Saturday, December 04, 2004

A comovovente história do gordo que queria ser ator mas que não passava de uma máquina de lavar

O gordo se olhou no espelho e, com as mãos no rosto, exclamou:

-- Pelos deuses, pelos deuses... Por que não consigo ser ator de verdade? -- e logo em seguida passou o dedo indicador no umbigo só para sentir cosquinha e rir de si mesmo.

Para o (seu) cúmulo, o máximo que conseguira até então foi atuar em comerciais, porém sempre como um objeto inanimado. Aquilo o frustrava demais. Sua maior "fala" foi quando interpretou uma máquina de lavar, produzindo, por uns dez minutos (quatro segundos na edição) um barulho parecido com vvvvvvrrrrruuummmmm, chop, chop, chop, sendo inclusive aplaudido pela crítica. Continuava figura anônima, todavia, mas seus amigos sempre pediam para que interpretasse novamente a máquina de lavar, proposta que muito gentilmente declinava.

O gordo já estava cansado daquilo tudo. "Posso ser mais", pensava ele com inacreditável confiança em si mesmo, "bem mais que uma maldita máquina de lavar". Por um lado, isso até era verdade: já interpretara uma mesa. Mas ele queria ser mais que apenas um móvel ou um eletrodoméstico.

E o tempo lhe foi generoso, dando-lhe um pequeno papel numa sitcom (o leitor há de convir que não importa saber em qual programa o gordo foi atuar; o que importa é que diria enfim alguma coisa que não só onomatopéias). Logo no primeiro dia de filmagens, porém, ocorreu um bizarro incidente: enquanto ele, num canto, meditava acerca de sua participação, alguém lhe arremessou uma roupa encardida. O gordo riu, julgando ser aquilo uma espécie de trote; mas na segunda vez, terceira e dali por diante, sempre que ele estava no set, num cantinho, as pessoas continuavam a lhe arremessar roupas encardidas. Isso sem contar as vezes em que no meio da gravação o diretor, com um charuto no canto da boca, apontava para ele e berrava:

-- De novo largaram esse bagulho no meio do set! Ô produção, faz o favor de tirar isso daí! -- e lá ia o gordo explicar que o "bagulho" era ele próprio, o que levava sempre o diretor a dizer "chucrute, mil perdões!"

A situação foi aos poucos se tornando intolerável. Os atores o ignoravam, alegando que não viam ninguém à sua frente, exceto uma mesa, um pequeno armário ou, como de praxe, uma máquina de lavar. E, enfim, o diretor foi lhe fazer um pedido:

-- Olha, você até que está bem no papel, mas seria melhor ainda se interpretasse, sei lá, uma máquina de lavar... Que tal uma máquina de lavar, hein?

Ao ouvir tal proposta, o gordo perdeu o controle de si mesmo e, parecido com o uso habitual nos tempos dos Patriarcas de Israel, rasgou sua própria camisa, entre insultos dirigidos ao diretor -- insultos os quais deixo a cargo da imaginação pérfida do leitor. Atirou-se ao chão, rolando de um lado para o outro, ao mesmo tempo em que não parava de chorar.

O diretor, comovido, começou a lhe falar de modo suave:

-- Meu amigo, você tem de entender que não dá para se revoltar contra aquilo que se é. Você nasceu com um talento que ninguém tem. Nunca vi uma pessoa que se passasse tão bem por uma máquina de lavar.

O gordo se acalmava. Ergueu-se pesadamente, com o cabelo desalinhado, pança e rosto meio sujos, sentou-se e apenas soluçava. Então o diretor retirou do bolso dois charutos, oferecendo um ao triste homem, que muito gentilmente declinou. Tratou de acender o seu e, sorrindo, com uma mão no ombro do infeliz, continuou:

-- Você nasceu com um dom! Olha, para você ter idéia, juro por Deus que se eu estivesse distraído agorinha, agorinha, jogaria minha maldita cueca que está para lavar na tua cabeça! Você não faz idéia do que tem, não faz idéia, não faz...

-- Diretor, respondeu o gordo, obrigado, muito mesmo!

-- Oh, gordo...

-- Oh, diretor!

Ambos se abraçaram, emocionadíssimos, e só não se beijaram porque semelhante ato repugnava-lhes a natureza. Alguns que passavam perto daquela cena comovedora estranharam o fato de o diretor estar falando aparentemente com um armário, abraçando-o e chorando. "Já vi que hoje será um daqueles dias", pensou alguém.

E assim, investindo em seu próprio talento e com o auxílio do diretor, o gordo decolou em sua carreira. Tal foi seu sucesso que no Oscar chegaram a inventar a categoria melhor ator/atriz parecido com um móvel e/ou eletrodoméstico. Sylvester Stallone e Tom Cruise ganharam, é verdade, em certas ocasiões. Mas o gordo era quase imbatível, levando muitas estatuetas para sua luxuosa mansão, alcançando glória e opulência. E viveu em felicidade até o fim de seus dias.

Friday, December 03, 2004

Bravo mundo

Joana era uma dessas pessoas que, segundo alguns, é conscientizada. Lê demais, e tudo que chega em suas mãos ela devora em dois, três dias de leitura.

É uma moça jovem, de futuro promissor na nação. Além do mais, talvez por sua postura conscientizada, ela é, segundo outros, acima de tudo lésbica. Sim, lésbica über alles. E por sua tendência em criar discussões, ela sempre foi, quanto a isto, uma pessoa exemplar – exemplar em buscar todo e qualquer tipo de argumento para defender sua causa.

Joana era, por isso mesmo, uma pessoa bastante peculiar. Não lhe interessava se nas suas discussões ela se batia contra dois mil anos de tradição cristã, ou mais de três mil de judaica, ou toda a filosofia grega, em suma, tudo o que constitui a razão de ser do Ocidente. Não, ela nem pensava em nada disso, preferia antes arremessar todo este legado na lata do lixo que ao menos cogitar acerca de suas paixões irracionais corpóreas. Pois tudo se resume a apenas essa dicotomia, segundo a mente de Joana: todos os escritos dos Santos Padres, acrescentados aos de muitos papas, filósofos e ensaístas, que no total dariam uma quantidade de páginas tão volumosa que apenas em muitas vidas alguém obteria seu pleno conhecimento, contra seu discurso pela liberdade e sua vontade e seu empenho em se fazer aceita – e quem ela julgava participar de sua mesma condição, ainda que às custas deste mesmo legado.

***

Renato era praticante da poligamia. Considerava-se também, sob muitos aspectos, bastante inteligente: afinal de contas, lia sem parar, vinha de família abastada – conquanto ele não fosse, é verdade, uma pessoa esnobe – e já se acostumara a esmagar aquilo que ele próprio chamava de “mediocridade reinante”, isto é, refutar de trás para frente e de frente para trás todo e qualquer tipo de argumento que fosse contrário ao seu peculiar estilo de vida.

Era uma pessoa agradável, simpática e gostava muito de escrever, já tendo publicado, com menos de trinta anos, dois romances, ambos sobre os problemas que a monogamia proporciona à nossa felicidade (melhor seria dizer “à dele”). Foi bem recebido pela crítica, e de fato era muito bem escrito e argumentado. Mas ele caía no mesmo problema que Joana: por trás de todo seu talento ele buscava no fundo se justificar e a todos aqueles que praticavam o que ele próprio praticava às custas de todo um mar de gênios que, desde Moisés até nossos dias, defendem a monogamia. Na verdade, o ataque deste nosso jovem talento, que começava apenas neste pequeno aspecto, isto é, na questão do amor livre, aos poucos se alastrava para um ataque à Bíblia, à filosofia, à sociedade e tudo o que ele considerava como oposto à liberdade (melhor seria dizer “à sua liberdade”). De repente, ele se tornara não apenas um apologista de uma pretensa liberdade, mas um verdadeiro carrasco do tal “legado judaico-cristão”. “Tradição, dizia Renato, nada mais é que máscara e hipocrisia”.

***

Por último, Tereza. Ela é mais uma jovem talentosa – possui apenas 21 anos. Tão jovem, ela é bastante confiante em si mesma, a ponto de dizer que nunca fez algo que se arrependesse. Curiosa opinião! Além do mais, ela é dada a discussões, como Joana. Mas – outra coisa curiosa – ela buscava sempre julgar pessoas e acontecimentos segundo os motivos mais licenciosos possíveis. Por exemplo, se alguém fizesse algo bom, na verdade havia algo de podre por trás. Daí que ela não podia conceber Cristo, que morreu na cruz para apenas nos salvar. Muito menos, ela mesma dizia, era possível levar a sério a hipótese de alguém ir à guerra por razões de honra, como é o caso atual dos EUA.

