Nesta semana eu recomendo ao leitor a audição de uma bela e famosíssima peça para coro: Miserere mei, Deus, de Gregório Allegri. Esta obra, composta em 1638, possui como letra o Salmo 50 (Miserere), segundo a edição da vulgata.
Há muito tempo que os compositores musicam o Salmo 50. Um exemplo remoto é o famoso Josquin Des Prés (c.1450-1521), que compôs um Grande Miserere. Infelizmente não posso dizer muita coisa a respeito desta música porque nunca a ouvi, mas ela é geralmente bastante estimada.
Segundo Carpeaux em seu O Livro de Ouro da História da Música, o Miserere de Allegri é cantado na Capela Sistina na quarta-feira da Semana-Santa (imaginem isso!). Seus originais eram um segredo: durante séculos era expressamente proibido copiá-los. Daí que tal obra foi por dois séculos uma das principais atrações turísticas de Roma. Aliás, o próprio Mozart o ouviu quando tinha 14 anos – e a notou de memória...
A música é para dois coros: um de quatro vozes, outro de cinco. Portanto, policoral. Começa com todos cantando em uníssono, para tão logo se alternarem. O que não quer dizer que em vários trechos não voltem a se encontrar, como se estivessem os ressaltando. Em certas passagens, quando apenas um dos coros canta, não há como não lembrar do velho coro gregoriano, como se ele fosse “citado”. O que é interessante é o fato de apenas um dos coros passar esta impressão. O outro já não canta da mesma forma. Dá para notar uma pequena polifonia nele, que por isso eu o chamarei muito impropriamente de “não-gregoriano”, em pequeno contraste com o outro. Mas é bem pequena, quase discreta, esta polifonia dentro dele. Ou quem sabe não foi apenas impressão minha? E tudo isso sem contar que em certas passagens uma das vozes se separa do restante do coro e, exprimindo um tom belo e ao mesmo tempo bastante sentido, produz um atordoante clímax. É algo cativante.
Se o leitor conhecer alguma música de Palestrina, como por exemplo aquela Missa Papae Marcelli (cantada após as cerimônias que iniciam a Páscoa), que indiquei há posts atrás, perceberá que ambas as músicas são a capela. Elas também possuem em comum a declamação clara do texto, ainda que sejam polifônicas, ressaltando de maneira belíssima até mesmo as sílabas do que cantam. Daí que não é muito lícito afirmar que elas são apenas uma declamação, porque elas vão um pouco mais longe. Não quero entrar na questão se isto é uma certa “ousadia contida”, algo como tentar ir o mais longe possível que uma música deste tipo– excelente música – pode permitir. Mas tanto uma como outra pertencem seguramente ao recinto religioso. É um grande exemplo da não menor influência de Palestrina na música da época.
É importante ressaltar o fato de ser uma música destinada à declamação clara, ainda que polifônica, de um texto religioso, porque isto explica uma relativa monotonia do Miserere, assim como da Missa Papae Marcelli e demais do gênero. O que importa é que estas músicas sejam construídas de forma sóbria, artisticamente sóbria, com base nos textos sacros, sem apelar a muitos “contorcionismos estilísticos”. Um Bach, por exemplo, é totalmente diverso deste espírito musical, estando muito aparentado com os compositores góticos anteriores a Palestrina, na opinião de alguns críticos. Daí a curiosa expressão “Bach gótico”, segundo alguns. E este artifício permite que ela conquiste uma profundidade emocional grande, condizente ao espírito religioso católico. Que o leitor ouça a tão citada missa de Palestrina, pois ela é o exemplo claro deste estilo, ainda que segundo alguns não seja o que o compositor fez de melhor. Por isso que “ouso” afirmar que alguém que não seja católico ou possuído de ideais semelhantes provavelmente não compreenderá bem um Miserere, até porque, como cansei de dizer, o seu espírito reporta a “aura” do salmo 50, que é um pedido de perdão a Deus. Achará enfadonho, tanto quanto talvez ache aquele salmo. Aliás, é divertido comparar esta música com aquelas dos “padres showmen” e a importância demasiada que vários dão ao fator “descontração” na missa. É como se o vale de lágrimas desse lugar ao trem da alegria. Mas não tenho realmente uma opinião sobre isto, então deixemos de lado estas considerações.
O leitor curioso poderá baixar o Miserere de Allegri aqui. Semelhante àqueles que peregrinavam até Roma apenas para ouvi-lo, entre no link e pegue o diacho da música. Terá a dupla vantagem, com relação aos antigos, da ínfima despesa e máximo conforto. E vá logo, pois sabe-se lá deus até quando esta oportunidade haverá. E sim, não te esqueça que o salmo está em latim.
PS: Que interessante: uma obra que por séculos apenas em Roma poderia ser ouvida, agora nós, pela Internet, podemos encontrá-la facilmente.
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