Thursday, March 12, 2009

A saga de um desempregado

Blogs foram feitos para relatar experiências pessoais, ou essa é a fama que em geral eles têm. Eu diria de outra forma: blog é um dos vários meios pelos quais compartilhamos nossas misérias com estranhos. Somos como uma dessas pessoas que ficam tão loucas para desabafar que não perdoam o primeiro gaiato que aparece na frente, que no caso presente é você, caro leitor. Essa minha observação, aliás, modéstia de lado, é muito interessante, porque costumeiramente tendemos -- inclusive eu -- a considerar blogs como exibicionismo. Isso não está totalmente errado. Blogs, bem como qualquer outro meio de escrita, são, do ponto de vista de quem escreve coisas pessoais, como estar nu em alguma avenida: uns gostam mais, outros menos, mas é exibicionismo. Contudo, o que nesta vida não é vaidade? Não, caríssimo leitor. Meus colegas blogueiros ou eu passarmos determinada imagem, conscientemente ou não, a ti, não é apenas uma questão de identidade. O que está em jogo é um catolicíssimo compartilhar de lágrimas dos degredados filhos de Eva. Desde aquele que exibe suas medalhas ao que aponta para suas dores, tudo é uma busca pelo irmão perdido, a fim de que ele nos acompanhe fraternalmente.

Meu objetivo agora não é fazer o leitor chorar, nem muito menos pretendo reclamar como velho da vida. Imagino que todos nós já sabemos que a vida tem um aspecto bastante complicado. Porém é bom senso ter noção de que não vivemos numa Sibéria stalinista. Nem eu poderia reclamar exageradamente, a não ser para efeitos retóricos; confio no leitor inteligente.

Quarta passada, enquanto eu zanzava pelo Centro do Rio atrás de algo para fazer, dei-me conta da quantidade de pessoas que possivelmente também ficam zanzando com o mesmo objeto no Centro. Neste bairro, diariamente, a quantidade de gente que está procurando algum emprego deve ser realmente muito assombrosa. Dei-me conta disso desde que vi as filas em agências de emprego, cotidianamente lotadíssimas, ou quando vi a quantidade de pessoas que vão aos montes a consultorias de trabalho. Devido à minha própria situação, fiquei mais sensível a essas coisas, da mesma forma que pensei nas pessoas que ficam vagando pelas ruas sem muita razão, após a perda de entes queridos, como Gustavo Corção e eu mesmo já fizemos, ainda que eu não tenha a chegado a agir exatamente como o velho católico, que por um tempo seguia às vezes, como que hipnotizado, transeuntes de madrugada. Mas já dei boas voltas de madrugada como espécie de distração. Não sei muito bem a razão de tal comportamento. Pode ser, talvez, porque achamos de alguma maneira que a pessoa amada e falecida vai cruzar conosco na rua. Porém estou fugindo um pouco do meu propósito neste parágrafo, que é comentar acerca da quantidade nebulosa de pessoas andando no Centro do Rio atrás de emprego. A fim de me repetir, torno a dizer que as agências de emprego são sintomáticas. Há uma delas, governamental, próxima da Igreja de São José. Tenho o hábito de passar ali perto, e não me recordo de um só santo dia em que não tenha visto filas de manhã. É algo que me faz lembrar das históricas filas de desempregados no período do entre-guerras, com a diferença de não aparecerem agitadores profissionais querendo incitar as multidões à revolta. Um fato auxiliar é a quantidade de gentes em locais para concurso público. Essa manada de gente só pode indicar que a insegurança quanto ao emprego é ampla, geral e irrestrita. O outro fator, agências de recrutamento, é também eloqüente. Não cometerei o absurdo de exigir do leitor a ida a uma dessas agências: confie na minha experiência. Fui a uma e fiquei espantado com o enorme número de pessoas indo e indo e indo tão-somente para entregar currículos e pedir qualquer salário baixo – isso quando não diziam que topavam qualquer coisa, usando o termo “a combinar”. O mais impressionante é que pelas conversas eu tive a sensação de que ninguém tinha muita noção do que queria, exceto trabalhar: gente de todas as idades. Aliás, quando a tormenta se acalmou, perguntei à atendente se sempre era daquele jeito, ao que ela me disse que normalmente era muito pior. A sala de espera, se é que podemos chamar assim um local onde só cabem três pessoas sentadas e outras três de pé, parecia um formigueiro. Ninguém ficava muito. Mais lá para dentro, havia essas dinâmicas de emprego que mais me parecem humilhações adicionais criadas por algum sádico contra quem topa tudo por dinheiro. Por amor a um possível emprego, todos se submetem a tudo, o que não é de se estranhar.