Tereza não podia conceber que no mundo há gente realmente idônea, ela sempre via algo por trás. Era com verdadeiro prazer, quase sádico, que ela gostava de desmascarar o que chamava de “pseudo-heróis e fatos deturpados”. Ela, Tereza, com seus 21 anos, parecia ter sido escolhida por Deus para fazer revelações ao mundo: parecia até mesmo que o mundo esperou quase cinco mil anos para que ela surgisse e o livrasse da imbecilidade e do erro. Provavelmente ela estranharia essa opinião minha, afinal de contas, segundo ela mesma, nenhuma criatura razoavelmente inteligente pode mais acreditar em Deus.

Saturday, November 27, 2004

Cinema Nacional

O que acho sobre Cinema Nacional? Enquanto eu não pisar nele está bom. Porém é detestável quando suja o sapato. Mesmo se passar papel, seu fedor parece grudar, e aí parece que a gente participa do mesmo gênero de odor.

Acho que é falta de educação não colocar num saquinho plástico o Cinema Nacional quando alguém leva um bichinho para passear e ele tem de produzir um filme. Quando eu morava em Laranjeiras, cansava de ver vários curtas e longas serem produzidos ao meu lado, sem a dona dos respectivos diretores canídeos os ensacarem. E todos eles, dado que geralmente os filmes eram produzidos - que eu assistia - na Rua Payssandu, onde muitos moravam, viviam de maneira mais abastada que eu. Não me perguntem se o Estado tinha relação com isso, muito embora ali perto exista o Palácio Laranjeiras, se a proximidade com prédio público indicar algo. Talvez tenha como força inspiradora. Talvez, talvez.

Onde moro agora, o Centro, não costumo mais assistir a filme algum, nem pisá-los. Se bem que as ruas por onde passo sejam mais semelhantes a novelas, seriados (nacionais), etc. Terça passada inclusive vi uma atriz numa esquina esperando um ator transeunte para ser levada ao set-privê de filmagem. Pois as novelas e seriados (nacionais) são todos assim: sacanagem.

Alguns acusam melhorias desde fins dos 80's. Realmente agora é melhor: a voz do ator/atriz não demora mais para surgir após ele(a) abrir a boca. E só (de resto, continuamos - pelo menos eu - a desviar para não sujar o sapato).

Por isso eu digo: mostre-me como é teu cinema que direi de que país és. My Fair Lady jamais seria concebido pelos nossos diretores canídeos nacionais, mas Pulp Fiction devidamente favelizado sim. Aliás, eu tenho a tese de que Quentin Tarantino não é mentalmente são, mas ela é refutável. O leitor ficará apenas com a curiosidade na mão, podendo pelo menos averiguar na filmografia deste sujeito o que afirmo mas desdenhosamente não demonstro. E tenha um bom dia.

Sunday, November 21, 2004

Se eu fosse mais atento...

Vejam só, meus caros: prestem sempre atenção nos acontecimentos ao redor de vocês. De preferência aqueles menores e mais bobos. Eles sempre servem como um aviso.

Por exemplo: quando eu estava ainda no meio do segundo grau – naquela época já doido para entrar numa faculdade de história – uma velha veio falar comigo. Mas antes que um de vocês pergunte o que isso tem de mais, pois realmente parece ser um evento tão pequeno que chega a ser idiota, vou me explicar melhor. Naquela época eu estava lendo o Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de W. Shirer. Como eram quatro volumes, então eu aproveitava todo momento vago que eu tinha (eram muitos, incalculáveis) para lê-los, e o ônibus era, por assim dizer, minha sala de leituras predileta. Então estava eu num belíssimo dia lendo quando uma velha sentou ao meu lado. O livro chamou sua atenção e eu me pus a lê-lo mais ainda, rezando para que aquela senhora não me perturbasse. Aliás, antigamente no ônibus vez ou outra alguém vinha me encher a paciência enquanto eu lia algo. Teve uma vez que um senhor veio me aconselhar cautela, a fim de poupar-me de um terrível e potencial deslocamento da retina. Mas enfim, voltando à velha, nem minha cara quase afundada no livro adiantou:

- Que bom encontrar um jovem que gosta de ler! É tão difícil uma coisa dessas hoje em dia!

- Como se antes fosse mais fácil – responderia eu hoje, mas de uma forma mais educada. Naquele dia me contentei com um “é...”, seguido por sorriso.

- Ah, esse livro... Eu o li antes. Você gosta de história?

- Farei vestibular para história...

- Meus parabéns – respondeu sorrindo, com dentes meio amarelados. – Qual o seu nome?

- Ibn-Sinâ – mais uma vez é o que eu responderia hoje, como da vez que desgraçadamente fui inventar para um desses evangélicos que entregam papel na rua que eu era judeu e, portanto, não podia aceitá-los. Pelo que ele começou a dizer e pela sua expressão facial, parecia que eu tinha dito que acabara de beber guaraná com o Demônio. Mas dei uma resposta ultra-conservadora para a velha, dizendo meu nome verdadeiro.

- Cassiano, você deve ser um jovem que adora ler. Que bom que fará faculdade de história. Eu sou professora de história aposentada. E... – começou a contar a vida boa mas dura de um professor de história, como cuidou de não-sei-quantos-filhos, como um deles foi parar nos EUA, outro virou um renomado não-lembro-o-quê, e por aí vai.

Naquele momento eu comecei a reparar que a velha estava muito, muito, muito mal-arrumada. Então a história dos não-sei-quantos-filhos que se tornaram homens bem-sucedidos parecia cada vez mais insólita. Bom, longe de duvidar, mas havia algo estranho. De qualquer jeito, aquela senhora estava realmente acabada. Ela falando toda contente sobre história e eu só pensava no quê foi que eu pensara para escolher um troço desses. A conversa durou acho que uns cinco minutos, tempo que levou entre ela pegar o ônibus na Pedro Américo e saltar no Largo do Machado (se você não faz a mínima idéia de quê raio de lugares são esses, azar o seu, me desculpe). Educadamente, antes de sair, ela me desejou sorte e mais uma vez disse que essa era uma bela carreira. Minha reação foi parecida com a de alguém que entrou em contato com algo de que tem alergia. E quase arremessei o Shirer pela janela, mas meu corpo reagiu bem e pude me controlar. Virou um episódio burlesco apenas.

Só hoje, uns seis anos depois daquele incidente, é que percebo que ali, na minha frente, estava um sinal. Era um aviso do tipo “pensa bem nisso, rapaz, pensa bem...” Se fosse nos tempos de Tirésias, qualquer um perceberia (ainda mais se de repente ao mesmo tempo caísse um raio, um bicho fosse atacado por outro ou uma jumenta parisse um sapo). Ignorei o agouro funesto e me meti no que me meti. Portanto, leitores, prestem muita atenção nestes pequeninos acontecimentos. Vocês poderão se poupar de muita coisa insólita.

PS: Essa história de prestar atenção nos acontecimentos de nossas vidas me fez lembrar um filme muito bom, Aurora. Muito bom? É um filme espetacular, uma das melhores coisas que já vi! Um dia comentarei sobre ele, embora se vocês lerem isso, verão que quase não terei mais o que dizer de relevante. É outra das minhas recomendações-se-eu tivesse-alguma-autoridade-para-isso.

Friday, November 19, 2004

Um tipo muito chato de blog

A coisa mais chata que existe são esses blogs onde a pessoa faz questão de contar única e exclusivamente eventos de sua vida. Pelo menos eu, lendo-os e relendo-os, não consigo evitar um bocejo e um sinal de desaprovação. Porém, vividamente sinto meu fígado girando quando me deparo com um daqueles fotoblogs. É muito, muito, muito chato. Nunca atinei o motivo, porém a forma mais simples de encontrarmos um barnabé é acessando uma dessas coisas. E as mensagens – oh, horror! – dos amigos apenas justificam que, decididamente, somente pessoas que participam timidamente da humanidade gostam daquilo. Não compensam as eventuais fotos de moças bonitinhas. Quer dizer, compensam só um pouquinho, não o suficiente.

Se pensarmos com carinho, concedendo onde houver verdade, veremos que o problema não está tanto em contar sobre nossas vidas, pois isso é até um desejo natural, mas em seu conteúdo. Aqui há um divisor de águas. Há uma diferença entre a vida de um Alexandre Magno ou um César e a da Vivi, amiga da Fê, que adoram ir à praia e ao shopping, sempre choramingando quando o tempo fecha, ou então da Suzana, que é mais séria, mas mesmo assim mantém teimosamente a mania de nos oferecer um espetáculo do nada.

Exemplo de blog da Vivi, amiga da Fê (e sem esquecer, leitor, que as letrinhas são coloridas):

oiezzz!! NoIzzz tÉmUsss Ki PaSsAr Na PrAiA! Má xó Xovi :////! BeJusssss!! :***

O da Suzana é uma variação sobre o tema da Vivi, amiga da Fê:

Gente!
Esse tempo brinca comigo! Na hora que ponho aquele biquíni já com cheiro de naftalina (tanto tempo que o sol não vem), mas logo que coloco meus pezinhos para fora cai o toró. Entro; então para. Retorno; continua. Ninguém merece!
Vamos torcer, dedos cruzados! Operação-Verão!


