Wednesday, August 31, 2005

Cultura no abismo

OBS: O texto a seguir foi publicado anteriormente na versão antiga d' "O Teocrata" alguns anos atrás. Eu até mudaria uma coisa ou outra mas, citando alguém de caráter tão duvidoso quanto Pôncio Pilatos, digo que o que escrevi, escrevi.

Mas que a tentação de retirar o nome de Tchaikovsky foi grande demais, ah, isso foi...

E só uma curiosidade: a parte onde digo "Creio de maneira clara e distinta" foi empolgação depois de ler Descartes. É uma expressão muito escrota, mas enfim, eu estava deslumbrado...


Uma das grandes idéias que se teve a respeito de expandir o acesso de música clássica ao povo foi a cobrança bastante generosa do ingresso do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro. Por apenas cinco reais, pode-se assistir, da galeria, obras de autores do porte de um Tchaikovsky, um Beethoven, um Schubert, entre muitos outros grandes. Frisas e camarotes também são bem acessíveis, já que custam vinte reais. Ainda é exceção à regra em matéria de valores de ingressos. Porém já é um começo.

Outra boa idéia nesse ponto é o programa muito simpático do senador Arthur da Távola. Passa na Rede Senado, em vários horários, e se chama sugestivamente Quem tem medo de música clássica?

Isso pode dar a impressão de que existe uma preocupação real em expandir a música erudita para a população. Infelizmente, tal coisa é bastante duvidosa. Eu mesmo, há alguns anos, deparei-me pela primeira vez com uma orquestra sinfônica ao vivo. Não me recordo bem qual era. Ela estava tocando a céu aberto na Cinelândia. Como eu estava andando sem rumo e fiquei surpreso e curioso em observar a orquestra, pus-me a apreciá-la. Lembro bastante das músicas que tocaram: partes de O Guarani, Aquarela do Brasil, e fecharam de forma triunfal com Assim Falou Zaratustra, de Strauss.

Estava totalmente fascinado, prazerosamente ouvindo a apresentação quando, findado o espetáculo gratuito, eis que o maestro resolveu falar. Para maior surpresa minha (e do público, irmanados comigo nessa impressão), ele noticiava que a respectiva apresentação havia sido motivada devido a pauperização da orquestra e, para alertar a população, resolveram fazer uma espécie de ato público, que poderia também ser revertido em ajuda financeira, mediante a aquisição de cds produzidos pelos músicos que ali estavam. Em outras palavras, estavam mendigando em praça pública.

Claro que todos estavam perplexos! Como seria possível não haver patrocínio para algo tão grandioso? No momento, eu não estava acompanhado pelo dinheiro, caso contrário teria feito minha doação idealista. Saí de lá entristecido.

Hoje, pensando nesse assunto e no esforço de gente que gostaria que todos ouvissem e gostassem de um Bach, tenho de concordar com a verdade, esta sempre disposta a nos constranger para o bem. Ela nos estapeia; mas como se pode querer que todos ajam para tal fim, mesmo que seja algo legítimo e benéfico, se os meios para alcançá-lo são inexistentes ou pouco claros e tênues o suficiente para que não se os perceba?

Creio de maneira clara e distinta no que se segue: podemos até mesmo obrigar e constranger um indivíduo a visualizar as coisas mais belas e notáveis. Contudo, de que isso adiantará se ele anteriormente não tiver obtido todos os pré-requisitos para que seu espírito se torne dócil o suficiente para participar daquilo que é belo? Seja lá quem tenha assistido ao filme Laranja Mecânica, de Kubrick, sabe do que falo. Alex, um psicótico, na prisão, resolveu ler a Bíblia para poder aparentar bom-comportamento e participar de um programa de reabilitação, a fim de se ver livre. Porém, sempre que pensava em Cristo, imaginava-se sendo o Seu carrasco, com todo prazer, e era isso que o motivava a devorar as Sagradas Escrituras...