Aqui no Centro há o Mosteiro de São Bento. Esse ano, graças a um amigo, passei a freqüentá-lo durante as manhãs, 7h15, umas duas vezes no meio da semana, sempre que minha preguiça é vencida. Gosto de ir andando. Nessas idas, passo geralmente no maior zunzunzum já às 6h20: o mundo se levanta cedo. Fico sempre impressionado com a quantidade de pessoas por essas redondezas. É normalmente gente de todos os cantos da cidade, e isso quando não são de fora. Em meu prédio, por exemplo, há dois porteiros que moram em cidades próximas. Aproveito para dizer que é totalmente falsa a impressão de que cariocas não toleram trabalho: ao contrário, topam tudo e em qualquer horário. A visão das hordas na praia é enganosa. A população em geral não fica só na praia. Suspeito que o problema é que ela não parece ser bem qualificada, para usar um termo econômico. Isso por si não me parece justificar tamanho desemprego, porém não sou especialista nessas coisas. A única pessoa satisfeita com a economia do país é o presidente, porém todos sabem que ele não é autoridade para nada. Por outro lado, é freqüente observar como as pessoas tentam se virar do jeito que dá. É o caso dos vendedores ambulantes. Eles são o maior exemplo de como é falso também supor que o brasileiro, ou pelo menos o carioca, não tem espírito empreendedor. Muito pelo contrário: estamos lotados de espíritos empreendedores, mas que não conseguem avançar de vez por alguma razão que me escapa. Perto do Campo de Santana, na altura da Biblioteca Estadual, há sempre muito cedo uma lanchonete improvisada ao ar livre. Vendem caldo de cana, suco, pastel e sanduíches a trabalhadores. Quando passo por ali bem cedo, jamais deixo de ver uns vinte clientes, sem contar os outros que se dirigem àquele “estabelecimento”. Essa lanchonete improvisada só funciona bem cedinho: pouco mais tarde desaparece, junto com o vermelhidão da aurora. É de se crer que ocorram iniciativas semelhantes em muitos outros lugares.

Conforme eu tenho visto anúncios de emprego, chamou-me atenção a admirável formalização do nome dos cargos. A maioria das pessoas e eu sabemos o que é um faxineiro e um varredor. Contudo, ai daquele que buscar vagas pela Internet com esses nomes! Hoje em dia, por um motivo que me escapa inteiramente, nossos caros faxineiros e varredores se transformaram em um insosso "auxiliar geral. Peão-de-obra também desapareceu: acho que se transformou em “auxiliar de produção". São nomes mais elegantes, sem dúvida, porém totalmente vagos. Isso me parece algum ranço técnico-jurídico ingrato, misturado com o politicamente correto. Os juristas medievais eram mais criativos. Como disse Marc Bloch, algum deles, de veias poéticas, cunhou o termo "feudo do sol" aos alódios, isto é, terras que não eram enfeudadas, desprovidas de encargos feudais. Como eram terras que não foram dadas por ninguém ao seu proprietário, daí a expressão "do sol". Hoje em dia, época da exatidão técnico-matemática e do politicamente correto, expressões poéticas como aquela são inimagináveis no sistema jurídico. O concreto faxineiro se torna um abstrato "auxiliar geral".