Para mim – e para muita gente – seria uma alegria deparar com um blog escrito por Alexandre Magno. Imaginem só como seria:

Alexandre aos leitores, saúde.

Neste dia, atravessei o Helesponto. Julgo que facilmente desbaratarei os exércitos bárbaros do Rei. Não tenho dúvidas que conquistarei a Ásia. Aproximo-me do Granico rapidamente, muito embora meus homens o receiem por sua profundidade. Seria uma ofensa ao Helesponto se, tendo-o atravessado, o Granico me impedisse! Meus afazeres me proíbem de alongar o texto. Quando a Pérsia for minha, enviarei por e-mail minha foto nas portas da Babilônia. Adeus.


Ou um de Júlio César:

César aos seus leitores, salve.

Tendo se aproximado do Rubicão, César hesitou muito em atravessá-lo. E ainda não o fez, tendo em vista o que está em jogo. O general permanece pensativo. César acha que as opiniões dos seus leitores seriam levadas muito em consideração. Deixai comentários sobre este tão auspicioso evento. Valet.


Não há dúvidas que muitos acompanhariam bem ansiosos as aventuras destes dois homens. Centenas e centenas de acessos seus blogs (Bucéfalos e Veni Vidi Vici, respectivamente) receberiam todos os dias.

Como nem eu nem a maioria das pessoas que compõem a humanidade são césares ou alexandres, muito embora haja raskolnikoffs da vida que pensam sê-los, então seria de extremo bom gosto evitarmos chilrear sobre nossas vidas e passássemos para outros temas. Ah não ser, é claro, que de um tema pitoresco se crie ótimos textos. Eu seria o primeiro a lê-los com orgulho.

PS: Este aqui é um exemplo bom daquela receita que eu disse. O filósofo algumas vezes parte de um evento de sua vida para desdobrar num tema interessante. Digamos que aqui esteja um bom exemplo da diferença entre o ter e o não-ter que dizer.

Memoráveis batalhas que travei ao longo dos séculos


Eu entre dois generais gregos: bolando uma estratégia para derrotar Xerxes (circa 480 a.C.).



Desastre de Agincourt (1415): até hoje tenho pesadelos por isso.



"Charge of the 21st Lancers, Omdurman": Churchill e o autor destas linhas foram um dos que lutaram gloriosamente contra os dervixes do Mahdi na Batalha de Omdurman (1898)

Thursday, November 18, 2004

Wednesday, November 17, 2004

Nostalgia dos bons tempos das boas batalhas

Esse dia chuvoso me lembrou da vez em que eu e vários antigos amigos defendíamos as Termópilas, sob a fúria das torpes flechas do Grande Rei. Que coisa agradável atravessar o peito do bárbaro com nossas lanças meio toscas mas que na época eram o que de melhor havia! Tenho uma certa nostalgia daqueles idos.

Digo isso sem menosprezar, claro, também as boas cargas de cavalaria que participei em diversas ocasiões ao longo da Guerra dos Cem Anos. Infelizmente, aqueles patifes ingleses puseram um termo a essa bela distração, com seus esfomeados arqueiros sustentados a preço de banana. Se já nos tempos das Termópilas eu considerava o uso de flechas coisa de gente covarde, imagine então na melhor das épocas da história, aquelas em que a gente podia usar armadura e espada sem parecer um idiota, ter de confrontar aquela ralé que, medrosa, mal chegávamos perto e já se dispersava confusamente?

De cargas de cavalaria, a última que conheci e gostei bastante foi aquela do Churchill. Onde li mesmo isso? Na sua autobiografia? Céus!, esqueci o nome do livro, mas lembrarei nalgum momento. Enfim, ele também participou de uma carga. Hmm, mas antes de continuar, minha sabedoria prática me alerta que talvez um ou dois leitores não saibam o que significa esta tática de batalha. Bom, é mais o menos o seguinte: imaginem uma formação compacta de cavalaria, pessoas bem próximas umas das outras, talvez uns dez, vinte ou trinta cavaleiros, avançando velozmente para literalmente passar com o cavalo em cima dos soldados a pé ou para se chocar contra outra cavalaria (recomendação: assistam Coração Valente, no episódio da Batalha de Falkirk, onde quase dá certo a carga inglesa se não fossem as lanças de Wallace; ou Lancelot, aquele com Sean Connery e o insosso Richard Gere, onde há um choque entre duas cavalarias mais para o final do filme – e percebam como, além dos tradicionais anacronismos em filmes sobre Idade Média, que os uniformes dos cavaleiros da Távola Redonda parecem demais com o do pessoal da Enterprise, só mudando a cor), tudo em questão de segundos. No caso do Churchill, foi muito legal como ele descreveu sua carga, com o detalhe do exército inimigo ter gente com armas de fogo! É sério, dá vontade de ser inglês da virada do século XIX para o XX só para ser oficial de Sua Majestade e participar de uma batalha contra um desses bárbaros africanos ou asiáticos. Mas pouparei o relato de sir (já ia me esquecendo do título) Winston Churchill ao leitor, pois é mais emocionante lendo a fonte que fazer um sumário.

Ah, a cavalaria... Segundo lendas, até na Segunda Guerra Mundial usaram a cavalaria. Pena que foi contra tanques... Foi num combate entre poloneses e alemães, onde os últimos passaram com seus tanques pelos cavalos dos primeiros. Não deve ter sido uma coisa muito bonita de se ver.

É uma pena que hoje em dia não posso mais combater a boa luta como nos tempos das Termópilas, dos séculos XIII, XIV e XV e da época de sir Churchill. Talvez se eu tivesse nascido muito tempo atrás, podia até lutar no Paraguai, mas não seria a mesma coisa, embora talvez fosse algo curioso observar o Almirante Tamandaré literalmente atropelando as frágeis naus paraguaias, num estilo de batalha naval dos tempos de Pompeu ou até de bem antes. E me incomoda essa impossibilidade. Pois quem de nós que já partiu ao lado de Xenofonte e capitaneados por Ciro, o Moço, não é nostálgico dos bons tempos em que se podia comprar suas própria lança e armadura e, se fosse o caso, liquidar alguém sem ter de fazer tratamento psicológico ou dar entrevistas sobre a verdade crua da guerra? Já se foram aqueles bons tempos, meu e teu, potencial amigo leitor. O tempora! o mores!

Saturday, November 13, 2004

Do mal em ser amigo de todos

Quem é amigo de todos não é de ninguém. Daí que ser simpático com todos é indício ou de ingenuidade atroz ou de torpeza pura e simples. Em outras palavras, ser amigo de todos é implementar a discórdia em si mesmo.

Mas não faz parte do meu estilo disparar aforismos. Tratemos melhor essas idéias.

Imaginemos um exemplo absurdo. Que o leitor seja amigo de todo mundo de sua cidade. Ora, ainda que haja cidades e cidades, não é possível que em nenhuma não haja gente má entre os bons. Então o leitor necessariamente tem de ser amigo de gente boa e má. Mas que diacho de cidadão o leitor seria caso construísse amizades com qualquer tipo de gente? Donde se conclui que não é lícito conviver com qualquer um.

Há um segundo problema, que pode ser bem entendido se ilustrarmos com o exemplo da longínqua Idade Média. Naqueles tempos havia cavaleiros que juravam fidelidade a mais de um senhor. Este juramento implicava em vários deveres, entre os quais o de auxílio na guerra. Mas que acontecia se os senhores de um mesmo cavaleiro lutassem entre si? Então inventaram vários artifícios para tentar corrigir esse problema – não importa citá-los –, mas nada adiantou muito. Não devia ser raro um homem que jurara há tempos defender com sua vida seu senhor de repente virar-lhe as costas e prontamente auxiliar seu inimigo. Talvez mais sensatos fossem os japoneses: um samurai só podia ter um senhor.

E o problema da fidelidade atinge a religião monoteísta. Pois se para um islâmico só há um único Deus, como ele dirigirá um mesmo amor à outra divindade sem cometer o pecado mortal da apostasia, isto é, da traição? E aqui chego onde talvez alguém já tenha percebido: que não é possível amar incondicionalmente duas pessoas ao mesmo tempo e no mesmo instante. Haverá um momento em que nossos votos, tácitos ou não, entrarão em choque uns com os outros e cairemos numa traiçoeira cilada: atacar quem juramos defender. Pois se eu juro permanecer fiel a alguém, como terei dois senhores? A não ser no caso do leitor ser um protozoário, que consegue realizar a proeza da bipartição, suponho que seja uma tarefa ingrata servir da mesma maneira a dois amores.

