Monday, March 27, 2006

O (estranho) filme Smoking Room

Quarta-feira passada passou um filme espanhol no Cinemax chamado Smoking Room. A história girava em torno de uma empresa recém-comprada por americanos e que havia proibido que se fumasse em suas dependências. Um dos funcionários, fumante, resolve fazer um abaixo-assinado contra aquela norma, mas acaba esbarrando na má vontade enorme de seus colegas de empresa. Eis o fio da meada.

"Fio da meada". Na verdade, a história é um pouco mais complicada, e aqui já começam os problemas do filme, que aliás ganhou prêmios na Espanha. Os diretores queriam ir mais além. Por exemplo, em certa parte tratam do problema do racismo, porque um dos funcionários confessa a um colega que não gostou de terem posto um preto num alto cargo. Em outra passagem, alguém reclama da imposição de hábitos americanos na empresa. Adiante, um funcionário desabafa dizendo que trabalha como um louco, está por isso com o casamento ameaçado e que pensa em se matar. Outro cara desenvolve uma tese qualquer sobre o sentido da existência, pelo menos no sentido de como certas ações aparentemente insignificantes podem modificar nossas vidas. E, acredite, há um montão de outras coisas tratadas. O problema é que o filme tem 88 minutos. Ele é, portanto, uma série de digressões que mal tem relação com o tal fio da meada. Na verdade, embora o filme se chame Smoking Room, o fio de meada serve de pretexto para fazer com que a história se desenvolva. Se você portanto for vê-lo pensando que haverá discussões em torno do problema da proibição de fumar nas empresas, esqueça: parece que não foi essa a intenção dos diretores.

O filme demonstra bem duas coisas: que há sempre algum interesse alheio por trás das ações das pessoas e que para coisas sem tanta importância as gentes se organizam prontamente. É que, ao longo do filme, enquanto o infeliz caça assinaturas, outros estão organizando uma pelada de fim de semana. O abaixo-assinado não acontece, mas a pelada sim, e aliás muito bem, obrigado. Quanto ao interesse, parece que sempre tem alguém de rabo-preso. Até mesmo o infeliz do herói já teve problemas anteriores com a empresa. Mas o problema do rabo-preso ficou especialmente engraçado naquele filme, porque se por um acaso o que levou o sujeito a bolar o abaixo-assinado na verdade foi algo diverso do alegado, tampouco a história do próprio filme poderia escapar dessa observação, já que o problema da probição de fumar é trabalhado também de forma alheia à questão em si. Será que fizeram isso de propósito?

Quero prestar contas ao simpático leitor que teve a boa vontade de me acompanhar até agora e que quer saber simplesmente se gostei ou não do filme. Respondo dizendo que não. Aquelas digressões todas só serviram para deixar o filme chato, e até mesmo um tanto pretensioso. Dizer mais do que deveria é um pecado que todos nós, sujeitos que se expressam de algum jeito para um público qualquer, estão arriscados a cometer, e com o dobro dos prejuízos em relação a alguém que o faça privadamente. É aquela história: se há muitos que cantam debaixo do chuveiro, quantos mais cantariam do mesmo jeito num palco? Talvez se o filme se fixasse, tão humildemente quanto o preguinho na madeira, no tema proposto, ele não seria tão esquisito.

Por sinal, há alguma coisa mais estranha em "Smoking Room". Os personagens parecem todos meio lelés da cuca. É como se os doidos vestissem momentaneamente a roupa de funcionário de empresa para que pudessem sobreviver. Eles não saíam por aí gritando como condenados ou dizendo que nasceram de uma abóbora que miava, porém tinham um jeitão estranho. Tentaram fazer com que os modos e os diálogos parecessem normais, coisa corriqueira, mas eles eram tudo, menos normais e corriqueiros. Os diálogos, supostamente naturais, são sem pé nem cabeça. Várias vezes há conversa apenas entre duas pessoas. Uma então dispara um sem-número de idéias, meio desencontradas umas das outras, mas que no final servem para formar só uma impressão, enquanto a outra apenas a acompanha, às vezes dizendo um inócuo "Não pode ser!" ou alguma outra expressão aparentada. Também o cenário do filme, que se passa quase todo dentro de um edifício, a câmara que focaliza de um jeito estranho cada ator, tudo contribui para fazer com que haja um clima esquisitão. Será que os diretores têm uma idéia tão inusitada do que é trabalhar numa empresa e de como são os empregados?

É por essas razões que o filme é uma mistura esquisita de drama com humor. Não que seja um drama e humor involuntários. Só não ficou muito bem feito. Na verdade, não sei como algo assim pode ficar bem feito, mas de qualquer modo não foi o caso de Smoking Room.

