E choro com o céu estrelado
Por tão-somente ser triste pária
D’ Eniálio, sem matar o Dragão,
Só me calando, amargurado.

Saturday, October 16, 2004

O Mistério do gatinho e do velho do espeto de pau

O gatinho perambulava como sempre pelas ruas. Achava muito chato andar um pouco para encontrar terra e por lá depositar seu cocozinho, mas era uma questão de etiqueta. O xixi, bem, o xixi ele fazia em qualquer cantinho. Quer dizer, não em qualquer lugar, só em certos cantinhos, de preferência desertos, pois se alguém chegasse perto ele travava. Se bem que uma única vez, ali na Rua Riachuelo, bem de noitinha, recebendo afagos de rapaz carinhoso, ali mesmo ele não resistiu e fez xixi, para comoção do rapaz carinhoso. Se pudesse, o gatinho riria, mas apenas soltou um miau.

Era bonzinho. Todos simpatizavam com ele. Menos o velho sujo do espeto de pau. Este cidadão, se é que poderíamos chamar assim um sujeito de tão má catadura e de hábitos tão peçonhentos, era um flagelo. Não apenas para o gatinho, é importante dizer. Qualquer criatura viva que cruzasse seu caminho teria sérias chances de virar um cozido, exceto os homens, menos por pudores morais que pela dificuldade de prender alguém para comê-lo. Mas nosso bichano era experto, malgrado sua pequena idade e aparência frágil, nas artes da sobrevivência das ruas. Pois, e aqui cabe uma digressão, homens e bichos já nascem sabendo o mínimo para sobreviver, sendo esta sabedoria apenas aprimorada com a prática ou soterrada pelo descaso.

O homem terrível do espeto de pau procurava de todas as maneiras alcançar seu objetivo, que nada mais era que absorver a vida. E caçava, caçava com prazer. Só nosso bichano escapava de seu ódio.

Este estranho espetáculo se repetia como um rondó. Um obsevador atento, entretanto, perceberia que, de um modo um tanto imperceptível, o gatinho mais e mais se aprimorava em sua elegância, maior valor dava em fazer seu cocozinho na terra e seu xixi no cantinho deserto, enquanto o homem do espeto de pau mais obcecado ficava com a idéia de sugar a vida de todas as criaturas que cruzassem seu caminho.

E então, num acontecimento testemunhado por aquele moço carinhoso que provocou o xixi involuntário do gatinho, chegou-se ao clímax daquela tendência que apenas um observador atento saberia explicar. Foi numa noite de domingo, muito parecida com aquela outra de tempos passados, e também na Riachuelo. O moço carinhoso reconhecera o gatinho, já mais crescidinho, deitado, observando os carros. E já se aproximava dele quando apareceu, do nada, aquele homem malvado com seu espeto de pau. Este sujeito vinha literalmente rosnando e babando, de olhos arregalados, como um louco furioso. O moço se assustou – a rua estava deserta, não havia ninguém que pudesse lhe socorrer. E já se preparava para correr quando o gatinho se ergueu e, fitando aquele maldito ser, surpreendentemente exclamou:

– Claudite jam rivos, pueri; sat prata biberunt; corruptio optima pessima – disse, com voz de barítono.

E ribombou um trovão, sendo que o céu não parecia mal-humorado. O moço ficou petrificado. A criatura vil começou a tremer, literalmente soltou um uivo, babou mais um pouco e desatou a fugir, desesperado, para nunca mais voltar.

Nosso amigo carinhoso não compreendia nada daquilo. Não sabia se era mais difícil aceitar um gato falando latim com voz de barítono ou uma pessoa de tão maligno feitio ser tão fragorosamente derrotada. Aquilo era demais para ele. Foi aí que o gato novamente falou, e de novo com voz de barítono:

-- A vaincre sans péril, on triomphe sans glorie.

Tal coisa não era possível. O moço não aguentou e desmaiou, não sem antes ver o gatinho fazendo algum tipo de saudação com a patinha e indo embora. Só acordou quando sentiu as singelas gotículas de chuva que lavavam seu corpo e a Rua Riachuelo naquele instante. Foi para casa meditar sobre o assunto, porém não encontrou resposta alguma. Passou o resto de sua caridosa existência a procurar o gatinho ou o homem do espeto de pau, mas jamais os encontrou. Só quando mais velho, bem mais velho, suspeitou encontrar a chave para tão estranho enigma. Mas nunca teve certeza da resposta. Teve o pejo de manter a história apenas para seus botões.

