Sábado fui assistir à apresentação de Daniel Taylor na Sala Cecília Meirelles acompanhado por mais um Taylor, A.J.P., o falecido historiador inglês que escreveu A Segunda Guerra Mundial. Não sei se os dois têm algum parentesco, mas direi alguma coisa sobre o livro mais adiante.
Tendo chegado cedo, cousa espantosa vindo de alguém tão mal relacionado com os ponteiros como eu, decidi fazer uma hora numa igreja ali próxima. Mal entrei e vi um sujeito baixinho ensaiando umas músicas com um coro tão animado quanto feminino e de idade algo avançada. Ao lado, uma senhora tocava um teclado num estilo tal que julguei ser alguma performance ultra-moderna. Devo mencionar ao leitor que uma das pragas modernas é, na minha opinião, o teclado. Por mais que digam que ele soe como qualquer coisa imaginável, na minha modesta opinião ele soa apenas como um teclado tentando ser qualquer coisa imaginável. A falta de entrosamento entre o coro e o teclado era impressionante, sendo compensada pela extrema desafinação daquelas almas piedosas, algo que o baixinho, animado como estava em lhes ensinar as canções, parecia ignorar completamente. Sua boa vontade era igualmente impressionante, e então percebi que talvez ele estivesse cumprindo algum tipo de penitência inusitada.
Não havia sentido, no dia, minha primeira comoção musical, pois sentira algo semelhante ao passar, muitas horas antes, em frente a uma outra igreja. No momento da comunhão, alguém teve a belíssima idéia de fazer um acompanhamento musical num estilo semelhante a Ivan Lins, porém em tons sacros. Nunca me passara pela cabeça uma missa sitiada pela cafonice, mas parece que as pessoas conseguiram esse milagre. Infelizmente meu dáimon me mandou apertar o passo, embora eu esteja até agora querendo saber que raio de música era aquela.
Voltanto à igrejinha, aliás muito bela e que conheci graças a um evento totalmente mundano, isto é, quando da apresentação de quartetos de cordas de Beethoven, decidi, pois, ficar ainda mais, pelo menos até a hora da comunhão, esperando que Deus não me julgasse mal por ter de sair no meio da missa por causa do concerto. Chamou-me a atenção todas as pessoas serem de idade avançada. Numa igreja aqui perto de casa, algo semelhante parece ocorrer no meio de semana, exceto uma vez que vi uma senhorita de minissaia lá dentro. Mas a igreja estava razoavelmente cheia, num sábado frio e chuvoso, cousa mui louvável. Em todo o caso, eu era o caçula. Obviamente não havia razões para me incomodar com nada disso. O incômodo irrompeu mal tendo começado a missa. Antes que alguém me julgue destituído de espiritualidade, advirto que me refiro ao andamento estranho da missa. Aquele sujeito baixinho, que então descobri ser o pároco, juntamente com seu assistente, coreografava um balançar de braços dos fiéis. Havia uma cantoria de gosto duvidoso, uns gestos estranhos, uma música mal feita, uma leitura um tanto canhestra de passagens bíblicas, enfim, tudo feito estranhamente. Naqueles momentos, enquanto eu me perdia olhando aquela igreja tão agradável, surgiram-me as palavras que certa vez meu amigo Carlos escrevera em seu blog sobre a união da beleza com a liturgia. O que ele escreveu é, garanto, produto de considerações mui pessoais, pois ele próprio experimentara cenas litúrgicas esquisitas. Mas, pedindo gentilmente licença, eu avançaria um pouco mais e diria que toda a missa que não leve suficientemente a sério essa união da beleza com a liturgia cai, na menos pior das hipóteses, no cômico. Em certa ocasião, durante missa em lembrança à minha avó falecida, havia um cidadão que entoava os cânticos numa voz tão bizarra e com um jeito de falar tão inaudito que foi um empreendimento heróico manter o auto-controle para não rir durante tão grave evento.
Como eu estava com um espírito de concerto, não pude deixar de matutar que atualmente seria um período glorioso para as missas de Haydn, as quais, na época, foram ignoradas por causa de seu espírito alegre demais. Ora, sequer precisaríamos de uma orquestra e coro: bastaria um tocador de cd ou um desses cacarecos tecnológicos atuais que desconheço velhacamente. Por que, dentre as opções, há o hábito de sempre escolherem a mais infeliz? O mais curioso é o raciocínio de que o povo precisa daquilo que mais lhe convém, tendo implicitamente a noção de que o povo só gosta do que for pior. Música mal feita no lugar de Haydn parece ser, na cabeça de alguns, mais próprio ao povo.