Eu, que nunca tive empregos formais, vi-me numa situação inusitada. Ao ter de fazer currículos online, freqüentemente tinha de mencionar um emprego bem específico, o que é normal. Contudo, jamais tinha me dado conta da tecnicidade dos empregos e da pluralidade de funções. Há semanas venho lendo isso e até agora não consegui entender a diferença entre um emprego profissional e um operativo, conforme li nalgum site de empregos. Tampouco sei o que significa a hierarquia auxiliar-técnico-estagiário-júnior-gestor, e que o leitor me corrija se acaso tropecei na hierarquia correta. Dentro do meu mundo, inicialmente há professores e os outros, sendo que dentre os primeiros a gradação se dá pelo título adquirido: isso por si só já é um verdadeiro inferno. Quanto aos outros, até pouco tempo atrás achei que havia o jornalista, o editor, o advogado, o faxineiro, o lanterninha... Porém descubro que há assistentes, que são diferentes dos auxiliares. Há igualmente um bando de júniors, certamente, imagino, antecessores dos sêniors. Para mim, um assistente e um auxiliar são a mesma coisa, porém na tecnicidade empregatícia há diferenças. Se o leitor me permitir uma referência filosófica assaz bizarra, eu chamaria essa explosão de tipos de emprego e especializações de "kantismo empregatício positivista", já que após Kant e positivismo tudo virou objeto de ciência, mesmo as coisas mais inusitadamente irreais. Contudo, faltaria com o bom senso se durante uma entrevista de emprego eu objetasse que tal emprego, mau grado -- faço de bom grado um assassínio lingüístico -- remunerar bem, é um delírio de inspiração kantista-positivista, portanto necessariamente inferior a outras funções. Conhecer monstruosidades lingüísticas como “endomarketing" só me causam furor e ressentimento. Calo-me quanto a empregos cujos significados, a partir do nome, são ininteligíveis, ainda que bem remunerados.

A minha situação só me tem confirmado aquilo que eu já havia percebido: sou pária. Aparentemente, estou um pouquinho acima da média educacional, porém um pouquinho abaixo da excelência do ensino superior. Vivo portanto num intramundo, e aqui, gentil leitor, não há empregos. Se eu fosse um ex-clérigo, vivesse enfurnado num bar e amasse vagabundear pelas estradas e saias alheias, talvez eu poderia ser um goliardo, se é que isso significa pertencer a uma classe. Estou muito mais próximo do clérigo que disse a Raimundo Lúlio que havia passado a juventude estudando e esmolando. Seria esta situação, aliás, concebível para nossa imaginação, um estudante universitário literalmente mendigo? Só consigo imaginar algo parecido a partir das pobrezas estudantis russas de Dostoievski. Atualmente conseguimos ser universitários sem piolhos, sem lepra e, o que é melhor, cercados de belas universitárias, ainda que isso varie dramaticamente de curso para curso: eu, por exemplo, desde meus tempos de segundo grau de Eletrotécnica, jamais tive a sorte de estudar com beldades.

Daqui do intramundo observo o quão distante é a perspectiva de emprego de um intelectual de quem não é intelectual. Se um historiador do futuro investigasse nossa época, analisando que tipo de emprego costumeiramente era oferecido em 2009, talvez ele concluísse que nós éramos criaturas excepcionalmente inteligentes, posto que aparentemente ninguém quer saber mais de professores ou qualquer coisa desse gênero. Há milhares de cargos para “auxiliar geral”, para técnico de informática, jornalista... A demanda de cargos burocráticos ultrapassa o infinito. E para quem quer dar aulas? Só se for de idiomas. Obviamente isso é um exagero retórico: a questão é a baixa quantidade de cargos daquele tipo. É também óbvio que existem mais varredores que professores, mas isso não explica a inacreditável baixa demanda. Existe realmente um abismo entre intelectuais e a população em geral, de modo que o contato entre eles é puramente acidental ou cercado de misticismo de ambas as partes. O povo é uma coisa que o intelectual vê de longe, enquanto o intelectual é algo que escapa completamente do horizonte do povo. Não que isso seja totalmente estranho por si: o problema é que por essas bandas a situação é muito dramática. Mas estou já escapando do assunto.