Tuesday, October 12, 2004

Uma rápida formalidade e a revalorização da barriga

Peço humildemente perdão ao leitor. Minhas sucessivas trocas de casa são uma questão de necessidade. Isto que dá quando um homem não é senhor de si mesmo. Conto com a sua boa vontade. Oh sim, espero que dessa vez o dia do meu Juízo demore um pouco mais para acontecer. E se você vier a gentilmente postar um comentário, que entre como "anônimo" mas no fim escreva seu nome. É mais fácil e mais educado. Agora vejamos um outro assunto.

***

Um problema que ocupou minha querida cachola foi a relação entre o sentimento e o coração. Não sei quanto ao leitor, mas para mim este é um casal que não combina muito bem. Pois o que possui o coração para ser uma imagem dos nossos amores?

É um problema de simbologia. Ele, eu sei, é uma espécie de receptáculo. Através dele o sangue vai e volta enquanto nossas vidas curtas assim o permitirem. Daí que o coração pode ser visto como uma figura que representa a força da renovação ou revitalização necessárias para manter algo existindo, até porque ele é um órgão vital, até mais que o cérebro, num certo ponto de vista. Sem uma boa parte desse vigoroso trabalhador que jamais pensa, para alegria de todos nós, em fazer greve, simplesmente morreríamos. Por outro lado, conseguiríamos viver sem uma boa parte do cérebro.

Será neste sentido que o coração é enxergado como símbolo do amor? Será que este sentimento seria uma espécie de renovação nas nossas vidas? O amado que se distancia de nós, ainda que por brevíssimo tempo, seria tão terrível quanto o nosso coração desprovido de uma de suas partes? Não sei, leitor, mas se você souber, gostaria que me informasse.

Agora lembrei de duas coisas cuja junção e explicação são de responsabilidade inteiramente minha, seja que conseqüências tiverem. Em primeiro lugar, a figura, totalmente familiar ao leitor, do cupido. Não dizem que ele atira suas flechas em nossos corações? Não sei se desde os tempos que homens e mulheres pisaram pela primeira vez no mundo eles miravam o coração ou se isso é uma explicação moderna. Deixemos de lado esse problema e vejamos minha outra lembrança: num programa de tevê, disseram que, segundo Aristóteles, o órgão responsável pelos nossos pensamentos era... o coração! Vejam que idéia, aos nossos olhos, paradoxal: segundo nós, berço apenas das paixões; para Aristóteles, do pensamento. Admito que fiquei curioso em buscar algum livro que me esclarecesse se o Filósofo pensava assim mesmo (a imagem dele pensando com o coração é bela, se o leitor entender bem o que quero dizer com isso). O fato é que, juntando a imagem do cupido e da suposta hipótese aristotélica, imagino que a flecha acertando o coração seja a imagem de uma ação que "atrapalharia" o seu funcionamento natural. Em outras palavras, agiríamos não mais racionalmente, porém apaixonademente por quem nos tocou em nosso ponto mais sensível.

Esta minha hipótese, que assumo sua paternidade com todos os riscos, não é necessariamente oposta a da revitalização/renovação em todos os seus aspectos, mas é bastante diferente. Mas se uma e outra tentam buscar minhas graças e simpatias, digo o seguinte: não fico com nenhuma. Pois para mim, o lugar que mais fielmente representa a sensação da fuga do chão sob nossos pés (isto nada mais é que amor) se chama "barriga". Isto mesmo: barriga, para onde a comida vai e fica (aliás, vai, fica e vai de novo) por curta estadia. E por que justamente naquele lugar, que para muitos é motivo mais de vergonha que de qualquer coisa? Ora, porque sempre que temos uma sensação de surpresa, estranhamento, pavor, etc, etc, é lá que a coisa se manifesta. Daí a expressão "frio na barriga". O leitor tem que concordar que já sentiu literalmente isso, como eu também, se quisermos permanecer na raça dos homens. Existem também outras expressões que fazem alusões a certas partes do corpo e a sentimentos como "dor de cabeça", "dor no peito", "dor de cotovelo", além de outras sinônimas. Mas na minha opinião, nenhuma resume a essência de todas essas e outras como tudo que ocorre da barriga. E até lá sentimos dores, não nos esqueçamos.

Portanto, aqui estou elegendo nossa barriga como "rainha das emoções". E nisso, naturalmente, entrando o sentimento que abordei, que é o amor. E tal qual comida estragada, sabemos que fim lamentável um amor ruim tem. Ou como a fome que definha o corpo, que conseqüências funestas a não-presença de nossa amada (ou de seu amado, caso for leitora) nos traz. Deixemos o coração como símbolo apenas da revitalização, o que não é glória menor, ou dos trabalhos físicos pesados, que também têm sua participação na glória. Olhemos de um outro jeito para nosso próprio feliz umbigo.