Saturday, December 30, 2006

Cardeal Renato Martino, com pena de Saddam, pede clemência pelo ditador

OBS: Talvez eu mude alguma coisa nesse texto. Não o revisei. Não que eu costume revisar o que escrevo. Mas é que este foi escrito meio às pressas e com ira.

Geralmente guardo só para mim certas discordâncias quanto a opiniões do Vaticano sobre política atual, mas agora não consegui. Porque achei o fim da picada este cardeal pedir clemência para o Saddam.

Mas que palhaçada é essa? Se tem que pedir clemência, que seja a Jesus Cristo! Ele sim pode perdoá-lo, porque no nível da justiça humana não há a menor possibilidade, em minha opinião, de perdoar um homem como esse. Quer dizer, se ele fizesse uma maldade comigo, talvez eu pudesse até perdoá-lo. Cada pessoa que já foi torturada por Saddam também poderia vir a perdoá-lo, como queira. Mas seria no mínimo uma bravata se eu o perdoasse por ter feito um mal a outra pessoa. Pelo menos é assim que entendo o ensinamento de dar a outra face. Posso dar a minha outra face, não a do outro. Porque senão a única justiça que haveria seria a do diabo. E num caso como o do Saddam, a única pena justa é sem dúvida nenhuma a pena de morte. Não há nenhuma outra pena equivalente às brutalidades que ele cometeu. Que ele seja entregue à justiça divina, porque do ponto de vista humano não há mais nada a fazer por ele.

Estou de saco cheio de um tipo de conversa fiada que chamo de "embora". É sempre assim. Quando alguém quer ser muito bondoso, até mais da conta, sempre começa com um "embora eu saiba que fulano matou várias pessoas, você há de convir que..." Outro dia mesmo eu estava conversando com alguém que veio com esse papo: "Olha, embora eu seja contra genocídio, você tem que entender que Stálin não tinha muitas alternativas". Que maravilha! O sujeito é tão racional e bondoso que chega a ver algo de justificável num genocídio! Conforme li num blog dia desses, o séc. XX esteve repleto de pessoas bondosas assim. Tão bondosas que não sabiam nem que estavam na prática agindo mal.

Sujeitos assim querem sempre posar como mocinhos que sabem reconhecer os dois lados da questão. São os justos. Para falar a verdade, se dependêssemos do senso de justiça do Vaticano, assim como do Brasil, China e Rússia, ainda haveria gente sendo morta ou tendo membros amputados ou quebrados no Iraque, conforme você poderá ver neste vídeo. Por causa desse maravilhoso senso de justiça, Cuba está como está, assim com a China. Enfim, na prática o "embora" é um aval a sofrimentos e humilhações sem fim. (Não duvido nada que o "embora" seria usado pelo cardeal Renato Martino a respeito de uma ação urgente e vigorosa no Sudão.)

Também estou de saco cheio desse papo sobre como é ruim os EUA serem a polícia do mundo. Se um país tem a capacidade de parar de uma vez por todas as atrocidades cometidas por outro, por que então não faria nada? Se eu tenho como impedir que meu vizinho espanque seu filho, por que eu não faria nada? Pelo contrário: seria imoral se eu desse qualquer tipo de desculpa para não agir, da mesma forma que seria imoral um país se recusar a ajudar a população de um outro que acabou se tornando refém de seu próprio governo.

Esse problema é discutido melhor pelo Mons. Dr. Emílio Silva de Castro em sua Doutrina Católica sobre as Relações entre Igreja e Estado. Conforme ele mesmo escreveu,

Não é possível, por exemplo, permitir que um povo seja esmagado, exterminado, v.gr. em nossos dias na Ruanda ou Bósnia e Cuba, quando há meios de protegê-lo. Foi contra os propósitos e contra alguns excessos intervencionistas da Santa Aliança que surgiu em certos meios o princípio da não-intervenção. Sem embargo, este princípio é tão ineficaz e às vezes tão desumano que, na realidade, nunca foi estritamente observado.