Essa divisão de si mesmo é a conseqüência de atos que visam apenas interesses mais imediatos. Aqui vale alongar a analogia com os cavaleiros medievais. Eles muitas vezes juravam fidelidade a mais de um senhor para obter em troca mais terras, riquezas, poder sobre homens, etc. Mas tudo isso é válido quando o preço é se duplicar e lutar contra si mesmo, a fim de atender as exigências de vários senhores ao mesmo tempo? Daí que a traição leva à discórdia e à desunião, não só em relação a outras pessoas mas primeiramente consigo mesmo. Vida dupla, expressão que ilustra bem o problema.

O problema todo dessa questão é que não é possível, pelo menos num nível humano, conciliar o inconciliável. O “amai-vos uns aos outros” não pode ser lido de maneira incondicional. Até o amor é uma lei divina e, como qualquer outra, tem seus princípios. E este princípio, em relação ao divino, deve ser primeiro amar o bem e a verdade. Por isso, não nos esqueçamos, na bizarrice que chamamos de cotidiano, que buscar amizades a todo custo é uma atitude tão errônea quão execrável. Sejamos nobres e caridosos, mas sem com isso nos unirmos em uniões abomináveis a fim de trairmos a nós mesmos.

Fechemos este texto com a figura do monge. Ele é o melhor exemplo de fidelidade, pois só ama a Um. Este amor é tão fiel que nada mais no mundo é importante. E o monge ama apenas a Um e repele todas as outras coisas porque nada pode desviá-lo do único e mais rápido caminho para a vida perfeita. Apegar-se a qualquer outra coisa que não seja Deus seria um dividir-se a si mesmo. Vale a pena desenvolver mais este assunto, mas fica para outra ocasião.

Sunday, November 07, 2004

Um dos menores, mais terríveis e mais inverossímeis contos da língua portuguesa

Saltou do ônibus um tempo depois de ver as lindas coxas de tremenda mulher no banco de trás. Estava excitado demais. Saltou, porém o ônibus estava em movimento, caindo no chão, bem em cima do seu membro viril ereto. Quebrou o pinto naquela tarde funesta.

Solução para o fim da criminalidade no Brasil

Como sabemos que os freqüentadores de faculdades públicas de humanas são delinqüentes em potencial, tenho uma sugestão para o fim da criminalidade nacional: que quem passar no vestibular seja submetido a um interrogatório policial ferrenho. Talvez o sistema fosse mais eficiente se deixássemos que o povo primeiro se formasse. No dia da formatura, todos cairiam por um alçapão (com almofadas no fundo, pois aqui deve ser um país civilizado) subitamente aberto. Permaneceriam em quarentena até haver a separação entre sãos e maníacos.

Os poucos que não fossem loucos psicóticos teriam acompanhamento médico, pois é difícil não sofrer seqüelas em tais ambientes. O tratamento poderia ser algo parecido com a cura da alma socrática.

Saturday, November 06, 2004

O ALCÁZAR DE TOLEDO

Nos dias de abril e maio que andei pelo Velho Mundo, vi muita coisa que me encheu os olhos e a alma de admiração. Não discorda Platão das Sagradas Escrituras, quando diz que a admiração é o princípio da sabedoria, porque o temor filial, segundo São Gregório e Santo Tomás, é um estremecimento da alma agradecimento que permanece e resplandece no céu. Torno a dizer: vi muita coisa que me encheu os pulmões da alma de gratidão e admiração. Deus é grande e todo-poderoso, e o homem, esse quase-nada, espécie de mofo nascido nos desvãos de um planeta, quando se ergue para louvar a Deus torna-se gigantesco e admirável, e é capaz de gravar nas pedras o sorriso dos anjos, e de construir catedrais, rosáceas, vitrais que nos enchem de estupefação. "Passou por aqui uma raça de gigantes...", dizia eu com meus botões na Sainte-Chapelle ou no Alcobaça.

Era sempre diante de um passado mais lendário do que histórico, e por isso mais verdadeiro, porque as lendas cuidam das coisas essenciais que escapam aos historiadores perdidos na imensa feira de superfluidades. "Passou por aqui uma raça de gigantes..." "Passou..."

Mas num lugar do Velho Mundo pude ver o prodígio da permanência e da sobrevivência da raça de gigantes, até os dias deste século, até ontem. Refiro-me ao Toledo.

Toledo é uma cidade, hoje pequena, regada pelo Tejo, o mesmo Tejo de Camões e o mesmo rio de minha aldeia de Fernando Pessoa. A sudoeste de Madri, distante uma hora. Toledo é um prodígio sem igual. Sua preciosidade começa por imemorial antiguidade. Já dois séculos antes de Cristo, Toledo foi colônia cartaginesa e depois colônia romana. E logo nos primeiros dias do cristianismo Toledo se torna centro de irradiação, foco de difusão e núcleo de estudo e de doutrinação. Desde o primeiro século até o oitavo da era cristã reuniram-se em Toledo 18, sim, dezoito concílios, sendo os mais importantes os de 396, 400 e 589 com o triunfo da Igreja Católica na Espanha contra a heresia ariana.

Além disso, convém lembrar que foi em Toledo que durante toda a Idade Média se forjaram as melhores espadas com que a Cristandade defendia seu território como defendera sua doutrina. Saltando por cima dos visigodos e dos mouros, temos em Toledo a capital da Espanha até Filipe II. No século XVI temos em Toledo o pintor El Greco, cuja maravilhosa casa até hoje exibe o ainda mais maravilhoso Enterro do Conde de Orgaz.

Tudo isto se inscreve no patrimônio de grandezas deixadas pela raça de gigantes que passara pelas terras da Cristandade; mas o que me deixou sufocado na visita que fiz a Toledo foi uma cripta do Alcázar restaurada, e nesta cripta com um altar o que me fascinou foi a dupla lápide aos pés do altar, com os seguintes nomes:

José Moscardó Ituarte
Luis Moscardó

Eu não sabia que ia ali encontrar seus túmulos e seus nomes, e por isso fui tomado por uma surpresa que me prostrou de joelhos. O mundo inteiro, digo mal, o mundo inteiro que não fechou os olhos à evidência e não se recusou à admiração dos feitos admiráveis, sabe o que foi a resistência do Alcázar, em 1936. Sitiado voluntário na fortaleza de Toledo, com 1.000 combatentes — e mais mil mulheres, crianças, velhos — Moscardó organizou-se para resistir e para sustentar seus dois mil habitantes. De início teve de entregar seu filho. A história é conhecida. Estão lá ainda a mesa de trabalho e o telefono que naquele dia tocou. Era o Chefe de Milícia dos Rojos que chamava Moscardó para intimidá-lo a render-se em 10 minutos, sem o que mandaria fuzilar seu filho Luis, em poder dos 12.000 milicianos que cercavam o Alcázar. A resposta de Moscardó foi seca e instantânea:

— Você não sabe o que é a honra de um soldado, e por isso me faz essa proposta.

— Você fala assim porque pensa que estou blefando. Venha cá, Moscardó. Fale com teu pai.

Luis: — Oiga, papá?

José Ituarte: — Que hay, hijo mio?

Luis: — Nada de particular, papá. Dicen que me van a fusilar si no te rindes. Que debo hacer?

José Ituarte: — Tu sabe como pienso; tu padre no se rinde. Si es cierto que te van a fusilar, encomienda tu alma a Dios y muere como español: da un Viva España! y Viva Cristo Rey!

Luis: — Es muy facil, papá. Haré las dos cosas... Un beso muy fuerte, papá.

José Ituarte: — Adios, hijo mio. Un beso muy fuerte.

E foi depois desse começo que José Ituarte desenvolveu uma sobre-humana energia para organizar a defesa, com um mínimo de armas, e organizar a subsistência de seus dois mil filhos adotivos. O que realmente espanta nessa epopéia de nossos dias não é a bravura, é sobretudo a força de resistência, a força de paciência com que se transformou o forte bombardeado dia e noite, por muito mais bocas de fogo do que The Light Parade de Tennyson, porque sobre o Alcázar, além das quatro rosas do vento, chovia fogo do céu. Aviões despejavam bombas, e José Ituarte ocupava-se com a moenda das reservas de trigo, com um motor de automóvel, e a organização de um circo para divertir as crianças...

Não cabe aqui a centésima parte da epopéia do Alcázar de Toledo. Cabe ainda um reparo. Estas coisas aconteceram neste século de tantas degradações. Eu vivia, respirava, comia, dormia e trabalhava nos meus esquemas eletrônicos, enquanto a Espanha, Toledo, o Alcázar, Moscardó defendiam o cristianismo, a civilização, a honra, e tudo o mais que dá à vida o valor de ser vivida. Por um conjunto de bloqueios e conjurações, em que este século é fértil, passou-me despercebido o feito no momento mesmo em que eu poderia ter respirado em sincronismo com os heróis do Alcázar. Estupidamente perdi essa oportunidade de ser contemporâneo de uma raça de gigantes. Convertido à Fé Católica, ainda mais estupidamente perdi a oportunidade de agradecer a Deus tanta grandeza humana. Por um triz tive a sorte de sobreviver, e de ainda poder admirar, e de ainda poder agradecer. parte dessa história está no meu livro O Século do Nada.


