O que eu direi é um pouco complicado para explicar, mas farei um esforço para me fazer compreender. Vou usar um exemplo antes de ir para a explicação propriamente dita.
Todo mundo acha que é a coisa mais óbvia do mundo que a Terra não está no centro do universo, que ela se move, etc, etc. No entanto, suponho que sejam poucos os que pararam para olhar o céu a fim de compreender como, afinal de contas, é possível que a Terra nem esteja no centro do universo, nem esteja imóvel, etc, etc. Menor ainda é o número daqueles que já viram ou ouviram falar no pêndulo de Foucault, através do qual percebemos o movimento da Terra.
Aqui chamo a atenção do leitor para o seguinte: faça você mesmo o percurso intelectual para saber se você de fato sabe o que diz ou não. Por exemplo, em relação ao que eu disse sobre a posição da Terra no cosmo e seu movimento, procure você ler documentos relativos a isso e tente transformá-los numa autêntica experiência tua, como se fosse você quem estivesse trilhando as investigações alheias, bem aos poucos, até que você consiga se tornar inclusive um hábil defensor de dois ou mais pontos de vista sobre este mesmo assunto (no mínimo dois porque assim você poderá analisar dialeticamente o problema). Assim, ao ler alguma coisa de Ptolomeu, se houver um instante em que você, tomando conhecimento, por exemplo, da teoria dos epiciclos, tiver a impressão que não é possível que o universo não seja de outra forma, então parabéns: você adquiriu um novo patamar sobre o assunto e um legado civilizatório foi absorvido por ti. Bastará apenas que você prossiga teus estudos a fim de saber que mais foi dito sobre o problema.
Mas que algum desatento não entenda por isso que estou defendendo as opiniões pré-modernas cosmológicas. Não estou entrando no mérito de sua verdade ou não, mas sim da aquisição, por parte do leitor, de conhecimentos antigos, a ponto de conseguir transformar uma experiência de investigação de outros em sua própria. É claro que nada impede que o mesmo se dê com relação à cosmologia moderna, mas faço questão de ressaltar um exemplo antigo porque para ter surgido o último foi necessário o primeiro. Isso sem contar que há tesouros escondidos no passado, de modo que os antigos freqüentemente dão ótimas dicas para nossas investigações. Isto nada mais é que uma forma do leitor perceber o caminho das discussões, poupando-se de dizer algo em tom de novidade mas que há muito já disseram. Tal procedimento poupa trabalho, pois não precisamos redescobrir a todo instante a pólvora. Acreditem que, por mais absurdo que pareça, a história intelectual está repletíssima de re-re-re-redescobertas de pólvoras e afins, e a posterior caipiragem e concentração em torno do próprio umbigo que estes lamentáveis eventos soem trazer apenas demonstram ignorância da sabedoria passada.
Uma outra vantagem desse tipo de investigação é a capacidade de reconstruirmos o percurso intelectual de quem estamos estudando. No exemplo acima, você passa a raciocinar como Ptolomeu. O mais legal desta brincadeira é que, dependendo do grau de absorção dos processos de investigação do autor que você esteja estudando, você se transforma numa pequenina cópia dele, porém atualizada. Assim, é como, em relação à astronomia, você se tornasse um pequenino discípulo de Ptolomeu com os dados modernos da ciência. E este processo é mais interessante à medida que “empregamos” certos intelectuais notórios numa perspectiva moderna. Isso prova que, independente da época em que eles viveram, suas idéias são inesgotáveis, e muito ganha quem consegue estudá-las.
Na verdade, o que estou dizendo é o que deve ser o aprendizado. Primeiro, a reconstrução do percurso intelectual de dado autor; depois, o mesmo, só que com um número cada vez maior de autores e buscando obedecer, se possível, a sucessão cronológica dos debates até chegarmos aos nossos tempos. Esse tipo de procedimento não é novo: o velho Aristóteles assim agia metodicamente. Em todos os seus livros ele sempre busca compreender as idéias de um autor sobre o tema que está sendo investigado para, logo em seguida, montar uma história do problema tratado. Por exemplo, no livro primeiro da Metafísica, em dado momento ele busca investigar o que é causa. Então ele passa em revista uma série de filósofos a fim de saber o que eles disseram sobre o assunto. Na Física, na Política e em outros livros ele faz o mesmo com cada assunto tratado. Assim, se fizermos algo parecido com o modo de estudar aristotélico com cada uma das grandes questões, isto é, problemas tais como o que é a alma, a política, a liberdade, Deus, a física, etc, aos poucos teremos um conhecimento das discussões que houve sobre cada um desses grandes temas. Aliás, essa idéia foi amplamente defendida por Mortimer Adler em seu livro How to Read a Book (há duas traduções, A Arte de Ler, a mais antiga, e Como Ler um Livro, a mais recente, se bem que ouvi falar que a última não é muito boa).
No fundo, o que está por trás de tudo isso é a aquisição do patrimônio da tradição ocidental, que nos vem através de uma série de respostas a várias questões fundamentais. Você poderá não saber direito como resolvê-las, mas pelo menos saberá por quais caminhos deverá trilhar, não caindo em erros há muito cometidos, mais ou menos como aqueles diálogos platônicos onde não há uma resposta definitiva mas várias dicas de como achá-las.
Isso tudo tem uma série de conseqüências fantásticas, mas é um assunto para outra ocasião.
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