Em um caso de guerra, esta começa com dois países, no dia seguinte, já são quatro, e logo são inúmeros, como aconteceu na última guerra. E quando um país, como sucede muitas vezes, não quer intervir, é forçado pelos outros. O poderoso sempre intervêm onde quer, e se não é pelas armas, é pela guerra fria, pela propaganda, pelo suborno.

Segue-se do dito que o princípio da não-intervenção se bem seja falso quando se toma na universalidade de sua enunciação, em vários casos é aceitável, e seus transgressores são réus de grave injustiça. assim, quando um país se comporta normalmente com outros países, sem estar lesado nenhum de seus direitos e no regime interno respeita as vidas e direitos naturais dos cidadãos, seria inteiramente contra a justiça a intervenção naquele país com o fim, por exemplo, de mudar seu regime ou usurpar-lhe a soberania. Assim imaginemos que os Estados interviessem no Panamá ou em outro Estado pequeno qualquer, para obrigá-lo a mudar de regime, sem causa alguma justificável, simplesmente porque o atual não é do agrado de Washington; isto constituiria um ato de intervenção imperialista e iníquo, sem justificação possível. Há, porém, muitos outros casos em que a intervenção é obrigada ou, quando menos, legítima, em se tratando da defesa de valores superiores, gravemente ameaçados.

Outro exemplo esclarecerá esta doutrina: todos sabem que existe um direito, protegido pelas leis do Estado, que é a inviolabilidade do lar. Ninguém, sem mandato judicial, pode penetrar no lar alheio. Se, porém, um homem está matando algum de seus familiares, dentro de sua casa, e a vítima gritar pedindo socorro, a intervenção torna-se não só justa, mas indispensável. Este é o caso de um povo no meio do qual estoura uma revolução cruenta. É natural que outros países intervenham se têm meios eficazes para controlar a revolta. No caso de Cuba, para citar um exemplo, nós justificaríamos a intervenção eficaz armada contra o governo revolucionário com o fim de salvar os direitos dos cidadãos e as vidas de muitos inocentes, que morreram em mãos do tirano. Não obsta, no caso, o princípio de autodeterminação, que, bem entendido, com certas restrições é perfeitamente legítimo. Não obsta, digo, porque o verdadeiro sentido da autodeterminação refere-se aos povos, não aos que por qualquer circunstância detêm o poder. Em Cuba não existe a autodeterminação do povo cubano, privado de voz e de representação. Só existem as autodeterminações do ditador que subjuga a nação e asfixia sua voz.

Em geral, a intervenção será sempre legítima nos dois casos seguintes, para a defesa dos direitos próprios do Estado interveniente e para tutela das vidas, ou dos direitos naturais dos súditos do Estado intervindo, justificada pela solidariedade humana universal. No Syllabus* foi reprovado o princípio da não-intervenção por lesar o mais geral e válido princípio cristão da caridade, que liga a todas as pessoas físicas ou morais, iguais ou desiguais. O que antecede faz referência particularmente aos casos de sociedades iguais, como o são duas nações, ambas sociedades civis e de fins temporais.


Pior de tudo é que não é de hoje que o Vaticano, sob pretextos de justiça, mete os pés pelas mãos a respeito da ditadura iraquiana. Em 1999, o arcebispo Jean-Louis Tauran disse que era preciso voltar a integrar o Iraque na comunidade internacional porque "isolar um país nunca é bom". Ele tinha essa mesma opinião a respeito de Cuba e Líbia. Nessa tentativa de se aproximar do Iraque, o Vaticano tinha a companhia de Rússia e França (e, quem sabe, da China). Já em 1998, a respeito de um bombardeio dos EUA no Iraque, L'Osservatore saiu-se com essa: ofensa contra a população iraquiana e contra a humanidade. O próprio papa João Paulo II disse em 2004 a Bush: É desejo claro de todos que essa situação seja normalizada o mais depressa possível, com a participação ativa da comunidade internacional, em particular das Nações Unidas, para restituir rapidamente a soberania do Iraque (grifos meus). Ora, o que a comunidade internacional, o Vaticano, e em particular as Nações Unidas mais fizeram foi retardar ao máximo a guerra contra um regime brutal e, uma vez ela havendo, evitaram que a situação fosse normalizada o mais depressa possível, seja simplesmente não oferecendo auxílio de peso, seja sabotando os esforços do governo americano em demonstrar a justeza do conflito.