Penso que a sensibilidade seja uma componente importante para a apreciação daquilo que se revela belo. Não depende, para qualquer cidadão, de seu nível de renda, de sua posição social ou até mesmo, em certo sentido, de sua aquisição intelectual (se por “aquisição intelectual” se entende a mera acumulação de dados e estimulação do raciocínio, sem guiamento moral e verdadeiro). Sim, todos esses fatores servem de auxílio, mas não são de forma alguma seus determinantes. Talvez seja uma disposição individual que vem desde o berço. Mas, com absoluta clareza, a cultivação da docilidade espiritual para com o belo se dá não só por meio do costume, mas também pela aquisição e interiorização daquilo que é mais essencial numa obra de arte – a sua forma, mas muito além disso, o seu fim, que está em nós, e não em si. Quando a ponte entre o indivíduo e a obra de arte é construída, guiada pelo bem, aí sim ela se torna de real valor. E de infinitamente superior valor é aquela obra de arte que se conecta com toda a humanidade, representando possibilidades divinas fornecidas pela própria natureza, engrandecendo o próprio homem.

Caso essa “conexão primordial” não aconteça, então a obra de arte não passará de um amontoado de fragmentos, sem o menor sentido ou finalidade, soltos ao acaso. Não possuindo uma unidade, não significam nada.

Não é de se espantar a total negligência e até o desprezo da população quando o assunto cai em música clássica. Foge-se disso como o diabo da cruz. Para piorar, existe ainda um verdadeiro muro de preconceitos criados pela própria elite. Isso é simplesmente motivado apenas para reafirmar uma aparente superioridade intelectual perante aos demais. Mas é uma superioridade oca. Essa elite cada vez se deteriora mais. Chega ao cúmulo de achar plenamente normal o fato de louvar um Schumann e noutra ocasião agir irresponsavelmente e de forma totalmente repreensível. É essa elite cultural que, ao afirmar a beleza de uma fuga de Bach, o mestre cujas obras possuem um caráter religioso, despreza totalmente qualquer religião, faz apologia ao consumo de determinadas drogas, põe-se debruçada a polêmicas mesquinhas (“direitos” aos gays, cotas raciais) etc.

Sendo assim, sinto-me muito mais angustiado sabendo que a dita elite brasileira perde cada vez mais suas referências no que tange aos valores morais e estéticos do que sabendo (o que sempre se soube) que a maior parte da população está se lixando para Mozart. Até mesmo o chorinho, tão aclamado como música popular de enorme qualidade, se faz desconhecido para o povo. Se essa elite perde a cada dia o solo onde antes confusamente caminhava, então amanhã tombará, e levará para o abismo o restante de seus compatriotas. Nesse transloucado fenômeno, pode vir a ser o contato entre povo e arte, essa menina tão judiada hoje em dia, uma experiência das mais nefastas.

Sunday, August 28, 2005

O "mundo interior"

Amigos, a Rachel, num comentário ao post anterior, escreveu uma coisa que vale a pena gastarmos um pouco de nosso já sofrido tempo para refletirmos. Vou aqui copiar o que ela disse: "nosso corpo é só matéria... Ainda que hoje em dia algumas pessoas dêem mais importância a ele do que a outras coisas..."

O que ela disse me servirá de gancho para algo que há tempos estou para escrever desde a época do meu primeiro (e finado) blog.

Numa novela mais ou menos recente, havia uma música que agarrava minha atenção. Lembro só de uma parte, que aparentemente é uma bobagem qualquer. Era mais ou menos assim: Money no bolso, saúde e sucesso/ Money no bolso é tudo o que quero. Ora, não era pela beleza dos versos que eu a ouvia com curiosidade, muito menos pelo seu ritmo. Não, nada disso. O que me chamou a atenção é que de repente surgia, em plena novela das oito, um dos ideais populares mais famosos da Antiga Grécia!

"Como certas coisas ditas tão naturalmente hoje são antiqüíssimas!", pensei.

Suspeito que quem compôs aquela música não conheça muita coisa sobre poesia antiga, muito menos o público da novela. Mas em relação às coisas do espírito, não precisamos muitas vezes ler para conhecê-las: muito está no ar. E eis que pesquei, naquela musiquinha, mas em outras palavras, escondidinha, uma famosa canção báquica que resumia em poucas linhas o ideal popular grego. Vejamos qual era:

O bem supremo do mortal é a saúde;
O segundo, a formosura do corpo;
O terceiro, uma fortuna adquirida sem mácula;
O quarto, desfrutar entre amigos o esplendor da juventude.