Como só podemos viver no intramundo comendo e bebendo o que as pessoas do mundo comem e bebem também, não dá para ficar contemplando aristotelicamente a realidade. Porém as pessoas no mundo exigem qualificações excessivamente formais ou se agrupam em convênios: ambos, em português bem claro, significam tão-somente armação e boquinha. Os “superiores” usam de esperteza a fim de restringir o acesso aos seus cargos. Qualificações excessivamente formais e convênios são seu escudo protetor contra as hordas vindas do inframundo. Aliás, o mesmo se dá com concursos públicos: são a chance dos “superiores” viverem tranqüilamente. Assim, um concurso público que exige 2° grau e que dá todo o tipo de benefícios a quem passar será disputado preferencialmente pelos “superiores”: o mesmo ocorre em concurso que exige tão-somente 1° grau. Na realidade, concurso público é a boquinha dos “superiores”. Os que estão entre os “superiores” e não conseguem participar da boquinha vão ocupar cargos imediatamente inferiores, supostamente destinados aos do inframundo, e os que estão no inframundo mas são melhores que seus companheiros vão ocupar os cargos destes. Os últimos, no fim das contas, vão pastar e comer grama. As regulamentações a fim de proteger os direitos dos trabalhadores servem apenas para dificultar contratações e arremessar todo mundo na rua o mais rapidamente possível. A acrescentar as autênticas sacanagens empregatícias, é de se espantar como chamam tudo isso de exemplo autêntico da maldade inerente ao capitalismo, quanto é apenas exemplo de pega-pra-capar tupiniquim.

Dizendo assim, até parece que meu caso específico é culpa da maldade ambiente. Não é bem assim. Como esse blog não é um confessionário, não devo me dirigir ao leitor como se você fosse meu padre confessor. Digo tão-somente que, dada a situação ambiente, eu também fiz questão de me enrolar. Creio que ter escapado heroicamente da universidade não foi uma ação virtuosa. Certamente as universidades têm problemas muito graves, porém a solução não me parece fugir, ainda mais quem não tem muitas fontes de renda. É uma simples questão de bom senso. Sou o primeiro a dizer que freqüentemente topamos com situações deprimentes em faculdades, mas também quero ser um dos primeiros a dizer que cada faculdade é um microcosmo: o que ocorre na faculdade de História da UFRJ é diferente do que ocorre na da UFF. E mesmo em cada uma delas existe um tremendo saco de gatos. Passados quatro ou cinco anos sem pôr os pés numa sala universitária, hoje tenho melhor noção dos problemas que o positivismo trouxe aos estudos. Eles chegam a ser ininteligíveis para quase todo mundo, tal é a influência dos seus pressupostos metodológicos aparentemente sensatos e humildes. As opiniões e estudos esquerdistas certamente estão bem disseminados e são irritantes. Todavia, uma faculdade não é só isso: bem ou mal, determinadas coisas você só conhecerá, ou pelo menos conhecerá mais facilmente, numa faculdade. Ademais, digo por experiência própria que se na universidade já ficamos angustiados por encontrar pouca gente disposta a estudar verdadeiramente assuntos amplos, fora dela é virtualmente impossível encontrar alguém. Não acho essa concentração toda benéfica: a academia nunca poderia ter o monopólio do que é intelectual. Mas sejamos práticos: a verdade é essa. Em termos gerais, vida intelectual não existe fora dos muros da universidade, pela simples razão de a maior parte das pessoas simpáticas ao estudo estarem nas universidades. Posso estar enganado, porém nas atuais condições a universidade, mesmo do jeito que está, é, no final das contas, um lucro. Há também o problema tradicional da confusão entre estudo acadêmico e estudo academicista. O primeiro é um autêntico estudo superior, enquanto o segundo é tão-somente sua cópia exterior. Como macaquear é mais fácil e cômodo, onde não houver seriedade haverá academicismos. Tudo isso é de conhecimento geral, mas é necessário enfrentar a selva e reter o que vier de bom.

