Aproveitando o gancho do outro post, aproveito para dizer que há uma classe de autores aqui do Brasil cujas obras simplesmente estão no limbo, ainda que sejam importantes e provoquem alvoroço só de serem mencionados.
Façamos eu e você, bondoso leitor, uma pequena digressão. A Idade Média: não é segredo para ninguém a dificuldade que havia para se conseguir algum livro naquela época. Seja São Francisco de Assis, por exemplo. Aquele santo homem não tinha acesso a toda a Bíblia. Ele a tinha em fragamentos e os compartilhava com seus companheiros, de modo que todos pudessem realizar a piedosa leitura do Novo Testamento em pedaços, mais ou menos como fez há muitos séculos atrás aquele outrora legionário e posteriormente santo, São Martinho de Tours, ao rasgar seu manto para dar a metade ao pobre. Pelo contrário, hoje não precisamos em geral passar por tais dificuldades. Aliás, eu mesmo, enquanto escrevo essas linhas tortas, tenho uma bíblia enorme numa prateleira atrás de mim, e me dou ao luxo de ter uma outra, protestante, ali ao lado, e sem contar a Vulgata e a Bíblia de Jerusalém que estão aqui no meu HD. Não faltam os meios para milhares de publicações, mas disso decorre a superabundância de porcarias. Chega a ser incrivelmente pecaminosa e despudorada quantidade de publicações que hoje há, uma espécie de hybris literária! Mortimer Adler dizia que dos milhares de livros que são atualmente publicados, pouca coisa prestava mesmo para uma simples leitura, e menos ainda para outras subseqüentes. Gustavo Corção dizia com outras palavras a mesma idéia: há livros demais no mundo.
Porém há poucos, inacreditavelmente poucos, do próprio Gustavo Corção. Quem quer que goste daquele autor e resolva caçar suas obras terá a sensação de estar subitamente de volta à Idade Média. Por que eu digo isso? Será que eu fiz uma alusão sutil ao seu livro "O Século do Nada", onde em certa altura ele nos diz que o século XIII foi o mais glorioso da história? Pior: será que eu estou na verdade sutilmente dizendo que ele é um retrógrado, um reacionário? Nem tanto nem tão pouco. O problema é justamente o mais básico, é encontrar seus livros.
Alguns deles podemos encontrar sem problemas, como "Lições do Abismo" e "A Descoberta do Outro". Outros são mais complicados, como mulheres que fazem questão de preservar sabe-se lá que mistério, como "As Fronteiras da Técnica" e "Conversa em Sol Maior". Mas há aqueles que são uma espécie de Graal. Me refiro especialmente a três: "As Descontinuidades da Criação", "Dois Amores, Duas Cidades" e o já citado "O Século do Nada". Deus do céu, onde eles estão?
Os dois primeiros são, se não me falha a memória, da década de sessenta; o último é dos idos de setenta. Suspeito que há apenas uma miserável edição de cada. E o pior de tudo é que naqueles três há uma espécie de compêndio da mais vigorosa crítica filosófica (e da civilização moderna) feitas pelo Gustavo Corção, de maneira que não lê-los equivale a conhecer suas mais vigorosas idéias um tanto indiretamente, apenas por deduções. É uma lacuna terrível. Daí que a pergunta que naturalmente brota desse fato seja a seguinte: se são livros tão importantes, e mesmo de alto nível, por que raios não são reeditados? Minha resposta: não sei. Ou melhor, desconfio, mas é um assunto para outra ocasião.
Não menos bizarra é a situação do Olavo de Carvalho. Para alguém que é tão conhecido nos meios intelectuais tupiniquins, é no mínimo bizarro o fato de praticamente todos os seus livros estarem esgotados há tempos. Sobre isso me vem à cabeça um bordão: "quem comprou comprou, quem não comprou não compra mais". Talvez com a ilustre exceção de "O Jardim das Aflições", o leitor que quiser buscar pelos livros do filósofo acabará infelizmente chupando o dedo. Ora, isso acaba criando uma situação paradoxal: até que ponto ele é conhecido, se todos os seus livros são tão difíceis de se achar? Logicamente a pergunta vale também para Gustavo Corção.
Tanto Gustavo Corção quanto Olavo de Carvalho acabam se tornando, dadas as circunstâncias "medievais" de suas publicações, escritores de "dupla face": há aquele que o público em geral conhece pelos artigos de jornal ou pelo ouvir dizer - que é o escritor "exotérico" - e há aquele conhecido por um reduzido grupo de estudantes e estudiosos que tem acesso a todas as suas obras (ou pelo menos às principais) - que é o escritor "esotérico". Levando-se em consideração que tanto um quanto outro não possuem nenhum tipo de ensinamento secreto, então é claro que ambos viraram uma espécie de escritor de "dupla face" não porque quiseram, mas por causa da reação hostil que de uma maneira ou de outra provocaram e ainda provocam em nosso país. Sim, hostis, porque não é segredo para ninguém o tipo de hostilidade que ambos receberam, o que torna mais absurda a questão, pois se quase ninguém conhece de fato suas principais idéias, por que tanta reação animalesca e desproporcional? Por que tanto azedume, a ponto de por exemplo no Orkut criarem várias comunidades insultando o filósofo? Por que várias pessoas, quando se referem ao Corção, fazem caretas? Sendo pessoas tão díspares e de tão variadas influências intelectuais, o que ambos têm que desagrada a tanta gente?
Sim, meus amigos, há um motivo em especial, o qual engloba ainda muitos outros autores - e não necessariamente nacionais. Dei apenas como exemplo aqueles dois. Tal motivo está além do já notório problema do volume incomensurável de lixo que sai do prelo, inunda as livrarias e deságua na mente do infeliz leitor, devastando sua inteligência e finalmente criando uma barreira de entulho entre ele e as obras de real valor. É verdade que isso faz parte do problema. Mas não será agora que tratarei de buscar uma explicação para esse desconcertante fato. Que você guarde apenas o seguinte: o que era uma deficiência (em certo sentido uma feliz deficiência!) da Idade Média, hoje é praticado de forma metódica aqui no Brasil, de maneira que uma série de valiosíssimos autores são arremessados no limbo, enquanto superabundam outros de duvidosa procedência e de má catadura. E me calarei sobre o tipo de formação que conseqüentemente recebemos.
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