In: Jaeger, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira, 4a. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 529

Se lembrarmos por exemplo da Ilíada, onde Aquiles preferiu a glória e fama imortal, ainda que morresse na juventude, a passar uma vida tranqüila e sem incidentes em seu país, perceberemos como esses valores, fortuna-saúde-glória, eram plenamente apreciados como o que de mais alto havia na vida. Nada mais familiar a nós: quantos não querem enriquecer, ter sucesso profissional e/ou viver bem?

No entanto, ainda que tudo isso seja natural, o que chama a atenção é a importância dada a esses valores. A hierarquia de uma bela vida, em outras palavras, é puramente material. Como tudo isso é bem antigo, não é apenas uma inovação de nossos tempos. O que chama a atenção é sua persistência, demonstrando que faz parte da realidade humana.

A superação deste ideal de vida foi sem dúvida nenhuma uma das mais gloriosas aquisições da história da humanidade. Tornou-se patrimônio comum. Daí que os responsáveis por tão grandiosa descoberta sejam tão fundamentais e próximos de nós.

Pois bem, naqueles antigos tempos surgiu um homem que seria para sempre considerado um exemplo de conduta e fundador de todo um projeto filosófico. Sua aparência era desconcertante: calvo, cabeçudo, nariz feio, barrigudo. Uma espécie de ogro. Mas esse homem caricato era ele mesmo, em sua própria existência, a representação de uma nova forma de vida, com uma hirarquia de valores absolutamente original. Seu nome era Sócrates. Não nos faltam relatos interessantíssimos acerca de sua vida. Sua preocupação com o cultivo da alma em primeiro lugar o fazia viril a tal ponto que Alcibíades relatou que já o vira, certa vez, num acampamento militar, ficar de pé por horas a fio e em meio à neve, absorto em reflexões. Outros lembraram de seu heroísmo durante a guerra. Embora não fosse miserável, desleixava-se dos bens materiais de modo espantoso, embora nisto em particular alguns de seus discípulos o superassem exageradamente. E é justamente um sujeito desses, que à primeira vista ninguém daria nada, representando (de modo exemplar) em vida e de modo coerente sua hierarquia de valores, que demonstrou a preeminência de um "mundo interior" sobre tudo o mais. Acabou condenado a tomar cicuta pelos próprios atenienses.

Aquele senhor era uma figura estranhíssima para seus contemporâneos. Mas não só pela sua aparência. Então por qual motivo? Porque ele "coloca no plano mais elevado os bens da alma, em segundo lugar os bens do corpo, e no grau inferior os bens materiais, como a riqueza e o poder", como lembrou bem Jaeger em seu livro já citado (p. 528). Isso significa que o filósofo descobriu "algo de novo, o mundo interior" (p. 529). Eis aqui a radical contribuição de Sócrates: "A arete [virtude] que ele nos fala é um valor espíritual" (p.529). Este é um caminho novo, que rapidamente, num dos maiores milagres de todos os tempos, foi seguido, sem interrupção, por outros dois homens que se tornaram igualmente patrimônio comum e legado da humanidade: Platão e Aristóteles. Foi uma das maiores proezas que o homem, apenas com sua razão, já conseguiu, cujos efeitos nos embriagam até hoje.

Essa "missão divina" socrática e o seu "cuidado da alma" não soam estranhos para nós, ou pelo menos não tanto quanto para os seus contemporâneos. Somos seus herdeiros, mas não diretamente. O responsável pela ponte com ele é nada mais nada menos que o Cristianismo, que nesse sentido possui com Sócrates afinidades por demais claras. Essa religião também encontra a riqueza inesgotável de nosso "castelo interior". Mas quanto à hirarquia de valores, Nosso Senhor resumiu quais eram os principais mandamentos que devemos seguir, os quais estão bem longe daquela velha canção báquica: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Eis o verdadeiro "bem supremo do mortal" - embora neste mundo o percebamos confusamente. O resto vem por acréscimo.