(Este texto é de Gustavo Corção, retirado do site Permanência. Que mais não estamos perdendo também? Não apenas por sermos católicos ou não, mas gente?)

Agradecimento ao Carlos

Eu devia ter feito isso há mais tempo: é um agradecimento ao Carlos pelas valiosas ajudas ao pobre escritor destas linhas. Indicou onde e como eu conseguiria este novo sistema de comentários, me ensinou a por os links que o leitor pode observar ao lado da página, além de construir nosso site O Teocrata. E isso só para dizer algumas coisas. Portanto, aqui vão meus cumprimentos ao Mascate.

Hoje é dia de polemizar; então falemos sobre os anencéfalos e terminemos este assunto de uma vez por todas

Hoje resolvi buscar uma polêmica qualquer para discutir. No caso, escolhi sobre a dos anencéfalos.

Bom, basicamente é o seguinte: se ele tem esse problema, não significa que está morto: apenas está privado de parte do encéfalo, assim como os manetas, caolhos e eunucos estão privados, respectivamente, de mãos (ou braços), da vista e do bilau.

Alguns acham que precisamos discutir o que é o ser humano, a vida, a alma e outros blá blá blás para se saber se o bebê (ou feto) com este problema é ou não gente. É uma idéia bonita até, e eu mesmo já perdi meu tempo achando que a discussão devia seguir por esse pedante caminho. Mas o negócio é o seguinte: é um bebê com doença terminal, ponto. Apoiar aborto é apoiar assassinato, ponto. E se nasceu com uma doença terminal, isso não nos autoriza a matá-lo. Se é para matar todo mundo que seja doente terminal, vamos erradicar de uma vez por todas as pessoas com câncer, AIDS ou aqueles estropiados por causa de um acidente qualquer e que ainda gozam de um pouquinho de vida. Câncer um dia terá cura? AIDS também? Tudo isso implicaria que não devemos matar quem tiver essas doenças? E por que diabos anencefalia também não teria cura algum dia? Na verdade, a pior doença terminal é a vida, então nos matemos todos de uma vez.

Alguém pode querer um argumento que valha mais que a intuição para resolver este problema. Isso por si só deve ser prova de decadência da nossa espécie – aliás, a discussão também o é. Em todo caso, me imagino travando a seguinte discussão:

-- Na tua opinião, o sol é quente?

-- É.

-- A cabeça é menor que o tronco?

-- Claro.

-- Monica Bellucci é a idéia perfeita de mulher encarnada?

-- Lógico.

-- Então se você consegue perceber que o sol é quente, a cabeça menor que o tronco e a Monica Bellucci a idéia perfeita de mulher encarnada, como é que você diz para mim que anencéfalo não é gente, ou não tá vivo? Me explica como você faz isso porque de repente até dá dinheiro num circo de horror.


Mas sempre tem um mais enjoado que acha que isso é fugir da discussão, ou que até agora não provei nada. Então para provar que anencéfalo é gente, primeiro temos de começar das coisas mais fundamentais: por que o sol é quente, a cabeça menor que o tronco e a Monica Bellucci a idéia perfeita de mulher encarnada.

Por último, podiam dizer que na justiça meus argumentos não são válidos. Nem se eu mostrasse um anencéfalo chorando talvez valesse. Mas talvez se eu falasse bem enrolado, juntando a Bíblia, a medicina, a história da humanidade, a filosofia e o “atual contexto mundial” num samba do intelectual doido, em tom eloqüente e trágico, muitos me levariam mais a sério. Tudo bem. Fico apenas com meus poderosos argumentos, todavia.

Só espero que ninguém vá encher minha santa paciência pra duvidar também que a Bellucci é linda de morrer.

Thursday, November 04, 2004

Vizinhos e besteiras

Não sei o motivo, mas as pessoas adoram andar de cueca e calcinha pela casa. Porém já ouço um leitor objetando, no fundo da platéia, que as pessoas querem apenas permanecer à vontade. E acrescenta que ele próprio gosta de estar daquele jeito, senão como veio ao mundo. Tudo bem, concedo. Mas atente para isso: essa é a única maneira de se estar à vontade em casa? E preste atenção nos problemas que isso pode te causar:

uno: Sendo homem, cairá no ridículo. Ver um homem perambular de cuequinha pela casa acaba com seu respeito, se é que já teve algum;

duo: Sendo mulher, há duas alternativas: se transformar em musa dos vizinhos ou – mas somente no caso de realmente ser muito, mas muito feia – também cair no ridículo.

tres: Tanto um caso como o outro, levando-se em consideração uma suposta pessoa que não seja simpática a voyeurs, terá que viver de cortina fechada. De noite não há muito problema, mas e de dia, tendo que permanecer com tudo às escuras? E sem contar com o clima mais abafado que fatalmente haverá em seu recinto.

Mas outro leitor – imagino sempre essas coisas – se levanta na ponta esquerda da platéia e objeta que pode haver casos em que não haverá ninguém observando, como, por exemplo, em prédios que não ficam em frente para vizinho algum, como aqueles no litoral em que olham o oceano. E acrescenta que nesse caso até mesmo um velhinho pode usar um fio dental e fazer polichinelos ao som de salsa e merengue (se baixinho), já que não permanecerá ridículo a ninguém.

Concedo em parte. Tudo bem que não haverá audaciosos vizinhos observando sorrateiramente por trás da cortina tua mulher, mas cá entre nós, leitor: velhinho usando fio dental e fazendo polichinelos ao som de salsa e merengue? Basta que ele tenha a mínima consciência do ridículo para ter vergonha em apenas cogitar uma sandice dessas. Num certo sentido é até bom que aja gente sempre por perto e potencialmente voyeur, afinal de contas deve haver uma minoria de indivíduos que só não comete loucuras justamente pelo medo de alguém lhe ver no ato.

Sabemos todos que estatisticamente a probabilidade de toparmos com uma vizinha maravilhosa – ou, para as mulheres, o homem de seus sonhos – é pequena. Dessa maneira, para indivíduos de bom gosto o vouyeurismo é um empreendimento frustrante. E pode-se aplicar esse raciocínio às praias de nudismo. Lá pior até é porque ninguém faz questão de esconder a feiúra, pelo contrário. A roupa, nem que seja uma calcinha furada ou cueca rasgada, ameniza um pouquinho o miserável aspecto humano geralmente comum a todos nós.

Mas a minha pergunta ainda não foi respondida. Por que diabos, apesar de tudo isso, as pessoas insistem em passear de calcinha e cueca pela casa? Tenho certeza que na época de antanho as pessoas se vestiam de um jeito melhorzinho em suas casas. Então o que mudou, meu deus? Alguém da platéia saberia responder? Alguém?

Adendo:

Há ainda a questão das roupas penduradas em varais para fora da casa. Dá para fazer uma idéia de quantos a habitam, como são seus moradores, se há vários homens, mulheres, crianças, etc. O lixo também é um bom indicativo.

Ora, é fato notório que um dia acabemos por topar com uma cueca-de-oncinha-quase-fio-dental do outrora másculo vizinho. Ou, daquela recatada e pudica senhora, um dia você observa estarrecido em seu varal um fio-dental escarlate, acompanhado por um misterioso chicote que por algum intrigante motivo foi posto para secar.

Todas essas coisas pertencem à esfera íntima, e bisbilhotar, eu sei, é feio. Mas a curiosidade é intrínseca ao homem. Obviamente as pessoas não estão erradas em pendurar às vistas de todos seu chicote de couro ou fio-dental escarlate, mas por que apenas eu e mais alguns têm vergonha em se imaginar fazendo o mesmo – não digo em pendurar nossos trajes masoquistas, mas nossas simples roupas mais íntimas? Será que a vizinha pudica não liga o mínimo que seja para o fato de eu saber que ontem ela usou tal calcinha, ou tal chicote, ou aliás saber quantas e quais são suas roupas íntimas?

Aliás, geralmente a gente nem precisa bisbilhotar. Está tudo tão escancaradamente à mostra que seria até um sintoma de debilidade sensorial não sabermos do vizinho essas coisas todas. Ou, como diria Ortega y Gasset, “não corresponde a esforço algum, como não seja o de respirar e evitar a demência”.

Sunday, October 31, 2004

Mudanças no sistema de comentários e indicações de réquiens

Para oferecer mais comodidade ao leitor, o sistema de comentários deste pobre blog será alterado. Mas como tudo neste mundo de ordem imperfeita exige uma reparação, ei-la, pois: teus singelos comentários serão deletados. Não é culpa minha, mas da tal da desordem imperante neste mundo. Sendo assim, mais uma vez sou obrigado a pedir mil perdões ao tão maltratado leitor.