Meus gostos históricos são bem variados: vão desde a Antigüidade até Segunda Guerra Mundial. Sei muito bem que este último assunto, na UFRJ, foi tomado por loucos esquerdistas, de modo que é impossível estudar adequadamente o assunto. Por outro lado, estudos sobre a vida de Jesus foram tomados por outros loucos, esquerdistas ou não. Em se tratando da minha faculdade de Histórico, busco me ater ao meio termo, ou melhor, na Idade Média, não toda, é claro. Também por experiência pessoal vi que é possível estudá-la sem cometer indecências. O fato de haver uma propensão enorme a se estudar meia dúzia de autores franceses não é um problema tão grave. Nenhuma dessas coisas serve de impedimento grave aos meus estudos, exceto circunstâncias externas, isto é, conseguir novamente minha matrícula e ter condições materiais para me manter estudando e vivendo adequadamente.

Se eu tivesse tido essas precauções eu não estaria tão enrolado. Mas “o tolo só aprende por experiência”, nos dizeres de Homero. Vejamos se consigo levar adiante o que aprendi com minhas tolices.

Friday, March 06, 2009

Do último post do Omayr

O blog do Omayr é um dos mais felizes que há. Sempre há textos muito interessantes, ou citações muito boas. Porém eu gostaria de convidar o amigo leitor a ler seu último post, um relato pessoal, que está magnífico.

Wednesday, March 04, 2009

Divórcio e barbárie

(Nota: Mais um post requentado.)

Provavelmente o leitor acharia muito estranho se um filho fosse ao cartório para anular sua união com os pais ou vice-versa. Isso não seria menos esquisito se ocorresse com nossos irmãos, tios, primos, avós, etc. Mas é bem possível que o leitor não estranhe tanto se um marido insatisfeito fosse ao mesmo cartório para anular suas ligações com a esposa. Estamos tão habituados com a idéia de divórcio que ela se tornou algo tão natural quanto o Corcovado.

O que é o casamento? É a união indissolúvel entre marido e mulher, visando constituição de família. Atentemos para a palavra “indissolúvel”: se é assim, então onde fica o divórcio? Não fica; aliás pode até ficar no caso do casamento civil. Pois o Estado até matrimônios gere, como se não bastasse sugar nossos míseros centavos a cada mês com dezenas de impostos, obrigatoriedade do voto, do serviço militar... Até violar seus cidadãos quando mortos, sob o pomposo nome de “autopsia”, ele quer. Só que, em se tratando de casamento, o Estado não supre uma peculiaridade desta união. É que a Igreja une sob os auspícios de um dom sobrenatural, criando no instante dos votos um parentesco que não foi o de nascimento. Assim, por causa desse dom, os nubentes vêem suas famílias crescer: surge uma segunda mãe, um segundo pai, um segundo primo, um segundo avô etc. etc. Quando um casal se une desse modo, pode-se dizer que cada um se casa com a família do outro. E o resultado dessa união, realmente espantosa, é a junção de várias pessoas em uma só: de um pouco de sangue de cada família surge uma nova criaturazinha, que é conclusão concreta (melhor: carnal) dessa união. Eis que a ligação de sangue sobrenatural se desdobrou e criou uma ligação carnal em forma de pessoa. A palavra empenhada ao pé do altar se fez carne: é o nascimento da criança.

Se pai e mãe são tão parentes quanto primo e tia, como é possível haver o divórcio? Só pode ficar no casamento civil, que une sem unir. Não quero dizer com isso que os anjos não desceram dos céus e transformaram a união de duas pessoas no cartório no principal acontecimento do universo naquele exato instante. E se várias pessoas se casam ao mesmo tempo, então por um mistério também cada uma será o centro do universo. Porém o que eu quero dizer é que o Estado não tem o poder sobrenatural para sacralizar esta união. Tenho um certo receio de usar a palavra “conveniência” para explicar isso, pois dá margem a equívocos. Se o leitor tiver boa vontade, entenderá que com isso digo que o casamento em cartório acaba se baseando em formalidade jurídica, um assinar de papéis, embora um assinar de papéis todo especial. Mas é apenas ali no papel que está a salvaguarda do casamento. E sabemos como papéis são frágeis.