No entanto, apenas a descoberta do "mundo interior" não é o suficiente. É necessário relacioná-lo de modo harmonioso com os outros bens, pois do contrário poderemos perigosa e tragicamente cindir em duas a nossa única realidade, cavando um abismo entre o mundo espiritual e o mundo natural. Seja o corpo, por exemplo. Ele nos é um bem precioso à medida que por ele podemos, aqui neste mundo, dar testemunho e graças a Deus e aos próximos. Ele, enquanto "morada da alma" (o que é diferente de uma "prisão") - ainda que a alma resida nele provisoriamente -, ambos em harmonia um com o outro, sendo o corpo fiel e submisso à alma, é sagrado e digno de respeito e admiração, como um servente que realiza adequadamente suas funções. É nesse sentido que nossa saúde é um dos nossos bens fundamentais, pois é óbvio que somente podemos praticar o bem se estivermos vivos. Por outro lado, a monarquia da alma no governo de nossas vontades é a segunda condição para tal. Contudo, havendo uma cisão - ou mesmo descrença - na relação (tensa e frágil) entre aqueles dois mundos, então nosso corpo perde seu caráter sagrado ou, o que talvez seja pior, instaura a anarquia e o caos, antes refreados pelo governo da alma. É o criado provocando uma rebelião anárquica.

Este tema é interessante e pretendo algum dia (isto é, daqui a zilhões de anos) retomá-lo. Mas pelo menos acho que consegui dizer um pouco sobre o que há tempos tenho vontade, me aproveitando gentilmente do comentário mais gentil ainda da Rachel.

Saturday, August 27, 2005

Heinrich von Kleist - Estória (Diógenes)

"Perguntaram a Diógenes onde queria ser enterrado quando morresse. Ele respondeu: "No meio do campo." O que, replicou alguém, você quer ser comido pelos pássaros e animais selvagens? "Então que se coloque ao meu lado o meu bastão", respondeu ele, "para que possa espantá-los". Espantá-los!, gritou outro; se você está morto, não tem mais sensação nenhuma! "Pois então o que me importa", retrucou, "se os pássaros me comerão ou não?"

Kleist, Heinrich von. "A Marquesa d'O... e Outras Estórias". Trad. e posfácio de Cláudia Cavalcanti, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1992, p. 217

Thursday, August 18, 2005

Meleca, seqüestraram os comentários antigos

Os comentários anteriores a abril simplesmente desapareceram. Quem teria sido o responsável por semelhante abominação? Quem é o seqüestrador? Qual o preço do resgate? Ou será que eles queriam mais liberdade e fugiram de mim?

Sei que cada um deles foi tecido no calmo lar de cada um dos poucos e bondosos leitores destas plagas, me cobrindo com uma pequena manta de belas contribuições. Daí o motivo de meu aborrecimento.

Eu havia, faz um tempo, modificado o sistema de comentários, o que me levou a cometer a atrocidade de apagar os que já existiam. Então não sei se mudo mais uma vez, pois há o perigo de novamente as contribuições dos gentis leitores acabarem no vastíssimo limbo virtual. Por outro lado, será péssimo caso esse sistema de comentários continue a adotar essa política de cunho stalinista: fazer expurgos generalizados de tempos em tempos.

Verei que posso fazer. E mais uma vez peço desculpas ao leitor, que sendo já tão maltrado pelas confusas linhas que traço, agora de brinde tem seus comentários mais antigos sumariamente apagados.

Sunday, August 14, 2005

Sobre o intelectual

Posso estar enganado, mas talvez a profissão (?) de intelectual é das mais ingratas que existe.

Primeiro e mais fundamental: porque o intelectual deve lidar com a verdade. E isso, bondoso leitor, fará com que você, caso intelectual, passe por maus bocados. Em épocas tão bizarras como a nossa, ser intelectual, nesse sentido, é praticar exílio voluntário. (Aqui vale uma explicação. Quando eu digo que esta época é bizarra, não recorro a uma figura de estilo: é constatação de um fato. Mas se o leitor quiser uma imagem mais literária do que estou dizendo, então afirmo que nunca a gravidade se fez mais terrível e presente.) E isso porque a simples menção ou idéia de compromisso com a verdade chega a ser para muitos algo estúpido e deplorável. "O que é a verdade?", perguntava Pilatos. Pois hoje essa dúvida é tida como inquestionável certeza da não existência de uma verdade sequer (que não, é óbvio, que nenhuma verdade existe...).

