Saturday, December 24, 2005

A singular história do dr. Onofre e de sua esposa Wilhelmina

Após dois anos separado de sua mulher por motivos de viagem tão chatinhos que chateariam o mais chato leitor, dr. Onofre, que era conhecido pelo seu extremíssimo fanatismo por música erudita -- em certo dia chuvoso ousou arrancar com uma moeda o olho de uma velhinha que disse que chorava copiosamente quando ouvia "O lago dos cines" --, dr. Onofre resolveu enviar de presente à sua mulher um cd contendo a Partitia no.2 de Bach tocada pelo virtuose Yehudi Menuhin, com uma dedicatória mais ou menos assim: "À minha Peruquinha; Do seu amado Frô-frô.", gênero de apelidos ridículos que geralmente os casais soem dar-se mutuamente.

Nem bem passados quatro meses após o envio do presente, eis que dr. Onofre volta finalmente para seu lar. Todavia, qual não foi sua surpresa ao encontrar a belíssima Wilhelmina embarrigada, embuchada, em estado interessante, e todos os demais sinônimos que pela enorme feiúra e expressão bizarra talvez indiquem o quão esquisito é o feio milagre do nascimento. Dr. Onofre, homem que às vezes parecia saído do Antigo Testamento, desesperado, rasgou sua própria camisa e, não encontrando cinza no chão, atirou em sua própria cabeça o pudim que carregava para dar à sua virtuosa mulher. E com o pudim escorrendo pela sua cabeça um tanto trapezoidal, concertou os seguintes dizeres:

- Agonia e traição! Agonia e traição! Que se passou neste lugar enquanto eu estava em uma viagem que por motivos tão chatinhos chateariam o mais chato leitor?

- Ó celerado, homem de pouca fé! - disse a bela e boa esposa. Como duvidas de minha honestidade? Assim fiquei semanas depois de ouvir o esplêndido cd que me enviaste. Tanta beleza naquela música, tocada por tão excelso virtuose, me deixou em estado interessante.

Ao ouvir aquilo, o dr. Onofre, emocionado até não poder mais, ajoelhou-se perante a sua amada, pegou sua mão e começou a declamar alguma coisa ininteligível e com voz embargada. Mas eu farei a gentileza de traduzir a ti, leitor, o que ele quis dizer:

- Que belo dia, que céu adorável, que memorável momento! Em minha perfídia maculei a honra desta santa mulher! Perdoe-me, augusta mulher... Fui tão tolo que nem cogitei que gênero de milagres pode esta partita provocar. Eu mesmo, tendo ouvido pela primeira vez aquela obra de arte, senti que era gerado em minhas entranhas um novo ser, embora não houvesse continuidade de tão portentosa dádiva por causa deste mundo de justiça imperfeita. Ó cegueira terrível! Perdoe-me, santa mulher, perdoe-me!

Wilhelmina, visivelmente sentida ante tal espetáculo, perdoou a perfídia do marido, que acabara de babar em sua delicada mãozinha, e limpou graciosamente o cocoruco do esposo cheio de pudim.

Os meses se atropelavam e a criaturazinha se desenvolvia no ventre, no bucho, na barriga, na pança de Wilhelmina. Dr. Onofre amava a esposa como se ela fosse a primeira e última mulher da face da Terra, a despeito do despeito da chusma inominável, turba ignara e hostil a tudo que foi criado belo e maravilhoso no jogo do mundo. Assim, tiveram uma lindinha criança, batizada de Tareja Yehudi Bezerra Bach Partita de Carvalho (os íntimos a chamavam apenas pelos dois últimos nomes), no mesmo dia em que sincronicamente um coral ajudado pelos anjos entoava em alguma praça pública do mundo "Jesus alegria dos homens".

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