Deixarei tal mudança para dia propício: Finados. In memoriam, sepultarei tuas pequenas idéias, leitor, mas que elas sirvam como adubo ao que – conto convosco – virá.

***

Finados é propício para ouvir o Réquiem de Mozart. É uma de suas mais belas obras, embora póstuma (seu discípulo, Süssmeyer, finalizou-a). Embora seja evidentemente uma música para o descanso da alma do finado, ela está imersa numa força que a torna grandiosa. Que o leitor não imagine que essa força equivale a um ritmo impetuoso ou estridente: é uma força bem serena, que só revela um vigor quase agressivo no Dies Irae, cantado por todo o coro. Seu contraponto é a Lacrimosa, também cantada por todo o coro, que é lindíssima e serena. Se lembrarmos que a Sequentia começa com a Ira de Deus e termina com as Lágrimas, talvez se torne mais compreensível o porquê disto. Pois a Lacrimosa é uma súplica para acalmar a temível Ira Divina, um pedido de perdão, uma prece pelo descanso eterno.

No entanto, a parte mais grandiosa é a Communio. Abre com o soprano pedindo ao Senhor que a luz eterna os ilumine em companhia dos santos, para sempre, apelando à Misericórdia divina. É cantada de forma doce, que chega a nos emocionar pelo sentimento de sua prece. Logo em seguida o coro, dividido em dois, após uma breve repetição da prece cantada pelo soprano e de parte da prece da Introdução, entoa uma poderosa fuga final quase obsessiva. Este ponto da obra é quase o mesmo do Kyrie, com a diferença da prece: nele o fiel somente pede piedade de Deus, enquanto no trecho final ele pede a companhia piedosa de todos os santos no descanso eterno. Tanto um trecho quanto o outro, pelo caráter obsessivo, lembram bastante a oração ininterrupta praticada por alguns ascetas, onde invocam incessantemente a piedade de Deus (Kyrie Eleison). E seria um pecado não citar neste parágrafo a fuga do último verso do Domine Jesu Christe (embora não tão poderosa quanto às outras duas citadas – porque o Kyrie também é construído como fuga.), onde é lembrada a promessa a Abraão e a toda sua posteridade.

Se eu fosse escrever aqui tudo aquilo que merece este réquiem, mais fácil seria escrever um livro. Pois deixemos este; há outros que também valem a pena ouvir. Apenas a título de citação eu recomendaria o do Verdi e o de Brahms. Mas algumas palavras indispensáveis faço questão de dizer ao leitor sobre essas obras.

O Réquiem de Verdi não é de modo algum parecido com o de Mozart, muito menos com o de Brahms. Se o leitor me permitisse usar um termo muito impróprio, eu diria que é bem “carnavalesco”. Aqui não resulta, de minha parte, nenhuma afronta à obra do grande Verdi. O seu Dies Irae, por exemplo, é muito mais potente que o de Mozart. Também aqui não faço juízo de valor. É de uma potência realmente avassaladora, embora serene aos poucos conforme se aproxime do fim. A obra toda, aliás, tem um ímpeto dramático enorme, e o coral está maravilhosamente bem entrosado com a orquestra. Este réquiem é, à primeira vista, muito impressionável, ainda mais se não conhecermos o de Mozart ou de Brahms. Porém a impressão que passa, e nisso talvez algum leitor que o ouviu concorde, é que ele é mais uma obra de impacto “cênico” que propriamente religiosa. Quero dizer com isso que dá para pedir no funeral Mozart, mas não Verdi; no teatro Verdi imediatamente causa grande impacto.

Já Brahms é diferente. Para começar, não é um réquiem no sentido tradicional: a letra é completamente distinta. Ele selecionou trechos da Bíblia e a partir daí montou o texto. Até mesmo batizou de maneira peculiar sua obra: Ein Deutsches Requiem (Um Réquiem Alemão). Ele é o oposto de Verdi: talvez alguém que simpatize demais com o primeiro não goste do segundo, e vice-versa. Ele é muito introspectivo; tanto o texto quanto a música e as vozes criam uma atmosfera de profundidade, comunicando-nos a miséria deste mundo e de nossas vidas e a glória do Senhor. Não sei dizer se aqui está, de certa forma, o espírito protestante alemão traduzido em música pelo não tão religioso Brahms. Mas – fato curioso – nada disso impede que essa música tenha seus momentos grandiloqüentes. Por sua dura visão do mundo, e pela atmosfera de introspecção que sua música e as vozes criam, talvez o ouvinte comum não se sinta bem ao escutá-la e, conseqüentemente, não a aprecie. Realmente em termos mais formais outros réquiens são melhores, mas apenas ele comunica diretamente e de forma tão patética o sentimento de miséria do mundo.

Bom, eis aqui uma pequena indicação comentada. Se não ouviu pelo menos alguma dessas músicas, que o leitor aproveite os Defuntos e faça-lhes uma pequena homenagem.

Friday, October 29, 2004

Macaquinho no bar

-- Garçom, pode me dar duas caipirinhas pra viagem?

Começou assim o macaquinho no bar ali na esquina da Presidente Vargas com a Santana. Todos riram e alguém disse, sem evitar a bebida saindo pelo nariz:

-- Que chique, o Seu Tadeu virou garçom!

O macaquinho novamente pediu duas caipirinhas. Seu Tadeu, sério, perguntou:

-- Qual tua idade?

-- Três.

-- Comé que vô vender caipirinha prum macaquinho de três anos?

-- Não é pra mim, é pro meu pai e pra minha mãe.

-- Por causa de quê eles num vêm comprá ?

-- Mamãe tá ocupada e papai também.

-- Tão fazendo o quê?

Nesse momento mais um pessoal começou a rir. Dona Maria, a velha que sempre compra cigarro, resolveu se intrometer:

-- Dá logo a caipirinha pro macaquinho, ô Seu Tadeu! Qual é teu nome?

-- Joãozinho Dengoso.

-- Dá logo pro Joãozinho Dengoso o diacho das caipirinhas, ô Seu Tadeu. Tadinho do rapaz.

O bar entrou em confusão. Todo mundo falava e ria ao mesmo tempo. A gritaria era tão grande que uma patrulinha que passava na rua Santana parou ali em frente ao boteco. Saíram duas escopetas... Não, dois policiais armados com escopetas. Um deles perguntou:

-- Que que tá havendo?

-- O macaquinho quer comprar duas caipirinhas, seu guarda, mas ele tem só três anos. – resmungou Seu Tadeu.

-- Ô macaquinho, tu num pode tá bebendo não. Hoje é dia de eleição.

-- Acabou esse negócio, cara... Geral tá podendo beber. – disse seu colega.

-- Ah é, eu tinha esquecido. Libera aê a bebida pro companheiro aê que tá tudo certo.

Meio contrariado, Seu Tadeu acabou por atender o macaquinho. Deu as duas caipirinhas para ele em copo de plástico e tampou. O macaquinho voltou pra casa todo alegre.

Os dois policiais já estavam entrando na patrulinha quando um deles parou e começou a refletir algo. De qualquer modo, entrou. Já com a patrulinha em movimento, o colega perguntou:

-- Aê, que que foi que tu ficou pensando antes de entrar no carro?

-- Fiquei bolado com um negócio. É que nunca vi neguinho vender caipirinha pra viagem. Aquele cara lá teve uma idéia manera.

-- A gente é que demo mole. Dava pra arrumar bebida pra gente na moral e tá aqui bebendo, tá entendendo?

-- Amanhã a gente passa lá de novo.

-- Falou.

Saturday, October 23, 2004

Ditadura e divórcio

Admiro-me que não tenham feito ainda, que eu saiba, a aproximação entre dois fenômenos evidentemente semelhantes: a ditadura e o divórcio. Em ambos existe o mesmo oportunismo que pretende dar golpes na vida, e a mesma recusa de pacto ou juramento. Em ambos, a mesma miopia de memória; a mesma miragem do sucesso imediato.

O divórcio é o maquiavelismo a domicílio. A ditadura é o divórcio em política. Corre nos dois fenômenos, como idêntica seiva, a coleante traição diante dos obstáculos, isto é, a esperteza. Em política, está maduro (ou podre) para a ditadura o povo convencido de que um tratado ou uma constituição são meros farrapos de papel, sendo admissível somente a conveniência ou a etapa. Na vida familiar, a esperteza, que pretende se ajustar aos minutos que passam, conduz à falência do matrimônio. É dura a vida civil, com suas leis, seus úteis embaraços, e seus inevitáveis sacrifícios; mas muito mais dura é a vida conjugal. O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os vermes da astúcia que pedem alimento de meia em meia hora. É uma vida de longo alcance, de incalculável alcance. Uma artilharia pesada que precisa da instalação muito firme para atirar obuzes por cima dos séculos.