Além de estarmos cercados por milhares de Pilatos (quando não nos comportamos que nem o próprio, às vezes), o intelectual vive normalmente uma vida estranha aos olhos da multidão. Ele é, definitivamente, um outsider, alguém que vive num fundamental descompasso com o restante do povo. Ele tem um gênero de vida tão singular que parece um outro tipo de ser humano. Suas preocupações geralmente estão em outra ordem. Que tipo de gente procura saber por que chove, por que o sol é quente e brilha, o que é a alma e se ela é imortal, qual a origem dos idiomas, qual o sentido da vida, o que é justiça, quanto mede a diagonal do quadrado, qual o órgão responsável pelos nossos pensamentos, etc? Daí a relação de amor e ódio que ele trava com o povo. Não sei se o leitor já reparou, mas em termos gerais o intelectual é venerado só depois de morto. Enquanto vivo, ou ninguém dá muita atenção ao que ele diz, ou caso dêem o tratam com desprezo, com as devidas exceções. Daí a célebre história de Tales e sua escrava. Por outro lado, chega a ser natural como o intelectual muitas vezes olha com desprezo (etimologicamente: "olhar por cima") o restante do povo, considerando-o ingrato. Talvez fosse demais dizer que o intelectual gostaria de ser amado e sente aquele tipo de rancor dos apaixonados que são solenemente ignorados, às vezes com deliberado pouco-caso, pelas suas amadas? Mas não acho nenhum pouco absurdo de se imaginar que, do ponto de vista da honra, só umas poucas e precárias vezes o intelectual recebe em troca honrarias à sua altura. Os antigos diziam que a guerra é gerada pela afronta à honra. Quem sabe então se todas essas filosofias niilistas são, no fundo, causadas por tal e rude golpe no orgulho do pensador (detesto esse termo) que as produziu?

A vida do intelectual é mesmo sui generis. "Como essa gente", pensa ele, "consegue se manter impassível e até algumas vezes hostil a coisas tão belas quanto a literatura, a ciência, a filosofia? Como é possível viver sem isso? Como é possível não ser intelectual?" Tais questões não deixam de ter uma bela dose de amor-próprio. Mas amor-prório esse repleto de fundamentos. Porque, como certa vez disse Ortega y Gasset, a vida do intelectual é maravilhosa. Coisas magníficas passeiam sem cessar ante seus olhos. Ele vive num estupor constante. E é nesse sentido que Aristóteles, na Metafísica, disse que

foi a admiração o que inicialmente levou os homens a filosofar

e que

buscar uma explicação das coisas e se admirar delas é reconhecer que as ignora; por esta razão o filósofo é, até certo ponto, um homem aficcionado pelos mitos, porque o mito se constrói sobre assuntos maravilhosos. (Met, I, 2. Grifos meus.)

É essa capacidade (ou falta de) que separa o intelectual do restante do povo: a maior parte das pessoas não sente admiração por nada senão aquilo que foge do habitual (eis uma teoria do jornalismo), enquanto para o intelectual tudo lhe parece maravilhoso. E mesmo quando ele está de posse plena dos conhecimentos a respeito de algo, ainda assim aquilo lhe parece belo. "Nada causaria mais assombro a um geômetra que ver que a relação do diâmetro à circunferência resultasse comensurável", disse também o mesmo Aristóteles. Se era admirável como as coisas são o que são, após o pleno conhecimento delas torna-se admirável como elas poderiam deixar de ser o que são. E tal estupor é proporcional, claro, à beleza do objeto contemplado. (Tal idéia tem como pressuposto que há uma hierarquia entre todas as coisas, mas isso é outra conversa.)

Aqui o leitor pode estar se perguntando se uma vida tão admirável pode ser tão ingrata. E digo que é justamente nessa admiração que está um grande perigo. Benedetto Croce disse certa vez que os maiores descalabros já ditos vieram justamente dos grande e famosos intelectuais. São coisas que nenhuma pessoa normal e minimamente sensata jamais diria. Ele citou como exemplos a implicância de Platão com a poesia e a presunção freudiana sobre a importância capital na vida humana daquilo que eu chamaria de mundo sub-humano. Mais exemplos de loucuras certamente não faltam - e sempre muito bem argumentados, como aliás todo louco costuma fazer. Zenão e a negação do movimento, Parmênides e a negação do mundo sensível, Marx e suas teorias a respeito da importância fundamental da economia, etc. Pois a admiração que todos esses e muitos outros intelectuais tiveram com o mundo foi tal que por um momento perderam o senso da realidade e o juízo, totalmente absorvidos por suas próprias divagações. Isso é mais ou menos como se tivessem tomado um baita porre de vinho. E como tal, a ressaca vem sempre terrível. (Acho que a filosofia realista é uma espécie de engove dos disparates intelectuais: ainda que não evite um eventual porre, nos protege bem dos efeitos da ressaca seguinte.)

