Sunday, November 20, 2005

Fantástico programa de TV

E lá fui eu me sentar no sofá a fim de deixar o cérebro de molho, tarefa aliás realizada por mim com mais freqüência que a devida. Julguei que não havia nada melhor para tanto que assistir no sofá ao Fantástico, que há tempos sequer eu ouvia o nome.

Antes de continuar, peço licença para dar um exemplo sonoro de quão agradável é a TV, especialmente aos domingos. Hoje à tardinha, enquanto minha mãe se suicidava mentalmente assistindo ao Domingo Legal, eu estava no quarto lendo, depois de ter passado quase mil anos limpando uma prateleira e os livros que estavam sobre ela. Enquanto eu me matava para entender o argumento de Leibniz acerca da existência de Deus, de repente comecei a escutar algo vindo da sala mais ou menos assim:

- ... e não é bom dançar funk com calcinha porque...

Concentração, concentração, por que tu me abandonaste? A partir daí havia duas pessoas perto de mim disputando minha atenção: de um lado, o filósofo, do outro, uma mulher dizendo alguma coisa sobre o problema de dançar funk com calcinha. De certa maneira, se apresentava uma demonstração da hipótese da divisão radical entre corpo e alma, pois meus sentidos escutavam o canto da sereia safada enquanto minha mente buscava feito louca onde é que minha concentração se escondera. Às vezes parece que ter um espírito neste mundo de justiça imperfeita é equivalente a estudar Metafísica na Marquês de Sapucaí. Para minha sorte, a minha mente chamou a polícia e a baderna terminou: a concentração voltou ainda a tempo e talvez lá no céu o sábio alemão expressou contentamento.

Voltemos ao sofá, onde eu me preparava preguiçosamente para a próxima abobrinha da TV. No Fantástico passava uma reportagem sobre fé, com uns sujeitos batendo palmas enquanto outros fumavam charutos. Reza o provérbio que não se deve bater palmas para maluco dançar, mas acho que aquelas supostas religiões estavam na (ou procediam da) superfície da Lua, portanto a quilômetros de distância do senso comum. Mostraram uns quatro lugares, cheios de gente no todo e em parte estranhas: em um, alguém com chapéu de boiadeiro dançava como o Tiririca, enquanto explicavam que ali descera um espírito de um capiau ("Uma figura muito humana", asseverava um estudioso da tal religião); em outro, uma mulher gordinha fumava charutão e dava conselhos em voz mole, parecendo sofrer derrame enquanto isso, embora o restante das pessoas ali presentes julgasse que tal efeito era apenas emanação de uma divindade qualquer; no seguinte, um homem vestido de Mandrake dizia estar recebendo um tal de Preto Velho, que segundo os entendidos era um velho escravo muito judiado e que aparece hoje em dia para dar sábios conselhos (que, ao que parece, de nada serviram para si mesmo, já que comeu no passado o pão que o diabo amassou); por último, um camarada recebia, segundo a voz em off, o espírito de uma princesa turca (havia até um retrato horroroso seu na casa; parecia que eu mesmo o havia pintado). Acho que essas coisas todas eram candomblé, mas não lembro. Só sei que quem participava achava tudo aquilo muito supimpa.

Boiadeiro, Preto Velho, espírito tendo derrame e princesa turca: exceto essa última, por que não um físico, um filósofo, um rei francês, um diplomata, um legionário, um esquimó, um compositor? Eu assistia àquilo tudo enquanto dava graças aos céus por jamais ter servido, ao menos até o instante que digito essas palavras barrocas, como hospedeiro de entidades. Com certeza, assim que ela retornasse para o buraco de onde saiu, eu correria direto para a igreja mais próxima: se já não bastava ser eu mesmo, quanto mais me tornar um espírito mais ridículo ainda! Que vergonha, santo Deus! Imagine, ainda por cima, ter de aturar o supremo mau-gosto desses espíritos, que só sabem beber cachaça, fumar charuto, se vestir do jeito mais brega possível e dançar ridiculamente? E isso quando homem não vira princesa turca! Creio que o senso do ridículo nos joga automaticamente nos braços de qualquer uma das grandes tradições monoteístas, ou ficamos ateus se ele acaso não estiver muito evidente.