Há um agravante nesta já insólita situação, que não sei dizer se filosoficamente é causa do movimento ou final disso tudo. É o problema da palavra empenhada. Antigamente, quando quase ninguém sabia escrever, só alguém muito original consideraria indispensável um contrato por escrito e assinado para empenhar um juramento. Em épocas muito remotas, as pessoas juravam nas e pelas coisas mais insólitas: água, vinho, fogo... Até os coitados dos santos eram empenhados, ou as mães. Coitados de ambos! Esses hábitos até hoje podem ser vistos na nossa própria sociedade, ainda que tenham perdido a freqüência e importância original. Em pleno século XX, meu avô, segundo lendas, quando empenhava a palavra, dizia também que jurava pelo seu bigode, pois aquilo era a prova de ele ser um homem, e homens não quebram a palavra. Bigode! Não sei dizer se ele se viu muitas vezes com o bigode aparado; em todo caso, é um exemplo engraçado de como essas coisas permaneceram até os dias de hoje.

Devemos acrescentar na nossa breve história dos juramentos que eles sempre tinham um caráter sagrado. Ninguém escolhia a água por ela ser uma substância intrigante ou o vinho porque o juramento era coisa de gente bêbada. Jurava-se sob a água porque muitos acreditavam que no princípio tudo era água, sendo as coisas agora compostas substancialmente por ela – era a substância mais importante que existia. Ou o fogo, segundo outros. Quanto ao vinho, não sei dizer o motivo, mas imagino que tenha alguma relação com Baco ou outro deus. Além disso, não podemos esquecer que a palavra, por si só, é um atributo que os deuses gentilmente nos emprestaram. Se atentássemos para a sua importância, pensaríamos cinco, dez vezes antes de usá-la. Então o juramento é (ou era, se formos muito pessimistas) algo muito especial e até misterioso, sagrado quanto à sua natureza. Quebrar uma promessa, um pacto, só gente impiedosa, só gente completamente afastada da civilização, só teria coragem um bárbaro.

E o que seria o divórcio senão uma quebra de um juramento? Para piorar a situação, um dos mais importantes juramentos que duas pessoas podem fazer? Não é verdade que apenas os bárbaros não empenham seriamente a palavra? Pois aí está, leitor: nós somos incivilizados, impiedosos, pois em uma quantidade absurda de casos, além de não pensarmos no absurdo que é o desligamento de um laço de parentesco, não levamos a sério nossos próprios votos. Não medimos as conseqüências da nossa própria palavra empenhada e não hesitamos em quebrá-la quando melhor nos convém. Elegemos a eficiência como o mais soberbo princípio e, a partir daí, vivemos na mais medíocre prática de conveniências, de egoísmos e do amor-próprio. Esse problema é tão grave que chega a ameaçar uma sociedade. Se do ponto de vista individual cria inimizades, de um ponto de vista mais geral o juramento se torna uma prática vazia. A sociedade acaba aceitando o império universal da desconfiança. Por que não poderia alguém se “divorciar” da sociedade e, por razões de conveniência, realizar um golpe de Estado e rasgar a Constituição? E o que impediria, em um mundo assim, de um país quebrar tratados cuja tinta que serviu para sua assinatura mal secara? É o mundo das traições, das apunhaladas, dos advogados e promotores em número absurdo, do medo, da desconfiança e do descrédito. É a volta a quatro patas a um estado primitivo, onde tudo parece conspirar contra nós.

Tuesday, March 03, 2009

O sultão e o Anjo da Morte

(Nota: Já publiquei esse texto, mas decidi reescrevê-lo parcialmente. No futuro escreverei uma segunda versão com um final levemente alterado.)

Contarei a vocês, amigos, uma história oriental. Não é minha: faz parte desse conjunto de lendas que simplesmente brotam das névoas da história, portanto verdadeiras em espírito. O fim é meio abrupto, mas não contarei a moral.