Eis a que humilhação, a que espécie de miséria o intelectual está perigosamente destinado. É aquele famoso bordão que diz que a pior queda é a dos grandes. O longo livro da imbecilidade humana tem como principal contribuição esse tipo tão sui generis de homem, como um cachorro que não larga o osso.

Thursday, August 11, 2005

Sobre o que me levou a trancar a matrícula de minha faculdade ou: confronto com a verdade

Vou contar a vocês a história secreta que me levou a trancar a matrícula da minha faculdade.

Estava eu prestes a entregar livros na biblioteca da faculdade quando uma figura estranha me atendeu:

- Pois não?
- ...
- Algum problema?
- Não sei dizer...
- O que foi?
- É a primeira vez que sou atendido por um animal.
- Desculpe?
- Você é um animal.
- O senhor também.
- Não, quero dizer... Você é mesmo um animal...
- Sim, e o senhor igualmente.
- Não, não... Quero dizer... Você é um tatu!
- Evidentemente. Algum problema?
- Não sei dizer...
- Entrei por concurso e graças a cotas.
- Cota para tatu?
- Sim. Há uma desproporção entre nossa espécie na natureza e na universidade.
- Como você consegue segurar essa caneta sem polegar opositor?
- Hã?
- Me perdoe, mas não sei o que dizer para um tatu que trabalha como atendente de biblioteca.
- Pergunte se cavei meu próprio buraco vindo para cá.
- Hein?
- É uma piada sem graça que de vez em quando me contam.
- Não entendi...
- Tudo bem. Qual seu nome e seu curso?
- Hm, desculpe mas... Como é possível um tatu trabalhar aqui?
- Olha, me responda uma coisa: você não passou no vestibular?
- Hm... Sim...
- Você está em qual período?
- No último.
- Então não está escrevendo uma monografia e prestes a se formar?
- Sim.
- E em breve não dará aulas?
- Assim espero.
- Ora, se você, sendo quem é, passou no vestibular, cursou faculdade, está prestes a se formar e ainda por cima dará aula, por que eu, sendo quem sou, não posso trabalhar aqui?
- Eu... Com licença, preciso resolver um problema que acabou de me ocorrer...
- À vontade, passar bem.

E foi assim que tranquei a matrícula de minha faculdade.

Sunday, August 07, 2005

O cidadão ideal (segundo a Nova Ordem Mundial)

Sem preconceitos, feminista, desarmado, cosmopolita, ecologista, moderno, progressista. Eis o homem de nossa época, quer dizer, o super-homem:



O máximo de revolta permitida:



Definitivamente, estes são tempos modernos.

Thursday, August 04, 2005

Conversa na festa

Lembrei hoje de um rápido diálogo entre mim e um sujeito qualquer, numa festa faz um tempinho já:

Eu: Você já leu alguma coisa do Dostoiévski?

Um Sujeito Qualquer: Comecei a ler Niétotchka mas parei. Fui ficando deprimido.

Eu: Eu tô a fim de ler essa história também. Mas por que você ficou deprimido?

U.S.Q.: Porque fui pensando na minha vida e... [neste ponto os registros estão em estado deplorável em minha cachola]

Eu: Engraçado são os personagens dele, né? Um pior que o outro. Quer dizer, não que sejam horríveis no sentido de mal elaborados, mas o que eles têm de coitados... E sempre caindo bem no fundo do poço. Vai ver por isso que você ficou deprimido.

U.S.Q.: É.

Eu: Parece até que o Dostoiévski gostava do sofrimento. Devia ser um cara sofrido pra burro...

U.S.Q.: É. Mas o pouco que li dele me fez achar que ele se amarrava em gente outsider.

Eu: Como assim?

U.S.Q.: Uns caras muito loucos, pirados. Isso parece muito com Bukowski. Você já leu ele?

Eu (lembrando de um único conto, abominável, algo sobre uns caras que trabalhavam numa fábrica de espremer colhões e que terminavam transando): Só li um conto...

U.S.Q.: Pô, Bukowski é maior doidera! Ele é foda. Você tem que ler!

Eu: Ah... Quer dizer que você gosta de beatnicks?

