Thursday, June 02, 2011

Ars poetica

Si uis me flere, dolendum est primum ipsi tibi. Eis a famosa sentença horaciana em sua Ars Poetica. Não tenho muito tempo para desenvolver um assunto tão rico, mas eu gostaria de dizer que é muito importante ao escritor possuir a capacidade aludida por Horácio: se quiser comover, é preciso que você primeiro se condoa. É necessário um patrimônio de experiências a fim de que nossas palavras signifiquem algo mais do que meros conceitos destituídos de concretude. Em certo sentido, é bom ser pedestre. Esse patrimônio não precisa advir de ferimentos em nossa própria carne: uma sensibilidade cultivada e uma boa capacidade imaginativa bastam. Para eu entender as degraças que se abateram sobre Cartago, Atenas ou Alemanha, não preciso ter eu mesmo compartilhado dos males de seus habitantes, a não ser imaginativamente, bastando para isso que sejam ativadas experiências correspondentes. Podemos aplicar ao assunto o que disse Eric Voegelin em certa passagem de A nova ciência da política:

O teórico talvez não precise ser a encarnação do próprio modelo de virtude, mas deve ao menos ser capaz de reproduzir imaginativamente as experiências que sua teoria busca explicar. (...) A teoria como explicação de certas experiências só é inteligível para aqueles em que a explicação desperte experiências paralelas como base empírica para testar a validade da teoria. Se a exposição teórica não chegar, pelo menos em parte, a ativar experiências correspondentes, dará sempre a impressão de ser conversa fiada ou poderá ser rejeitada como expressão irrelevante de opiniões subjetivas. O debate teórico só pode ser conduzido entre spoudaios, no sentido aristotélico [i.e, o homem maduro, aquele que realizou em grau máximo as potencialidades da natureza humana, que formou seu caráter na realização das virtudes intelectuais e éticas, o homem que, no auge de seu desenvolvimento, atinge o bios theoretikos]; a teoria não tem argumentos contra o homem que se sente, ou finge sentir-se, incapaz de reproduzir a experiência. (pp. 56-7)


Numa palavra, é preciso que se estabeleça entre o leitor e a história uma espécie de simpatia fundamental que ative nele experiências correspondentes ou que ele seja capaz de reproduzi-la ao menos imaginativamente. Lembremos da reação de Ulisses ao ouvir um aedo recitar na corte dos feácios a queda de Tróia. Tal processo não ocorre somente na literatura, mas também na música, na pintura e na fotografia. Um caso interessante é o da canção O Tod, wie bitter bist Du, de Brahms. Ela ativa imediatamente em nós um sentimento compreensível em última análise pela experiência da morte (note o leitor a ênfase na palavra bitter). O texto da canção foi extraído do capítulo 41 do Eclesiástico. Ele nos convida à meditação profunda, enquanto a música explora suas possibilidades dramáticas de forma inesquecível. Dor também pode ser ouvida -- se podemos dizer que ouvimos uma dor -- em Fili mi de Heinrich Schütz, em texto também bíblico, que conta a dor de Davi ao saber da morte de seu filho Absalão. Tanto num caso como no outro temos a música nos ajuda a reproduzir imaginativamente o sentimento dos textos.

O Tod, wie bitter bist Du



Fili mi

A imprensa mal divulgou a manifestação ocorrida em Brasília contra o PLC122

Trabalho numa empresa de monitoria de informação, o que me obriga a passar quase o dia inteiro assistindo a telejornais. Hoje não foi diferente, mas o que me chamou a atenção foi nenhum dos programas que monitoro ter sequer soltado uma nota sobre a manifestação havida em Brasília contra o PLC122, que reuniu cerca de 20 mil pessoas.

A maioria dos programas que vejo são da Record, tanto canal aberto como fechado. Pois bem, nem o Página 1, que vai ao ar das 10h às 11h, nem o Direto da Redação, das 14h30 às 15h30, nem o Hora News, que costuma ir das 16h40 às 17h30, nem o Jornal da Record, das 20h30 até por volta das 21h25, enfim, nenhum deles citou absolutamente nada. Monitoro também o Jornal da Globo News, edições das 16h e das 19h: nenhum deles também citou nada. Alguém poderia argumentar que o fato de a manifestação só ocorrer às 15h excluiria necessariamente da programação matutina informes a respeito, mas respondo dizendo que a afirmação é absurda, já que é mais do que comum a imprensa cobrir um evento até dias antes de ele ser realizado.

As únicas notícias que vi sobre gays foram acerca de agressões contra um homossexual e uma lésbica no Rio e sobre o TCU querer saber se houve desperdício de verbas públicas com a retirada do tal kit gay, ambas na Rede Record. Houve também uma sobre prostituição masculina e consumo de drogas -- amanhã será a vez dos travestis, numa série de reportagens sobre prostituição no Brasil.

É tão flagrante a completa falta de parcialidade da imprensa que, se bem me lembro, monitorei notícias em vários veículos sobre um abraço simbólico em torno do Planalto dado por militantes do movimento gay no dia em que estiverem em Brasília semana retrasada. Por que divulgaram essa notícia e se calaram sobre o que ocorreu nessa quarta? O mais estranho é que a Record, pelo que percebi ao monitorá-la, tem feito uma quantidade impressionante de comentários contra o tal kit gay. Não sei se o fato de o pastor Silas Malafaia ter encabeçado a manifestação em Brasília provocou algum ressentimento no pastor Edir Macedo, mas que isso tudo é estranho, é.

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Como citei a Rede Record, aproveitarei a oportunidade para fazer um testemunho da mendacidade cultural a que chegamos. Numa matéria sobre o acesso das classes baixas a colégios particulares, o Jornal da Record mostrou um grupo de crianças tocando um trecho da Ode à alegria, mas em off a jornalista afirma que executavam Vivaldi. Que o leitor testemunhe a ignorância jornalística.



Não duvido nada que as crianças sejam mais cultas que esses jornalistas.

Sobre o acesso das classes inferiores ao bom estudo, lembro de uma instituição que sempre primou pelo acesso de humildes aos níveis hierárquicos mais elevados: Igreja Católica. A título de exemplo, basta a lembrança de um filho de camponês chamado Hildebrando, homem do séc. XI, que entrou na história como papa Gregório VII e nos céus como santo.