Saturday, December 04, 2004

A comovovente história do gordo que queria ser ator mas que não passava de uma máquina de lavar

O gordo se olhou no espelho e, com as mãos no rosto, exclamou:

-- Pelos deuses, pelos deuses... Por que não consigo ser ator de verdade? -- e logo em seguida passou o dedo indicador no umbigo só para sentir cosquinha e rir de si mesmo.

Para o (seu) cúmulo, o máximo que conseguira até então foi atuar em comerciais, porém sempre como um objeto inanimado. Aquilo o frustrava demais. Sua maior "fala" foi quando interpretou uma máquina de lavar, produzindo, por uns dez minutos (quatro segundos na edição) um barulho parecido com vvvvvvrrrrruuummmmm, chop, chop, chop, sendo inclusive aplaudido pela crítica. Continuava figura anônima, todavia, mas seus amigos sempre pediam para que interpretasse novamente a máquina de lavar, proposta que muito gentilmente declinava.

O gordo já estava cansado daquilo tudo. "Posso ser mais", pensava ele com inacreditável confiança em si mesmo, "bem mais que uma maldita máquina de lavar". Por um lado, isso até era verdade: já interpretara uma mesa. Mas ele queria ser mais que apenas um móvel ou um eletrodoméstico.

E o tempo lhe foi generoso, dando-lhe um pequeno papel numa sitcom (o leitor há de convir que não importa saber em qual programa o gordo foi atuar; o que importa é que diria enfim alguma coisa que não só onomatopéias). Logo no primeiro dia de filmagens, porém, ocorreu um bizarro incidente: enquanto ele, num canto, meditava acerca de sua participação, alguém lhe arremessou uma roupa encardida. O gordo riu, julgando ser aquilo uma espécie de trote; mas na segunda vez, terceira e dali por diante, sempre que ele estava no set, num cantinho, as pessoas continuavam a lhe arremessar roupas encardidas. Isso sem contar as vezes em que no meio da gravação o diretor, com um charuto no canto da boca, apontava para ele e berrava:

-- De novo largaram esse bagulho no meio do set! Ô produção, faz o favor de tirar isso daí! -- e lá ia o gordo explicar que o "bagulho" era ele próprio, o que levava sempre o diretor a dizer "chucrute, mil perdões!"

A situação foi aos poucos se tornando intolerável. Os atores o ignoravam, alegando que não viam ninguém à sua frente, exceto uma mesa, um pequeno armário ou, como de praxe, uma máquina de lavar. E, enfim, o diretor foi lhe fazer um pedido:

-- Olha, você até que está bem no papel, mas seria melhor ainda se interpretasse, sei lá, uma máquina de lavar... Que tal uma máquina de lavar, hein?

Ao ouvir tal proposta, o gordo perdeu o controle de si mesmo e, parecido com o uso habitual nos tempos dos Patriarcas de Israel, rasgou sua própria camisa, entre insultos dirigidos ao diretor -- insultos os quais deixo a cargo da imaginação pérfida do leitor. Atirou-se ao chão, rolando de um lado para o outro, ao mesmo tempo em que não parava de chorar.

O diretor, comovido, começou a lhe falar de modo suave:

-- Meu amigo, você tem de entender que não dá para se revoltar contra aquilo que se é. Você nasceu com um talento que ninguém tem. Nunca vi uma pessoa que se passasse tão bem por uma máquina de lavar.

O gordo se acalmava. Ergueu-se pesadamente, com o cabelo desalinhado, pança e rosto meio sujos, sentou-se e apenas soluçava. Então o diretor retirou do bolso dois charutos, oferecendo um ao triste homem, que muito gentilmente declinou. Tratou de acender o seu e, sorrindo, com uma mão no ombro do infeliz, continuou:

-- Você nasceu com um dom! Olha, para você ter idéia, juro por Deus que se eu estivesse distraído agorinha, agorinha, jogaria minha maldita cueca que está para lavar na tua cabeça! Você não faz idéia do que tem, não faz idéia, não faz...

-- Diretor, respondeu o gordo, obrigado, muito mesmo!

-- Oh, gordo...

-- Oh, diretor!

Ambos se abraçaram, emocionadíssimos, e só não se beijaram porque semelhante ato repugnava-lhes a natureza. Alguns que passavam perto daquela cena comovedora estranharam o fato de o diretor estar falando aparentemente com um armário, abraçando-o e chorando. "Já vi que hoje será um daqueles dias", pensou alguém.

E assim, investindo em seu próprio talento e com o auxílio do diretor, o gordo decolou em sua carreira. Tal foi seu sucesso que no Oscar chegaram a inventar a categoria melhor ator/atriz parecido com um móvel e/ou eletrodoméstico. Sylvester Stallone e Tom Cruise ganharam, é verdade, em certas ocasiões. Mas o gordo era quase imbatível, levando muitas estatuetas para sua luxuosa mansão, alcançando glória e opulência. E viveu em felicidade até o fim de seus dias.

