Saturday, September 03, 2005

Os sofrimentos do jovem boi

Dia 1

Querido diário,

Nesta fazenda é tudo muito calmo. Tão calmo e devagar que resolvi escrever um diário, pois eu precisava me distrair. Mas não sei o que dizer, porque nada demais acontece em minha vida. Fico apenas parado, comendo grama.

Não quero deixar de ressaltar a bondade do meu dono. Simplesmente me deixa aqui, no meu canto, comendo, conversando ou dormindo, em sua propriedade. Enquanto isso, briga com seus dois filhos por só quererem passar o dia todinho deitados na rede e vendo TV. Acho que ele gosta mais de mim que deles.

Dia 6

Hoje foi um dia aborrecido para mim. Suponho que todos os meus amigos tenham algum tipo de disfunção mental. Um deles, por exemplo, quando me aproximo e digo "olá!", começa então a babar. Algo me diz que ele sofreu lobotomia.

Ninguém supera, entretanto, um outro. Mal começa a caminhar, defeca. Poxa, isso é uma falta de higiene terrível, por causa de seres assim que a medicina tem tanto trabalho. No meu caso, sempre procuro um lugar reservado. E o pior de tudo é que ele finge que não é com ele quando chamo a atenção: simplesmente ignora minha bronca e vai embora. Nojentinho.

Por outro lado, há um muito, muito enjoado. Ele tem um problema de atenção, porque quando algo lhe desperta interesse, ele fica lá, paradinho, de boca aberta, olhos esbugalhados. Mas quando pergunto o que foi, ele não sabe me dizer nada. Só diz "Hmm".

Meus amigos, aliás, são muito monossilábicos.

Dia 20

Um dia fui beber água e notei uma vaquinha me observando. Fingi que não era comigo. Ela cochichou algo com as amigas e ficaram rindo. Sei que era de mim, afinal eu era o único que estava ali. Quer dizer, tinha um marreco, mas ele sempre estava por lá, nunca ninguém ligou pra ele, ainda que tente chamar a atenção de tudo que é jeito. Aliás, ele veio de uma família que passou por muitas tragédias. Seu pai e dois irmãos foram assassinados por alguns moleques. Seu cunhado teve uma brilhante vida terminada de modo trágico, nas bocas de um cão. Por causa disso que o marreco busca atenção e carinho. E ele tem uma visão da vida muito trágica (evidentemente), berrando que seremos todos traídos e mortos. Ora, é um absurdo imaginar que todos os nossos companheiros que foram viajar na verdade foram mortos. Além do que seria bastante estúpido o nosso dono gastar anos e dinheiro conosco para simplesmente nos matar. Mas nada convence o marreco.

A vaquinha é bonitinha. Boa cor, esbanja saúde, educada ao se abaixar para apanhar grama (diferentemente de certas sujeitinhas, que são muito atiradas para o meu gosto). Eu já a observava antes, porém discretamente, sem acreditar que pudéssemos ficar juntos. Mas agora, depois dela me olhar daquele jeito, sinto um arrepio no meu dorso. Tenho esperança agora.

A única coisa que me incomoda é quando os filho do dono vêm tirar seu leite. Por que ela fica ali parada, deixando aquelas mãos bobas fazerem o que querem? Será que vale a pena ter de passar por isso? Eu só não faço nada porque o dono já salvou minha vida, quando um cachorrão surgiu do nada e pulou em meu pescoço (ui, dói só de lembrar). Minha dívida, minha gratidão, tudo me impede - ainda que de modo meio envergonhado - de tomar uma atitude contra aquela sem-vergonhice danada que só.

Dia 23

Meu dono apareceu com um desconhecido. Falavam alguma coisa que não dava para escutar direito. Cheguei perto, como quem não quer nada, e ouvi o desconhecido me elogiando, dizendo que pareço ser alguém de muito valor. Meu dono sorriu orgulhoso, o que me deixou envaidecido. Resolvi então andar perto deles, querendo que a Mimosinha, a vaquinha musa de meus sonhos, visse tudo. Dei sorte, porque ela olhou para o lado e me viu todo garboso. O resto da conversa não escutei, tão enfeitiçado que estava com a vaquinha. Só deu para ouvir algo como "estamos acertados".

Que tudo se dane, quero viver só para ela!

Dia 29

Meu Deus, quero me matar! Estou apaixonado pela Mimosinha e querem me vender! Justamente quando a minha vida parecia tão maravilhosa, os pastos tão gostosos, meus amigos tão divertidos! Ai, que vida! que tormento!

Meus olhos arderam ao vê-la, sabendo que poderia ser a última vez. Ela permaneceu quieta, calada, com a graminha na boca, olhando perdidamente para o vazio. Sei que está por dentro muito triste. Mas nós, seres bovinos, temos um código de ética muito rígido para essas coisas. Temos de ter calma, acima de tudo. Somos criaturas civilizadas, pacíficas. Melhor morrer que matar. Porém assim não posso suportar!

Segundo mês, dia 4

Me despedi de todos, menos dela, porque era cedo demais quando me pegaram e ela dormia. Meu dono e o comprador foram unânimes em dizer que me achavam um pouco mais magro, de pior aparência que há dias atrás. Tive vontade de morder a manga de suas camisas, puxá-los para perto de mim e dizer: "Acaso vocês haveriam de gostar se fossem bruscamente separados de suas amadas? Já conheceram o amor?" No entanto, ao invés disso, num arroubo de desespero, atirei-me aos pés de meu antigo dono, murmurando coisas desencontradas. Pensaram que eu estava doente, mas depois de uma pequena discussão, assim mesmo me puseram num caminhão e me levaram embora.

Contudo, antes deixei, como lembrança, um poeminha nas patas de um pequeno e bondoso bezerrinho, filho de uma das amigas de minha musa e que costuma estar perto dos machos mais adultos a fim de aprender a pastar adequadamente. Implorei para que o mancebo o entregasse tão logo a Mimosinha acordasse. Seu conteúdo era o seguinte:

Muitas horas já pastei,
Muitas vezes já comi,
Mas jamais me cansarei
De tudo que sinto por ti.

Apenas te vendo pastando
Sentia meu peito pulando:
Não há mais bela vaquinha
Do que você, Mimosinha.

O destino porém me trocou o dono.
Longe de ti, sentirei abandono,
Porque irei para outra fazenda,

O coração sem qualquer remenda,
Pensando em que belo presentinho
Não seria um nosso bezerrinho!


Com que dor escrevo essas coisas. Acho até que não há mais razão de existir esse diário. Ou minha vida. Que dor, que traição!

Adeus, minha amada imortal, adeus!

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