Certa vez o sultão contemplava orgulhoso e solitário a sua cidade da varanda de seu enorme palácio. Toda aquela opulência lhe parecia a manifestação e testemunho de sua própria glória, como se uma idéia grandiosa tivesse sido atualizada por uma pessoa semelhantemente grandiosa, um milagre que havia se tornado ato em todos os pormenores. Certamente não havia cidade em todo orbe tão bela quanto àquela. Essa contemplação tinha traço de Narciso, porque ao olhar a cidade ele via tão-somente a si mesmo. Todavia, eis que de repente o sultão sentiu um calafrio tremendo, prenúncio de toda a calamidade. Do alto da abóbada celeste escura e estrelada, desceu, tal como um raio, um anjo de beleza terrível. Não era uma criatura qualquer, mas aquele que é a boca de Deus para o flagelo. Estava ali o Anjo da Morte. E o sultão estremeceu. Com uma voz indescritível, logo disse o Anjo: "Ó homem, eis que Deus me enviou para te anunciar terrível desgraça. Prepara-te, pois tocarei a tua cidade como jamais fora antes tocada." Tendo ouvido tão sinistro oráculo, o sultão lhe respondeu: "Que fiz de mal? Ora, diga-me conforme a verdade: quantos hão de tombar? Se foi o Senhor que te enviou, então pela graça de Deus misericordioso te rogo para que me digas!" Falou o Anjo: "Cinco mil tombarão nas próximas semanas de doença terrível. Prepara-te e te alegra, ó homem, porque nem sempre é dado conhecer a extensão da própria desgraça. Tu és pecador, mas Deus é fiel." E voltou aos céus o Anjo da Morte.

Mal tendo desaparecido o Anjo, o sultão, homem extremamente prático como todos bons governantes devem ser, tratou de expedir ordens o quanto antes para que a cidade suportasse o flagelo vindouro. As ordens eram dadas com certa melancolia, pois ele considerava a empresa difícil e o fato vindouro brutal. Mas não se discute a vontade de Deus. A cidade foi preparada, na medida do possível, para suportar a calamidade iminente.

A semana seguinte chegou e as pessoas começaram a morrer. O sultão, bastante apreensivo, observava os acontecimentos e agia de acordo com suas possibilidades, sem jamais deixar de contabilizar o número de mortos: estava certo que a desgraça cessaria tão logo a quantidade de almas mencionada pelo Anjo subisse aos céus. Na primeira semana Deus chamou aos céus setecentas almas. Na segunda foram mil e quinhentas. Na terceira foram mais mil. O pânico era generalizado. O espírito do povo sofria golpe atrás de golpe. E não cessava de morrer gente até que houve um total de mais de trinta mil mortos em pouco mais de um mês, o que deixou indignado o sultão, que repetia de si para si: "Para o inferno aquele demônio mentiroso!" Eis então que novamente o Anjo da Morte apareceu e lhe perguntou: "Ó homem, por que blasfemas?" Respondeu-lhe o sultão: "Tu me enganaste, demônio! Falaste que cinco mil homens tombariam de doença terrível. Ora, em pouco mais de um mês morreram mais de trinta mil!" Disse-lhe o Anjo: "Decerto, ó homem, cinco mil tombaram de peste terrível." O sultão, ao ouvir tais palavras, sentiu o coração queimar, e sua alma se inquietou, e uma ira aparentemente justa se apossou dele. Exasperado, disse, com a voz irada: "Zombas de mim, maldito cão dos infernos! Seis vezes mais homens tombaram do que isso!" Então lhe respondeu o Anjo da Morte: "Ó homem de pouca fé e insensato, que duvida do aviso do céu! Celerado! Cinco mil tombaram de peste. O restante, em verdade vos digo, o restante morreu de medo da peste."

Monday, March 02, 2009

Da Igreja e o comunismo

Olavo de Carvalho, tanto no True Outspeak de segunda última, bem como em muitíssimas ocasiões, tem dito que a Igreja silenciou publicamente acerca da perversidade do comunismo desde o último concílio. Essa acusação, no entanto, está longe da verdade. A tal ponto a Igreja condena pública e expressamente o comunismo que no próprio catecismo há referências a malignidade do comunismo.