Sunday, March 26, 2006

Comentário curto e atrasado sobre o Oscar

O Oscar. Não vi muitos porque nunca gostei muito. Depois desse último que assisti, e parece que sabiam que eu estava vendo só para implicarem comigo (digressão: há uma certa tendência inata nas pessoas de achar que as coisas ocorrem para e por causa delas. Não faço a menor idéia se isso faz ou não pelo menos algum sentido, mas é divertido dizer coisas como "Aquela lontra só arremessou estrume em Damião porque eu estava com ele." Também é engraçado imaginar que há uma conspiração mundial contra ti, especialmente se você não tem um inimigo sequer, o que talvez seja mesmo indício de que estão de tramóia contra a tua obesa, magra ou normal pessoa. Mas voltemos ao texto, obrigado pela atenção, etc.), mas como eu estava dizendo, depois desse último prêmio do Oscar, fiquei não só com desvontade como até com medo de voltar a assisti-lo.

Que há de mais apavorante que piadas horríveis contadas por três horas? Respondo, pode deixar: o politicamente correto. Só que a perversão do mundo parece não ter limites, porque o Oscar foi uma mistura devidamente dosada de uma coisa e outra, com pitadas de mau gosto e coisas do mesmo sangue de barata. Foi obra de um cientista macabro.

Pelo menos uma daquelas opiniões, que a premiação foi politicamente correta, não foi de minha exclusiva lavra. Foi o presidente Juscelino Kubitschek que a proferiu, embora estivesse durante o evento vestido de José Wilker. Na verdade, o presidente vestido de ator, embora todo presidente seja um ator, e atores se comportem como presidentes, até foi mais enfático, dizendo que o Oscar foi politicamente corretíssimo. Ele disse aquilo em tom elogioso. Fiquei embasbacado, porque foi a primeira vez que ouvi alguém dizer aquela expressão em tom sério e satisfeito. Permita-me outra digressão, leitor, bela leitora. Quinta-feira última assisti, para variar, a Gilmore Girls. Portanto, o que direi é meio que para iniciados. Luke e Lorelai tinham acabado de sair de um jantar com os pais da Lorelai. Ambos estavam meio confusos após um montaréu de coisas ditas pela Emily e pelo Richard. Luke pôs a mão no peito e perguntou a Lorelai algo como "Que sensação estranha é essa que estou sentido, uma mistura de raiva com fraqueza paralisante?" Lorelai diz então que ele acabara de ser gilmorizado. Gilmorização é o mais belo conceito que explica o que sinto quando penso em universidades e nessa chateação do politicamente correto. Gostei.

Mas foi isso o Oscar, emporcalhando a tv com o politicamente corretíssimo. Quem não assistiu não perdeu nada.

Thursday, March 23, 2006

Militância e ressentimento

Não há nada mais irritante que um ateu militante. Melhor dizendo, na verdade até há: o gay militante. Porém, talvez acima de um e outro esteja o abortista militante, maior pretendente da coroa das coisas que mais são irritantes. Pessoalmente, consigo respeitar gays e ateus. Abortistas não; merecem tanto desprezo quanto os defensores de extermínio de etnias. Mas isso é outra conversa.

Não sei o que se passa na cadeia de valores de militantes dos tipos que mencionei, mas uma coisa é certa: eles passaram e continuam passando demais da conta do limite do tolerável. Ouso dizer mesmo que são umas ameaças públicas, gente maluca que enxerga a realidade de um modo torto e que por isso pretende nos arrastar para seu mundo doente. Esta expressão, "doente", é de fato uma descrição real.

Todos aqueles tipos de militantes são repugnantes porque eles próprios só têm razão de ser devido ao ódio que destilam contra seus inimigos. Sim, ódio, porque eles buscam a todo preço destruir seus opositores mediante toda a sorte de expedientes malucos, justificativas nonsenses, chantagens emocionais e o diabo a quatro. Não há possibilidade de argumentarmos racional e friamente com alguém desse tipo - no máximo, só por desencargo de consciência ou, se tivermos um quê de professor, com aquele otimismo inerente à educação que não morre jamais e que permite que depositemos confiança no mais inepto dos educandos. O problema, de qualquer jeito, é mais sério. Isso requer uma justificativa.