Admiro-me pois que essa aproximação, tão clara a meu ver, não tenha sido tentada. Mas, como já tenho visto muita contradição neste vale de lágrimas, não me espanta em demasia que muitos ardorosos democratas, que fulminam o maquiavismo político em alto jornalismo, defendam ao mesmo tempo o maquiavelismo caseiro. Não me espanto porque, antes disso, eu vi os ardorosos defensores do casamento sacramental e dos costumes, os pilares da Igreja, defenderem a ditadura, e respirarem, como um ar de delícias, a atmosfera dos decretos-leis.

(Trecho de Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção, de 1946, ed. Agir, p.173-4. Este livro é uma espécie de introdução ao G.K. Chesterton. Foi através dele que tomei conhecimento de um livro muito interessante de Chesterton, Barbarism of Berlin. Basicamente, ele diz o que eu escrevi em parte no texto anterior: que a palavra é o fundamento da civilização. O livro foi publicado, se não me engano, em 1915, durante a Grande Guerra. Ora, Berlim era composta por barbáros justamente pelo fato de quebrar juramentos solenes. Eles eram o que Chesterton chamava de "barbarismo negativo", que era o impulso de destruição dos pilares da civilização por bárbaros. Era o Huno, que se comprazia em devastar Roma. Este era o Alemão, e não sei se fará sentido a comparação, mas o próprio Nietszche, muitos anos antes, já dizia que a Alemanha era composta por bárbaros, mas no sentido de gente inculta. O "barbarismo positivo", pelo contrário, procura evoluir com a civilização. É como um godo que pretende trabalhar junto a Roma em prol de ambos. O Russo entraria neste caso, pois procuraria se integrar à Europa.)

Thursday, October 21, 2004

Divórcio e barbárie

Provavelmente o leitor acharia muito estranho se um filho fosse ao cartório para anular sua união com os pais ou vice-versa. Isso não seria menos esquisito se ocorresse com nossos irmãos, tios, primos, avós, etc. Mas é bem possível que o leitor não estranhe tanto se um marido insatisfeito fosse ao mesmo cartório para anular suas ligações com a esposa. Estamos tão habituados com a idéia de divórcio que ela se tornou algo tão natural quanto o Corcovado.

O que é o casamento? É a união indissolúvel entre marido e mulher, visando constituição de família. Atentemos para a palavra “indissolúvel”: se é assim, então onde fica o divórcio? Não fica; aliás pode até ficar no caso do casamento civil. Pois o Estado até matrimônios gere, como se não bastasse sugar nossos míseros centavos a cada mês com dezenas de impostos, obrigatoriedade do voto, do serviço militar... Até violar seus cidadãos quando mortos, sob o pomposo nome de “autopsia”, ele quer. Só que, em se tratando de casamento, o Estado não supre uma peculiaridade desta união. É que a Igreja une sob os auspícios de um dom sobrenatural, criando no instante dos votos um parentesco que não foi o de nascimento. Assim, por causa desse dom, os nubentes vêem suas famílias crescer: surge uma segunda mãe, um segundo pai, um segundo primo, um segundo avô etc. etc. Quando um casal se une desse modo, pode-se dizer que cada um se casa com a família do outro. E o resultado dessa união, realmente espantosa, é a junção de várias pessoas em uma só: de um pouco de sangue de cada família surge uma nova criaturazinha, que é conclusão concreta (melhor: carnal) dessa união. Eis que a ligação de sangue sobrenatural se desdobrou e criou uma ligação carnal em forma de pessoa. A palavra empenhada ao pé do altar se fez carne: é o nascimento da criança.

Se pai e mãe são tão parentes quanto primo e tia, como é possível haver o divórcio? Só pode ficar no casamento civil, que une sem unir. Não quero dizer com isso que os anjos não desceram dos céus e transformaram a união de duas pessoas no cartório no principal acontecimento do universo naquele exato instante. E se várias pessoas se casam ao mesmo tempo, então por um mistério também cada uma será o centro do universo. Porém o que eu quero dizer é que o Estado não tem o poder sobrenatural para sacralizar esta união. Tenho um certo receio de usar a palavra “conveniência” para explicar isso, pois dá margem a equívocos. Se o leitor tiver boa vontade, entenderá que com isso digo que o casamento em cartório acaba se baseando em formalidade jurídica, um assinar de papéis, embora um assinar de papéis todo especial. Mas é apenas ali no papel que está a salvaguarda do casamento. E sabemos como papéis são frágeis.

Há um agravante nesta já insólita situação, que não sei dizer se filosoficamente é causa do movimento ou final disso tudo. É o problema da palavra empenhada. Antigamente, quando quase ninguém sabia escrever, só alguém muito original consideraria indispensável um contrato por escrito e assinado para empenhar um juramento. Em épocas muito remotas, as pessoas juravam nas e pelas coisas mais insólitas: água, vinho, fogo... Até os coitados dos santos eram empenhados, ou as mães. Coitados de ambos! Esses hábitos até hoje podem ser vistos na nossa própria sociedade, ainda que tenham perdido a freqüência e importância original. Em pleno século XX, meu avô, segundo lendas, quando empenhava a palavra, dizia também que jurava pelo seu bigode, pois aquilo era a prova de ele ser um homem, e homens não quebram a palavra. Bigode! Não sei dizer se ele se viu muitas vezes com o bigode aparado; em todo caso, é um exemplo engraçado de como essas coisas permaneceram até os dias de hoje.

Devemos acrescentar na nossa breve história dos juramentos que eles sempre tinham um caráter sagrado. Ninguém escolhia a água por ela ser uma substância intrigante ou o vinho porque o juramento era coisa de gente bêbada. Jurava-se sob a água porque muitos acreditavam que no princípio tudo era água, sendo as coisas agora compostas substancialmente por ela – era a substância mais importante que existia. Ou o fogo, segundo outros. Quanto ao vinho, não sei dizer o motivo, mas imagino que tenha alguma relação com Baco ou outro deus. Além disso, não podemos esquecer que a palavra, por si só, é um atributo que os deuses gentilmente nos emprestaram. Se atentássemos para a sua importância, pensaríamos cinco, dez vezes antes de usá-la. Então o juramento é (ou era, se formos muito pessimistas) algo muito especial e até misterioso, sagrado quanto à sua natureza. Quebrar uma promessa, um pacto, só gente impiedosa, só gente completamente afastada da civilização, só teria coragem um bárbaro.

E o que seria o divórcio senão uma quebra de um juramento? Para piorar a situação, um dos mais importantes juramentos que duas pessoas podem fazer? Não é verdade que apenas os bárbaros não empenham seriamente a palavra? Pois aí está, leitor: nós somos incivilizados, impiedosos, pois em uma quantidade absurda de casos, além de não pensarmos no absurdo que é o desligamento de um laço de parentesco, não levamos a sério nossos próprios votos. Não medimos as conseqüências da nossa própria palavra empenhada e não hesitamos em quebrá-la quando melhor nos convém. Elegemos a eficiência como o mais soberbo princípio e, a partir daí, vivemos na mais medíocre prática de conveniências, de egoísmos e do amor-próprio. Esse problema é tão grave que chega a ameaçar uma sociedade. Se do ponto de vista individual cria inimizades, de um ponto de vista mais geral o juramento se torna uma prática vazia. A sociedade acaba aceitando o império universal da desconfiança. Por que não poderia alguém se “divorciar” da sociedade e, por razões de conveniência, realizar um golpe de Estado e rasgar a Constituição? E o que impediria, em um mundo assim, de um país quebrar tratados cuja tinta que serviu para sua assinatura mal secara? É o mundo das traições, das apunhaladas, dos advogados e promotores em número absurdo, do medo, da desconfiança e do descrédito. É a volta a quatro patas a um estado primitivo, onde tudo parece conspirar contra nós.

Wednesday, October 20, 2004

Pátria Perdida

Que estranha simpatia repentina
Destino à minha pátria ferida!
Nenhum momento de minha vida
Julguei que meu peito lhe arderia
Por afronta ao grande pavilhão,
Muitas vezes por mim mal julgado.

Como violasse belo quinhão,
Injúria tão grave não deverá
Ter clemências para vil culpado:
Maldito traidor, que sangra a pátria
Covardemente; de si brotará
Peste, que com fogo só se cura.

Mas nesta terra secou a Razão
Bela, há apenas mui torpeza pura.
E choro com o céu estrelado
Por tão-somente ser triste pária
D’ Eniálio, sem matar o Dragão,
Só me calando, amargurado.