Está claramente dito, na seção acerca do sétimo mandamento, que o comunismo e o socialismo são pecados contra este mandamento, e contrários à doutrina social da Igreja:

512. O que é que se opõe à doutrina social da Igreja?

2424 – 2425

Opõem-se à doutrina social da Igreja os sistemas económicos e sociais que sacrificam os direitos fundamentais das pessoas ou que fazem do lucro a sua regra exclusiva ou o seu fim último. Por isso, a Igreja rejeita as ideologias associadas, nos tempos modernos, ao «comunismo» ou às formas ateias e totalitárias de «socialismo». Rejeita, além disso, na prática do «capitalismo», o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano.


Isso significa que todo católico deve (ou deveria) saber que professar o comunismo é um pecado grave, e que a Igreja está clara, visível e inequivocamente em combate contra o comunismo, como aliás sempre esteve. Ora, o pecado contra o sétimo mandamento não é o único mal do comunismo. Sendo uma ideologia atéia, e sendo o ateísmo igualmente um pecado gravíssimo, o comunismo é uma afronta ao primeiro mandamento:

445. Que proíbe Deus ao ordenar: «Não terás outros deuses perante Mim» (Ex 20,2)?

2110-2128
2138-2140

Este mandamento proíbe:

- o politeísmo e a idolatria, que diviniza uma criatura, o poder, o dinheiro, e até mesmo o demónio;

- a superstição, que é um desvio do culto devido ao verdadeiro Deus, e que se expressa nas várias formas de adivinhação, magia, feitiçaria e espiritismo;

- a irreligião, expressa no tentar a Deus com palavras ou actos, no sacrilégio, que profana pessoas ou coisas sagradas sobretudo a Eucaristia, e na simonia, que pretende comprar ou vender realidades espirituais;

- o ateísmo, que nega a existência de Deus, fundando-se muitas vezes numa falsa concepção de autonomia humana;

- o agnosticismo, segundo o qual nada se poder saber de Deus, e que inclui o indiferentismo e o ateísmo prático


Sendo o comunismo ateu e contrário à doutrina social da Igreja, aquele que o professa está queimado em pelo menos dois mandamentos. Todavia, o comunismo também é uma idéia genocida, totalitária, contrária à família e às autoridades legitimamente estabelecidas, promovedor de discórdias, inimigo da propriedade privada e defensor de muitas outras coisas absurdas. Portanto, logicamente ele está em choque contra virtualmente todos os mandamentos de Deus, não havendo sequer necessidade de sempre repetir a palavra "comunismo" em cada exemplo de pecado contra os mandamentos.

Como tudo isso é dito expressamente no próprio catecismo, que é ensinado a todos os fiéis do mundo inteiro, fica evidente que a Igreja permanece em combate feroz contra o comunismo desde sempre e com toda a sua força, não sendo verdade, pois, que a partir do último concílio ela deixou de condená-lo. Tudo isso é de conhecimento básico para todo católico.

Por fim, eu gostaria de dizer que já vi missas em que padres condenavam explicitamente o comunismo. É verdade que já vi uma missa em que um padre criticava a propriedade privada, como se ela fosse pecaminosa de fato, porém esse pretenso ensinamento é um absurdo total, claramente contrário ao catecismo da Igreja, que, ao contrário, considera a propriedade privada legítima, desde que fundada na justiça. Ademais, infelizmente sempre houve heresiarcas no seio da Igreja, mas ela sempre soube defender o depósito da fé da maneira mais sábia e inequívoca. Por mais terríveis que sejam os inimigos da fé e por mais que eles cerquem a Igreja, ela nunca se deixou acovardar nem se amesquinhar: todos os erros em todos os tempos foram combatidos com bravura e nunca deixaram de ser denunciados pelas principais autoridades sacerdotais. Acusar a Igreja atualmente do contrário está em desacordo com a tradição e bem longe do que tem acontecido na realidade.