U.S.Q.: [recordações aqui estão truncadas]

Eu (imaginando o que faz alguém comparar Bukowski a Dostoiévski, ou melhor, o que faz alguém gostar de um sujeito que escreveu um negócio tão escabroso como aquele conto): Vou beber. Bateu uma sede...

Tuesday, August 02, 2005

Rápidos garranchos sobre o levar-se muito a sério

Certa vez, quase ao mesmo tempo em que olhei para o céu e vi um cometa passar assobiando (É verdade, os cometas assobiam. Os planetas dançam e as estrelas cantam. Alfa de Centauro é a mais desafinada.), pensei em fechar este blog. Posteriormente, quando coloquei meu espírito para se exercitar a poder de chibatadas, notei que tudo não passava de 2/3 de dor de dente misturada a uma pitada de preguiça de ler.

Ainda que eu nutra uma grande simpatia pelo ideal do antigo e nobre Glauco, segundo o qual temos de ser sempre os primeiros entre todos e nos distiguir de todos os demais, por outro lado acho muito engraçado e vital um inalienável direito dos homens: que a estupidez é um direito nosso.

Usando a linguagem técnica dos filósofos, os homens em geral são atualmente tolos e potencialmente inteligentes. Seria, é claro, imensa presunção de minha parte dizer que o amigo leitor pertence a este ou aquele grupo, afinal de contas, além de eu não te conhecer, você poderia suspeitar que estou puxando teu saco ou desfazendo de ti por esnobismo (que é uma característica vista com maus olhos segundo a chusma, e engraçada segundo alguns). Posso, por outro lado, afirmar que estou no grupo dos homens em geral, principalmente depois de ouvir certos dizeres em certo lugar.

Segundo o fulano, a massa apenas quer saber se não vai enfrentar a fila no banco, se poderá viajar sentada no ônibus e se voltará bem para casa. Parece que o fulano não tem preocupações dessa natureza em vida, sendo então ou puro espírito (qual seja, sem presença física neste mundo) ou deputado. Pela má catadura e pelo que notei ademais, dificilmente poderíamos considerá-lo qualquer um dos dois, ainda que espíritos atuem neste mundo e ainda que não faltem deputados com cara de pamonha passada. Ora, então este fulano é uma daquelas classes de fenômenos que permanecem um mistério para a ciência, mais ou menos como determinados tipos de raios cujos efeitos ninguém entende direito. Quanto a mim, sou um membro da massa, já que, dentre outras preocupações do gênero, quero saber se minha lâmina de barbear está com o fio decente ou qual é o preço do pão nos supermercados. Acrescentemos a isso o fato de que eu digo algo relativo à política de modo equivalente àquela vontade inadiável de fazer pipi, em meio a cobranças de pênaltis em final de campeonato: não é uma coisa que faço porque quero e muito me dá gosto, mas pela violência das circunstâncias. (Adorar jogo de futebol, aliás, preferir um jogo a um debate político é coisa de gente alienada, não é? Também gosto muito de TV, mais uma característica que segundo alguns é de gente com cérebro de esponja.)

Mas estou dizendo tudo isso e dando essa volta toda para dizer que certas coisas a gente faz naturalmente e sem dar atenção neurótica, por mais legais que sejam os resultados. Bach não descuidou dos originais de seus Concertos de Brandenburgo? Aristóteles não legou à posteridade suas obras sem nenhum plano de estudos? Santo Antão (Hm... Não seria melhor Antônio, como certa vez disse Felipe Ortiz, do finado blog Alexandrinas?), segundo meu xará Cassiano, não afirmou que não há prece perfeita se o religioso percebe que ele mesmo está rezando? Então por que nós, pequeninos homens de curta existência, tentamos ensaiar tragédias em coisas tão pequenas quanto um bloguinho, preocupados com n motivos? Isso parece na verdade uma tragicomédia.

Lembremos sempre que a estupidez é um dos direitos dos homens, e que sempre que preocupações existenciais forem os motivos de não escrevermos mais em um blog, na verdade tudo não passa de uma dor de dente e preguicite aguda da cachola. O resto são dragões virulentos e gnomos zombeteiros. E se você, bom leitor, concluir disso tudo que faço apologia da idiotice, dando-me como exemplo vivo, então você estará abusando do teu direito de ser bobo.