Apareceu, mais para o fim da reportagem, alguém que era estudioso de religiões afro-brasileiras. Não lembro o que ele disse, até porque fiquei pensando sobre as razões que fizeram com que aquele sujeito estudasse uma coisa dessas. É equivalente a alguém que, entrando na faculdade de Medicina, resolvesse estudar a sujeira que fica atrás das unhas. Ademais, é preciso uma mistura de preguiça e falta de senso de proporção para se dedicar unicamente a isso, deixando de lado as riquezas das grandes tradições. Dou uma taça de sorvete para quem adivinhar o que um estudioso fanfarrão escolheria: se matar para saber o significado da Santíssima Trindade ou a moleza de conhecer o suposto mistério do espírito do boiadeiro?

Logo em seguida, e eu já estava em frente ao computador imaginando o que escrever para este bendito blog, em meu quarto entrou sem nenhuma cerimônia alguma coisa sobre Zumbi e Dia da Consciência Negra, ambos vindos da TV sem-educação da sala. Parece anedota inspirada na Criação: "E até novembro não havia nada, quando de repente, pluft!, e os pretos passaram a ter consciência mediante canetada do governo supremo." É uma pena que em trezentos e sessenta e cinco dias os pretos tenham noção de si mesmos apenas por pouco tempo, tendo de esperar um ano até sua próxima visita, mas não sou eu quem provocará os ilustres senhores membros de movimentos black dizendo que a tal "consciência negra" ou é muito pobre ou muito ocupada, pois os visita só de tempos em tempos: eles devem saber o que fazem e o que dizem. Aliás, que significa "consciência negra"? Esse termo é horrível. Mas que é esse cometa que surge só de ano em ano? É gostar de tambor, de Zumbi, de presepada africana? Enquanto desejam que os pretos daqui adorem essas bobagens, os de lá de fora, seja na África, seja nos EUA, querem mais é se islamizarem ou se cristianizarem. Se eu acreditasse que a história é progresso - meu pessimismo não deixa -, eu diria que os brasileiros black estão na contramão da história. Ou na mão da história do Haiti. Naquele lugar, a maravilhosa cultura dos antigos escravos desabrochou de tal modo que lá é o que é, e aliás não é à toa.

E Zumbi? Eu nem sei se aquele sujeito sabia falar português ou fazer contas. Sabe-se lá Deus o que haveria caso o conhecêssemos pessoalmente. Como alguém que só participava da cor e essência de humanidade dos brasileiros black pode ser reverenciado como símbolo nacional? Por que não escolher José do Patrocínio, Machado de Assis ou Lima Barreto como exemplos da força de pretos e mestiços? Só uma sílaba do nome do Machado de Assis vale mais para a nação que mil rebeliões de Zumbi dos Palmares.

Quer saber de uma coisa? Da próxima vez que eu resolver colocar meu cérebro de molho, eu vou ficar aqui na Internet mesmo ou folhear um livro só de figuras. Melhor que assistir àquelas coisas.

Thursday, November 17, 2005

Dominando o ímpeto de publicar

Olá, bom leitor. Desculpe pela minha demora. Todavia, por mais estranho que possa parecer, quem escreve em blogs é gente, e, como qualquer ser humano que se preza, o garrancheador de blogs gosta de tirar umas férias de vez em quando. Mas férias no sentido de publicações. Estou bem longe de deixar de escrever: ao contrário, basicamente todo dia dou um garrancheio aqui no meu computador, um outro ali no meu caderno, sem contar os textos que ficam guardados nas inúmeras gavetas de meu cérebro bizarro. Ah, que ímpeto de escrever! É desse jeito que geralmente emprego minha liberdade.

Se o ímpeto de escrever é quase incontrolável, ao menos o de publicar é domesticável.

E meus textos estavam mal-acostumados. Nem entravam em forma e já se exibiam. Vou deixá-los por mais essa semana fazendo ginástica, pois quero que fiquem mais saudáveis, fortes e atraentes. Melhor dizendo: mais verdadeiros.

Na próxima semana deixarei que eles venham brincar por aqui, pois não sou um pai muito controlador, quiçá relapso, mais no fundo um pai amoroso. Mas de nada adiantará aos meus filhinhos, tão dependentes de mim, se papai não dormir direitinho. Portanto vou me deitar. Bom dia, leitor.