Deixei, pois, a agitação de papéis de lado, mesmo antes da comunhão, e me dirigi à sala de concerto, embora, para meu espanto, faltasse meia hora para o início da apresentação. Sentei-me e decidi conversar um pouco com o historiador inglês, autor de A Segunda Guerra Mundial.
Não há nada pior que estar em má companhia. Talvez a única coisa pior é não poder desembaraçar-se dela. Para me gáudio, não era o caso em questão. A.J.P. Taylor me foi um ótimo companheiro de conversações, de tal modo que o deixei falar o tempo todo a fim de aprender.
Esse livro foi escrito no início da década de 60 e se tornou um clássico, embora tenha sido inicialmente detestado, exceto por "ex"-nazistas. Eu ouvira falar de Taylor graças a um outro excelente historiador, John Lukács, mas não podia imaginar que, além de ser inteligente, ele era tão divertido. Sua ironia é sutil -- às vezes nem tanto --, bem agradável, o que me rendeu algumas risadas, como no momento em que ele diz que as indenizações de guerra da Alemanha eram motivos "de insatisfação intelectual; coisa para lamentar à noite, e não motivos de sofrimento na vida cotidiana", que, em bom português, significa "frescura". Na mesma página, ainda sobre as indenizações, ele continua: "O homem de negócios em dificuldade, o professor mal pago, o trabalhador desempregado, todos as culpavam pelas suas dificuldades. O choro de uma criança faminta era um protesto contra elas. Os velhos iam para a cova devido às reparações." Ironia e sarcasmo que segundo meu imaginar só os ingleses conseguem desempenhar tão bem. Contudo, não pude deixar de perceber como tudo aquilo se aplica extraordinariamente ao Brasil, com a única diferença de o culpado ser a "exclusão social" ou o "capitalismo". Numa página anterior, ele diz que os ingleses começaram "a denunciar a loucura das reparações, tão logo se apossaram da frota mercante alemã", cousa que deve ter irritado mais de um inglês ao ler isso. Essas e outras passagens indicam que Taylor era polêmico, porque ele estava atacando todos os sagrados lugares-comuns: que a Alemanha não tinha como pagar as indenizações de guerra; que o Tratado de Versalhes foi totalmente péssimo para aquele país; que o programa de rearmamento alemão foi pesado durante quase toda a década de 30; que a guerra mundial foi tramada por Hitler; que ele, aliás, não era um estadista - mas é Lukács quem desenvolverá mais esse ponto; que planos como a anexação da Bélgica e Ucrânia, guerra contra a França e o Lebensraum não eram idéias típicas de Hitler, mas alemãs, e desde a Primeira Guerra. A lista é ainda mais extensa. Não foi por acaso que seu livro teve inicialmente uma recepção péssima e, para piorar, acabou erroneamente saudado por "ex"-nazistas, portanto interpretado por todos como uma espécie de reabilitação de Adolf Hitler: interpretação completamente torta, diga-se de passagem.
É lamentável quando o historiador é obrigado a seguir a opinião de todos tão-somente porque parece ser a mais agradável. A idéia de oposição ao establishment por si mesma é agradável apenas a quem não saiu da adolescência mental. No caso do historiador, a situação é mais complicada porque, afinal de contas, a história necessita ser sempre revisada. Sendo um estudioso, ele busca explicar o que ocorreu, nunca se satisfazando com as explicações aparentes. Um historiador precisa ser um pesquisador sério, não um instrumento que ecoa a opinião do dia. Como as pesquisas de Taylor, no dizer de Aristóteles, constrangeram-no a adotar certas verdades, muitas das quais eram contrárias às suas primeiras opiniões, por certo tempo ele foi detestado por muitos. É uma infelicidade monstruosa que em nosso país os cursos de história tenham sido tomados por selvagens cujo espírito é o oposto ao do verdadeiro historiador, embora esses infelizes se considerem espíritos críticos: eles querem unanimidade tão-somente. Mas que o leitor não exagere duplamente o que estou dizendo: Taylor não tem razão sempre e eu ainda estou lendo o livro.