Militantes gays, ateus ou abortistas seguem bem aquela fórmula de Marx, segundo a qual devemos transformar tudo pois já passou o tempo de buscarmos uma interpretação das coisas. Essa atitude é uma impostura do ponto de vista do conhecimento. Na verdade, é o apelo à inimizade entre nós e o mundo. Quando buscamos compreender as coisas, nos sentimos como que arrebatados por elas e, por que não, até elas. Tudo parece fascinante a quem quer conhecer. Mesmo o mais asqueroso animal ou a mais abstrata idéia, o mais insignificante pó ou a mais complicada composição química, tudo é transfigurado durante o caminho do conhecimento de modo que o conhecedor age como se estivesse enamorado pela coisa que é investigada. Sempre se descobre algo especial, único, inusitado, e há até mesmo algo de misterioso e de inexplicável que nos fascina naquilo que contemplamos. A coisa está aí, embora eu não a conheça perfeitamente bem; percebo seus detalhes e me apaixono por ela tal como ela é, sem tirar nem por nada, ainda que esteja cercada de mistérios insondáveis - talvez por isso mesmo ela acabe se tornando especial. Aquele que é curioso (no sentido bom do termo), o amigo da verdade, é um entusiasta. Eis a palavra mais adequada, se atentarmos para seu significado mais primitivo: um arrebatado por algo divino. Tudo tem algo de divino porque foi tocado por Deus.

O conselho de Marx para que transformemos tudo sem que interpretemos mais nada é um aviltamento contra a ordem natural das coisas. Na raiz disso está a inimizade ante o mundo: contra a sua ordem, contra a sua excelência, contra a sua essência. Nada disso interessa. Na verdade, essas coisas acabam tendo uma relação problemática com os seguidores do conselho de Marx porque elas impõem uma resistência natural que frustra a vontade daqueles senhores. É impossível contorná-la completamente, mas buscam de alguma maneira adaptá-la aos seus caprichos, como se tivessem nascido para serem senhores do universo. Para tanto, qualquer meio que esteja à disposição é válido desde que, claro, contribua com a causa. Um empreendimento tão grandioso assim assume naturalmente uma gravidade imponente, e seus próceres acabam se sentindo como se fossem pessoas muito importantes, levando o progresso ao mundo, quando na verdade não passam de sujeitos muito abusados, para dizer o mínimo.

Quanto mais se afundam em seus sonhos delirantes, mais a realidade torna-se-lhes hostil, e é aqui que surge a prova final. Se ainda houver em suas almas algum resquício de amor ao mundo, pode ser que ocorra uma gradual reviravolta em suas vidas. No entanto, se eles estiverem completamente viciados, eles sentirão ódio do mundo, aliado a uma impotência essencial que lhes impede de fazer tudo o que querem. Então surge o mais vil veneno da alma, corruptor supremo dos homens a ponto de lhes fazer enxergar só o mal onde houver o mais puro bem: o ressentimento. É nele que surge o motor de toda uma série de abominações contra a ordem do mundo, porque o ressentimento carrega uma raiva mal contida que se transforma em sentimendo de vingança com requintes de perversidade. Nada mais distante do amor.

É o ressentimento que move o militante gay, ateu, etc. Como ele é fundamentalmente impotente, sua ação será uma mistura de temeridade com pusilanimidade, porque se de um lado sempre deixará transparecer seu caráter frágil (por exemplo, o militante tal diz que pertence a um grupo de perseguidos pela sociedade), por outro ele utilizará todos os meios que estiverem à sua disposição, sob a desculpa de que quer apenas proteger a si mesmo e a seu grupo, para ferir de morte, de modo ousado, seu rival, nem que para isso carrega para o fundo do poço toda a nação e quiçá o mundo.

Pretendo no futuro comentar melhor sobre o problema grave do ressentimento como motor de todas essas loucuras.

Saturday, March 04, 2006

Como escrever bem?

Um bom amigo meu, certo dia, se queixava comigo porque achava que escrevia mal até não mais poder. Enquanto ele fazia suas confissões, eu sorria um pouco, mais ou menos como quem diz em tom de galhofa: "Bem vindo ao clube, amigão!"

Infelizmente eu não estava em condições de lhe dar algum conselho para que escrevesse melhor, pois sou a penúltima pessoa deste mundo que tem condições de dar conselhos: não a última, porque já vi horror pior que o meu. Mas se não estou no último lugar da fila, então alguma coisa eu sei, ou supostamente penso saber.

Vamos então ser poéticos, leitor, e fantasiemos juntos.

Uma coisa que me parece ser tão clara quanto Jesus ter sido filho de Maria é que só se aprende a escrever primeiramente lendo. Só que há leituras e leituras. Será difícil saber escrever lendo jornais, ou pelo menos os jornais de hoje em dia, que são escritos do jeito mais troncho possível. Às vezes é tal o descuido com o texto que podemos mudar de posição os parágrafos e até todas as frases sem que haja a menor diferença. As idéias não formam um todo amarradinho, sem contar quando são vagas, imprecisas. Pelo contrário, mais parece que foram expelidas com toda a má vontade deste mundo, cuspidas no papel a intervalos irregulares. Não será pelos jornais que aprenderemos a escrever, embora haja as sempre honradas exceções. Pensemos então nos livros. Mas quais? Há livros que só servem de alimento às traças, e com razão. A promiscuidade de publicações deveria ser um pecado equivalente à luxúria. É uma montanha de entulho que sem dúvida nenhuma tende ao infinito. A situação só não está irremediavelmente perdida porque da mesma forma que a existência de um só justo redime toda a cidade corrompida, também um bom livro justifica de certa maneira a má nomeada dos seus demais irmãos de papel.

