Animou-me a escrever algo a desdita da Cris ao arrancar seu siso. Tenho de admitir que quase caí na tentação de dizer que seu siso era caro, porém seria uma audácia da minha parte, pois nunca fomos apresentados e, agora que foi extraído, não o seremos mais, exceto, é possível, quando soar o momento dos mortos se levantarem. Que fique ao leitor piedoso a mensagem.
Mas eu falava, ou melhor, dizia da inspiração momentânea. Pois bem, eu também passei por uma experiência dessas, quando me divorciei dos sisos superiores há dois anos. O que me causou espécie não foi a extração em si, pois, exceto uma agulhada dolorida na hora de fazer o ponto, minha dentista conduziu tudo com enorme habilidade. O problema foi depois, já que meu modo de falar por cerca de meia hora ficou mui semelhante ao do veteraníssimo Sylvester Stallone. Cheguei a fazer uma troça do fato à dentista, porém ela não considerou muita graça nisso e riu tão-somente por piedade de mim, eu, que ainda por cima era obrigado a lutar contra uma baba que insistia em passear mundo afora.
O leitor não poderia viver sem saber também que minhas experiências ao dentista não foram somente aquelas. Eu já era veterano quando do ocorrido, pois eu havia sobrevivido sem traumas a um tratamento de canal. Diga-se de passagem que só consenti em ser submetido a esse tratamento porque conduzi uma situação precária até o derradeiro instante em que passei a sentir furiosíssimas dores de dente. Ignorei o que houve com muitos a minha volta e sofri, o que confirma os dizeres homéricos a respeito dos tolos só aprenderem com a experiência.
Em matéria de desgraça a humanidade se rejubila. Foi portanto natural que me dissessem apocalipses a respeito do tratamento de canal, e eu mesmo, confesso, senti algum prazer quando mencionei o que ocorre durante a extração do siso a uma prima que será a próxima vítima de algum dentista. Todavia não me abalei demais, não por heroísmo, mas por cálculo. Se o tratamento de canal era a única solução, então não adiantaria me lamuriar. Quando a sobrevivência corre perigo, tudo é válido. Foi pensando nessas coisas sumamente dramáticas que busquei um dentista.
Não me recordo o número de sessões de tortura em potencial a que fui submetido, mas sobrevivi intacto, principalmente por causa da invocação contínua a Santo Inácio de Loyola. A recordação de sua impassibilidade quando puseram seu osso no lugar após fratura na guerra me encheu de coragem. Além do mais, ficava imaginando por que espécie de sofrimento um Alexandre Magno e um Carlos Magno tiveram de suportar naqueles tempos tão brutais. Ora, se eles sofreram inumeráveis dores sem anestesia, por que eu deveria chorar havendo à minha disposição anestesia e tudo o mais? Sem jamais deixar de invocar o Santo Inácio de Loyola, fiquei um tanto mais tranqüilo na cadeira do dentista. Fui, portanto, homem, pelo menos enquanto a anestesia surtiu efeito. E para evitar qualquer desdoiro, ela surtiu efeito sempre que foi solicitada.
Como não sou ingrato demais, naquela época me surgiu uma enorme curiosidade de saber qualquer coisa da história da anestesia. Fiz uma longuíssima pesquisa de dez minutos na Internet e descobri de fato alguma coisa, mas infelizmente tudo isso agora está perdido em algum compartimento inacessível do meu cérebro. Impossibilitado de escrever qualquer linha desse assunto, invito o leitor a pesquisar também. Ainda assim, fica, pois, outra homenagem feita por mim àqueles que descobriram a anestesia. E digo outra homenagem porque na época fiz ao meu dentista algum brevíssimo elogio a ela e aos seus responsáveis.
Se Shostakovich se aventurou a criar uma sinfonia em honra à industrialização soviética, espero que algum outro talentoso músico crie uma música em homenagem a algo bem mais universalmente válido, como é o caso da anestesia. E ainda teria algo a dizer sobre o inusitado de ter alguém manipulando literalmente a nossa boca, mas me despeço já, adeus.
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