Precisei terminar a agradável conversa com Taylor porque o concerto iria começar. Até o instante em que escrevo estas linhas tortas, não compreendi por que os organizadores chamaram o evento de "Música Antiga", já que nem Dowland, nem Haendel e nem as composições anônimas apresentadas eram música antiga. Naturalmente, a dúvida que surge é saber o que diabos significa esse termo. O canto gregoriano é antiqüíssimo, talvez a música mais antiga ainda em uso, mas não tenho certeza se seria apropriado classificá-lo como música antiga. Talvez seja mais próprio usar o termo para as músicas da Antigüidade, mas é bom que se diga que os próprios medievais, a certa altura, dividiam os estilos em ars antiqua e ars nova, e isso nada tinha a ver com a Antigüidade. Para o nosso gosto e, por que não, da própria Renascença, ars nova é algo inacreditavelmente arcaico, tanto quanto ars antiqua. Do ponto de vista da música clássica - o termo aqui se refere à música de um determinado período -, talvez não seja um absurdo total considerar que o período barroco e anterior não passam de algo cafona e fora de moda, ainda que seja uma extravagância colocar no mesmo saco gente tão diferente como Haendel e Dowland. É sempre complicado estabelecer o que é moderno e o que é velho segundo o que parece mais antiquado. Mas, como diria Taylor, são inquietações intelectuais boas para incomodar o sono, mas que não afetam em nada a vida cotidiana. Assim, estando o termo equivocado ou não, os músicos estavam lá e havia público suficiente para a apresentação.
Evidentemente, a atração principal do concerto era o contratenor Donald Taylor, o qual, repito, não faço a menor idéia se é parente ou não do historiador inglês. A primeira parte da apresentação foi consagrada a Dowland e compositores anônimos. Se o leitor nunca ouviu o compositor inglês, saiba que suas músicas são ótimas para, conforme a medicina antiga, incentivar a produção de bílis negra. É impressionante como Dowland compôs tantas músicas melancólicas. Na minha opinião, um dos melhores momentos foi quando Taylor cantou I saw my lady weep, embora não tenha havido uma segunda voz. Não que ele estivesse se apresentado sozinho, porque havia uma soprano extremamente bonitinha com ele, trajando um longo vestido esverdeado. Dentro do meu limitado entendimento musical, gostei de ouvi-la também. Pensei nas palavras de um poeta que dizia não haver nada mais agradável que ouvir um talento combinado a uma feição bela. Não posso cometer a injustiça de esquecer o senhor do alaúde, instrumento delicado que foi muito bem tocado.
A segunda parte foi dedicada quase inteiramente a Haendel, com acompanhamento de piano. Confesso que seria mais agradável se houvesse uma pequena orquestra de câmara, mas não quero choramingar porque o pianista era muito bom. Se alguém tinha alguma dúvida de sua habilidade, suponho que ela desabou após a execução de uma transcrição de Liszt de uma peça bachiana, se não me engano algum prelúdio e fuga. Uma certa melancolia continuou da forma mais bela possível, como durante a apresentação de um duo da ópera Theodora. Para quebrar a melancolia, o espetáculo findou com duas árias heróicas da ópera Giulio Cesare, em que Taylor alternava entre contratenor e barítono, exibindo suas habilidades vocais. Durante as árias heróicas, ele também fazia questão de interpretá-las, explicando antes ao público brevemente do que se tratava.
Eu estava tão perto do palco que não perdi um único perdigoto, nem uma eventual enxurrada deles, mas suficientemente afastado para me por a salvo deles. Eu gostaria de ter visto mais o pianista usando o pedal, mas a cabeça de um senhor na primeira fileira embargou-me o intento, bem como do senhor desprovido de cabelos que estava atrás dele. São detalhes irrelevantes, pois a apresentação foi boa, mesmo quando Taylor disse que o Ptolomeu da ópera conseguia ser ainda mais malvado que Bush.
Foi uma sensação curiosa voltar para casa depois daquele evento, pois tive de passar pelo mafuá dos Arcos da Lapa, zona considerada boêmia. Era como se eu estivesse me perdendo nas mais profundas trevas da antiga Germânia ou nos pântanos da velha Britânia. Minha imaginação não concebe as razões que levam um semelhante meu a embrenhar-se prazerosamente num local tão feio e lotado de mafomas e demais gentes de má catadura. Agora bem: a memória do espetáculo anulou aquele ambiente. Segui embalado por aquelas músicas até meu lar, como aliás já o tinha feito em outra ocasião, durante o festival dedicado a Beethoven.
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