Saturday, October 16, 2004

O Mistério do gatinho e do velho do espeto de pau

O gatinho perambulava como sempre pelas ruas. Achava muito chato andar um pouco para encontrar terra e por lá depositar seu cocozinho, mas era uma questão de etiqueta. O xixi, bem, o xixi ele fazia em qualquer cantinho. Quer dizer, não em qualquer lugar, só em certos cantinhos, de preferência desertos, pois se alguém chegasse perto ele travava. Se bem que uma única vez, ali na Rua Riachuelo, bem de noitinha, recebendo afagos de rapaz carinhoso, ali mesmo ele não resistiu e fez xixi, para comoção do rapaz carinhoso. Se pudesse, o gatinho riria, mas apenas soltou um miau.

Era bonzinho. Todos simpatizavam com ele. Menos o velho sujo do espeto de pau. Este cidadão, se é que poderíamos chamar assim um sujeito de tão má catadura e de hábitos tão peçonhentos, era um flagelo. Não apenas para o gatinho, é importante dizer. Qualquer criatura viva que cruzasse seu caminho teria sérias chances de virar um cozido, exceto os homens, menos por pudores morais que pela dificuldade de prender alguém para comê-lo. Mas nosso bichano era experto, malgrado sua pequena idade e aparência frágil, nas artes da sobrevivência das ruas. Pois, e aqui cabe uma digressão, homens e bichos já nascem sabendo o mínimo para sobreviver, sendo esta sabedoria apenas aprimorada com a prática ou soterrada pelo descaso.

O homem terrível do espeto de pau procurava de todas as maneiras alcançar seu objetivo, que nada mais era que absorver a vida. E caçava, caçava com prazer. Só nosso bichano escapava de seu ódio.

Este estranho espetáculo se repetia como um rondó. Um obsevador atento, entretanto, perceberia que, de um modo um tanto imperceptível, o gatinho mais e mais se aprimorava em sua elegância, maior valor dava em fazer seu cocozinho na terra e seu xixi no cantinho deserto, enquanto o homem do espeto de pau mais obcecado ficava com a idéia de sugar a vida de todas as criaturas que cruzassem seu caminho.

E então, num acontecimento testemunhado por aquele moço carinhoso que provocou o xixi involuntário do gatinho, chegou-se ao clímax daquela tendência que apenas um observador atento saberia explicar. Foi numa noite de domingo, muito parecida com aquela outra de tempos passados, e também na Riachuelo. O moço carinhoso reconhecera o gatinho, já mais crescidinho, deitado, observando os carros. E já se aproximava dele quando apareceu, do nada, aquele homem malvado com seu espeto de pau. Este sujeito vinha literalmente rosnando e babando, de olhos arregalados, como um louco furioso. O moço se assustou – a rua estava deserta, não havia ninguém que pudesse lhe socorrer. E já se preparava para correr quando o gatinho se ergueu e, fitando aquele maldito ser, surpreendentemente exclamou:

– Claudite jam rivos, pueri; sat prata biberunt; corruptio optima pessima – disse, com voz de barítono.

E ribombou um trovão, sendo que o céu não parecia mal-humorado. O moço ficou petrificado. A criatura vil começou a tremer, literalmente soltou um uivo, babou mais um pouco e desatou a fugir, desesperado, para nunca mais voltar.

Nosso amigo carinhoso não compreendia nada daquilo. Não sabia se era mais difícil aceitar um gato falando latim com voz de barítono ou uma pessoa de tão maligno feitio ser tão fragorosamente derrotada. Aquilo era demais para ele. Foi aí que o gato novamente falou, e de novo com voz de barítono:

-- A vaincre sans péril, on triomphe sans glorie.

Tal coisa não era possível. O moço não aguentou e desmaiou, não sem antes ver o gatinho fazendo algum tipo de saudação com a patinha e indo embora. Só acordou quando sentiu as singelas gotículas de chuva que lavavam seu corpo e a Rua Riachuelo naquele instante. Foi para casa meditar sobre o assunto, porém não encontrou resposta alguma. Passou o resto de sua caridosa existência a procurar o gatinho ou o homem do espeto de pau, mas jamais os encontrou. Só quando mais velho, bem mais velho, suspeitou encontrar a chave para tão estranho enigma. Mas nunca teve certeza da resposta. Teve o pejo de manter a história apenas para seus botões.

Tuesday, October 12, 2004

Uma rápida formalidade e a revalorização da barriga

Peço humildemente perdão ao leitor. Minhas sucessivas trocas de casa são uma questão de necessidade. Isto que dá quando um homem não é senhor de si mesmo. Conto com a sua boa vontade. Oh sim, espero que dessa vez o dia do meu Juízo demore um pouco mais para acontecer. E se você vier a gentilmente postar um comentário, que entre como "anônimo" mas no fim escreva seu nome. É mais fácil e mais educado. Agora vejamos um outro assunto.

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Um problema que ocupou minha querida cachola foi a relação entre o sentimento e o coração. Não sei quanto ao leitor, mas para mim este é um casal que não combina muito bem. Pois o que possui o coração para ser uma imagem dos nossos amores?

É um problema de simbologia. Ele, eu sei, é uma espécie de receptáculo. Através dele o sangue vai e volta enquanto nossas vidas curtas assim o permitirem. Daí que o coração pode ser visto como uma figura que representa a força da renovação ou revitalização necessárias para manter algo existindo, até porque ele é um órgão vital, até mais que o cérebro, num certo ponto de vista. Sem uma boa parte desse vigoroso trabalhador que jamais pensa, para alegria de todos nós, em fazer greve, simplesmente morreríamos. Por outro lado, conseguiríamos viver sem uma boa parte do cérebro.

Será neste sentido que o coração é enxergado como símbolo do amor? Será que este sentimento seria uma espécie de renovação nas nossas vidas? O amado que se distancia de nós, ainda que por brevíssimo tempo, seria tão terrível quanto o nosso coração desprovido de uma de suas partes? Não sei, leitor, mas se você souber, gostaria que me informasse.

Agora lembrei de duas coisas cuja junção e explicação são de responsabilidade inteiramente minha, seja que conseqüências tiverem. Em primeiro lugar, a figura, totalmente familiar ao leitor, do cupido. Não dizem que ele atira suas flechas em nossos corações? Não sei se desde os tempos que homens e mulheres pisaram pela primeira vez no mundo eles miravam o coração ou se isso é uma explicação moderna. Deixemos de lado esse problema e vejamos minha outra lembrança: num programa de tevê, disseram que, segundo Aristóteles, o órgão responsável pelos nossos pensamentos era... o coração! Vejam que idéia, aos nossos olhos, paradoxal: segundo nós, berço apenas das paixões; para Aristóteles, do pensamento. Admito que fiquei curioso em buscar algum livro que me esclarecesse se o Filósofo pensava assim mesmo (a imagem dele pensando com o coração é bela, se o leitor entender bem o que quero dizer com isso). O fato é que, juntando a imagem do cupido e da suposta hipótese aristotélica, imagino que a flecha acertando o coração seja a imagem de uma ação que "atrapalharia" o seu funcionamento natural. Em outras palavras, agiríamos não mais racionalmente, porém apaixonademente por quem nos tocou em nosso ponto mais sensível.

Esta minha hipótese, que assumo sua paternidade com todos os riscos, não é necessariamente oposta a da revitalização/renovação em todos os seus aspectos, mas é bastante diferente. Mas se uma e outra tentam buscar minhas graças e simpatias, digo o seguinte: não fico com nenhuma. Pois para mim, o lugar que mais fielmente representa a sensação da fuga do chão sob nossos pés (isto nada mais é que amor) se chama "barriga". Isto mesmo: barriga, para onde a comida vai e fica (aliás, vai, fica e vai de novo) por curta estadia. E por que justamente naquele lugar, que para muitos é motivo mais de vergonha que de qualquer coisa? Ora, porque sempre que temos uma sensação de surpresa, estranhamento, pavor, etc, etc, é lá que a coisa se manifesta. Daí a expressão "frio na barriga". O leitor tem que concordar que já sentiu literalmente isso, como eu também, se quisermos permanecer na raça dos homens. Existem também outras expressões que fazem alusões a certas partes do corpo e a sentimentos como "dor de cabeça", "dor no peito", "dor de cotovelo", além de outras sinônimas. Mas na minha opinião, nenhuma resume a essência de todas essas e outras como tudo que ocorre da barriga. E até lá sentimos dores, não nos esqueçamos.

Portanto, aqui estou elegendo nossa barriga como "rainha das emoções". E nisso, naturalmente, entrando o sentimento que abordei, que é o amor. E tal qual comida estragada, sabemos que fim lamentável um amor ruim tem. Ou como a fome que definha o corpo, que conseqüências funestas a não-presença de nossa amada (ou de seu amado, caso for leitora) nos traz. Deixemos o coração como símbolo apenas da revitalização, o que não é glória menor, ou dos trabalhos físicos pesados, que também têm sua participação na glória. Olhemos de um outro jeito para nosso próprio feliz umbigo.