Mas essa retomada de confiança nos livros não respondeu a pergunta: quais? No caso em questão, leitor, só podem ser os clássicos. Teremos então de ler as principais obras de nossa língua, antes de mais nada, a fim de saber como se deve escrever. E aqui peço licença ao Senhor Fio da Meada para convidar a Senhorita Digressão. Acho útil lembrar ao leitor de onde vem a expressão "clássico". Sabemos que o português é derivado do latim, e naturalmente há milhares de palavras provenientes da língua de Cícero. A nossa palavra em questão está nesse vasto grupo: provém do termo classici. Segundo Áulio Gélio, ele se referia, em sentido estrito, à primeira das classes instituídas pelo rei Sérvio Túlio. Com o passar do tempo, o sentido da palavra também passou a desiginar aquilo que fosse mais exemplar e elevado. Até hoje dizemos que um "sujeito desclassificado" é aquele sem modos, enquanto o que tem classe é mais digno. Naturalmente, o termo foi sendo utilizado também para designar as obras que eram mais estimadas. Assim, da mesma forma que há várias categorias de cidadãos, sendo que uma delas é a mais elevada (e por isso mesmo a menor, se bem que a mais poderosa), há várias categorias de livros, dentre as quais o seleto grupo dos clássicos. E onde um romano aprendia os clássicos? Na classis, que em português dará a nossa classe. Era através deles que o jovem romano, auxiliado pelo grammaticus, dominava com maior solidez o latim. Ortografia, gramática e, é claro, um mergulho em sua cultura, tudo isso o moço romano aprendia através dos clássicos. Aqui o Senhor Fio da Meada gentilmente pede a mão da Senhorita Digressão, porque o ensino dos jovens latinos muito tem a ver com o que estamos discutindo, leitor, que é o saber escrever. Os clássicos serviam como exemplos para o aprendizado. E, coisa curiosa, o ensino da gramática, segundo os antigos, vinha exatamente acompanhado do ensino literário. Esse verdadeiro legado romano foi largamente utilizado durante boa parte da longa Idade Média.

Do que foi dito, poderíamos fazer a seguinte pergunta: quais autores estariam para a nossa língua assim como Cícero e outros estavam para o latim e Homero e os demais ilustres helenos para o grego? Tendo em vista que as obras clássicas têm a característica de estarem já consolidadas - elas se tornam uma autoridade por si mesmas e pela força da tradição -, citemos só uns poucos nomes como exemplo: Camões, Pe. Antônio Vieira, Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Machado de Assis. É lógico que há muitos outros, e não apenas no campo da literatura propriamente dita: é o caso de Joaquim Nabuco, só para dar um exemplo. Cada um desses autores (e muitos outros) são muito úteis como exemplo do bom modo de escrever, e é muito útil imitá-los como estudo. Com a prática, as construções mais intrincadas e o vocabulário mais nebuloso tornar-se-ão familiares. Nossa compreensão do idioma aumentará aos poucos, e então saberemos nos expressar muito melhor que antes, sem contar que ao mesmo tempo nossa própria cultura literária crescerá.

Leitor, aqui termina a nossa fantasia, mas antes quero dizer mais três palavras.

Vou aos poucos colocando em prática tudo isso que te disse, embora eu esteja seguro da minha defasagem, sobretudo se compararmos com que idade um moço romano já dominava perfeitamente sua língua. O domínio do próprio idioma é uma condição básica para o desenvolvimento cultural, portanto é mais que urgente estarmos largamente familiarizados com ele, ou seja, é vital dominá-lo bem, ainda que às vezes ele nos seja violentamente hostil. É preciso aprender a domesticá-lo.

A discussão acerca do que é um clássico certamente não se encerra com o que eu disse, pois minha intenção era só dizer uma coisinha em linhas bem gerais. Além disso, é importante avaliar até que ponto os clássicos de uma língua estrangeira podem ser úteis para a nossa.

Por último, ainda que eu incorra no pecado de subestimar o leitor amigo, aviso que é claro que a discussão sobre como escrever bem não se esgota aqui. Há outras coisas importantes também. No entanto, achei por bem atacar um dos pontos mais necessários e tradicionais, que é o auxílio dos clássicos.