Que as nações em geral metam os pés pelas mãos, é já de se esperar. Que o Vaticano cometa os mesmos equívocos, isso não se pode tolerar. Quando as coisas chegam a esse ponto, é difícil ter esperança de alguma coisa. Só nos resta rezar.

PS: Além do vídeo já linkado acima, assista também a este e este. Mas antes de assisti-los, recomendo prudência, pois as imagens são muito fortes. São todos muito brutais, mas servem como uma espécie de ensinamento, tal como as imagens de campos de concentração nazistas. Depois de vê-los, sugiro também que você os compare com todas aquelas fotos e vídeos de soldados americanos colocando calcinhas na cabeça de iraquianos ou despindo-os e medite sobre a indignação mundial contra os EUA a esse respeito, ao mesmo tempo em que esses mesmos indignados não disseram nenhuma palavra a respeito daqueles vídeos, incluindo o cardeal Renato Martino.

*O Syllabus é aquela famosa encíclica que reúne uma série de proposições consideradas errôneas do ponto de vista doutrinário. O texto faz referência a proposição 62: "É correto proclamar e observar o princípio que chamamos de não-intervenção." Ora, intervenção geralmente significa guerra. Portanto, é um equívoco e uma imoralidade não levar as armas a um país tirânico e brutal em nenhuma hipótese. O Vaticano, na ânsia de promover um pacificismo a todo custo, parece que esqueceu o que ele mesmo havia nos ensinado.

1 comment:

Cassiano Farias said...

André, vou ter de fazer um comentariozão a respeito do que você disse. De repente você tem até a mesma opinião. Espero que não durma no meio.

Não acho nenhum pouco errado discordar da opinião política de um cardeal, pelo menos desde que não seja uma espécie de cavalo de tróia para um ataque à fé. Por exemplo, se alguém critica a Igreja porque ela vê com maus olhos Cuba (parece que não vê, já que o próprio cardeal Martino ficou todo deslumbrado em sua viagem por lá), isso é um ataque velado à própria Igreja, queiramos ou não, e por conseguinte à fé.

Por outro lado, não me agrada nenhum pouco ser mais um que critica por algum motivo o Vaticano. Nem digo essas coisas por me achar superior ao cardeal. Muito pelo contrário. Justamente por saber da minha limitação e da excelência de um cardeal, fiquei surpreso com o que ele disse (e não foi a única vez que disse algo dessa natureza), fazendo coro com países como China, Rússia e o nosso. Não é querer ser mais cardeal que o cardeal. É apenas comentar sobre algo que não me pareceu correto.

Em termos práticos, se você nada disser a respeito de coisas como essa ou, então, teimar dizendo que criticar nesse sentido um cardeal cheira a heresia, você apenas está fazendo o jogo de quem realmente não gosta da Igreja. É um tipo de não-me-toques completamente daninho. Parece até coisa feita de caso pensado.

Não sei e nem poderia dizer nada sobre as intenções do cardeal. Só acho esquisito. E veja você que ainda assim estou dizendo essas coisas cheio de dedos.

É completamente errado imaginar que isso cheira a heresia, pecado ou o que for. Por que criticar honestamente uma posição política estranha é errado mas ficar calado a esse respeito é correto e virtuoso?

Eu teria ainda muito o que dizer, porém não quero me alongar demais. Só te deixo o exemplo do Gustavo Corção, sujeito cuja bondade e fé jamais poderiam ou podem ser colocadas em questão, mas que teve de aturar muitos que o consideravam quase herege porque chamava a atenção a respeito de certas coisas estranhas que surgiam na Igreja.

Agora vou indo porque tenho de comer. Um abração!