Friday, December 03, 2004

Bravo mundo

Joana era uma dessas pessoas que, segundo alguns, é conscientizada. Lê demais, e tudo que chega em suas mãos ela devora em dois, três dias de leitura.

É uma moça jovem, de futuro promissor na nação. Além do mais, talvez por sua postura conscientizada, ela é, segundo outros, acima de tudo lésbica. Sim, lésbica über alles. E por sua tendência em criar discussões, ela sempre foi, quanto a isto, uma pessoa exemplar – exemplar em buscar todo e qualquer tipo de argumento para defender sua causa.

Joana era, por isso mesmo, uma pessoa bastante peculiar. Não lhe interessava se nas suas discussões ela se batia contra dois mil anos de tradição cristã, ou mais de três mil de judaica, ou toda a filosofia grega, em suma, tudo o que constitui a razão de ser do Ocidente. Não, ela nem pensava em nada disso, preferia antes arremessar todo este legado na lata do lixo que ao menos cogitar acerca de suas paixões irracionais corpóreas. Pois tudo se resume a apenas essa dicotomia, segundo a mente de Joana: todos os escritos dos Santos Padres, acrescentados aos de muitos papas, filósofos e ensaístas, que no total dariam uma quantidade de páginas tão volumosa que apenas em muitas vidas alguém obteria seu pleno conhecimento, contra seu discurso pela liberdade e sua vontade e seu empenho em se fazer aceita – e quem ela julgava participar de sua mesma condição, ainda que às custas deste mesmo legado.

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Renato era praticante da poligamia. Considerava-se também, sob muitos aspectos, bastante inteligente: afinal de contas, lia sem parar, vinha de família abastada – conquanto ele não fosse, é verdade, uma pessoa esnobe – e já se acostumara a esmagar aquilo que ele próprio chamava de “mediocridade reinante”, isto é, refutar de trás para frente e de frente para trás todo e qualquer tipo de argumento que fosse contrário ao seu peculiar estilo de vida.

Era uma pessoa agradável, simpática e gostava muito de escrever, já tendo publicado, com menos de trinta anos, dois romances, ambos sobre os problemas que a monogamia proporciona à nossa felicidade (melhor seria dizer “à dele”). Foi bem recebido pela crítica, e de fato era muito bem escrito e argumentado. Mas ele caía no mesmo problema que Joana: por trás de todo seu talento ele buscava no fundo se justificar e a todos aqueles que praticavam o que ele próprio praticava às custas de todo um mar de gênios que, desde Moisés até nossos dias, defendem a monogamia. Na verdade, o ataque deste nosso jovem talento, que começava apenas neste pequeno aspecto, isto é, na questão do amor livre, aos poucos se alastrava para um ataque à Bíblia, à filosofia, à sociedade e tudo o que ele considerava como oposto à liberdade (melhor seria dizer “à sua liberdade”). De repente, ele se tornara não apenas um apologista de uma pretensa liberdade, mas um verdadeiro carrasco do tal “legado judaico-cristão”. “Tradição, dizia Renato, nada mais é que máscara e hipocrisia”.

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Por último, Tereza. Ela é mais uma jovem talentosa – possui apenas 21 anos. Tão jovem, ela é bastante confiante em si mesma, a ponto de dizer que nunca fez algo que se arrependesse. Curiosa opinião! Além do mais, ela é dada a discussões, como Joana. Mas – outra coisa curiosa – ela buscava sempre julgar pessoas e acontecimentos segundo os motivos mais licenciosos possíveis. Por exemplo, se alguém fizesse algo bom, na verdade havia algo de podre por trás. Daí que ela não podia conceber Cristo, que morreu na cruz para apenas nos salvar. Muito menos, ela mesma dizia, era possível levar a sério a hipótese de alguém ir à guerra por razões de honra, como é o caso atual dos EUA.

Tereza não podia conceber que no mundo há gente realmente idônea, ela sempre via algo por trás. Era com verdadeiro prazer, quase sádico, que ela gostava de desmascarar o que chamava de “pseudo-heróis e fatos deturpados”. Ela, Tereza, com seus 21 anos, parecia ter sido escolhida por Deus para fazer revelações ao mundo: parecia até mesmo que o mundo esperou quase cinco mil anos para que ela surgisse e o livrasse da imbecilidade e do erro. Provavelmente ela estranharia essa opinião minha, afinal de contas, segundo ela mesma, nenhuma criatura razoavelmente inteligente pode mais acreditar em Deus.