Resolveram colocar a criança para falar no telefone com Josué. Um raio de pensamento logrou atingir-lhe: “Pelos céus, não quero falar com esse projeto de bigorrilho, que coisa mais chata.” Mas a mamãe não se deu conta disso e colocou o bebê para falar:
- Fala, filhinho, fala com o tio!
Bebê:
- ...
Josué, tentando parecer simpático:
- Oi, bebê, fala com o titio, fala. – mas pensando: “Ai, saco...”
Bebê:
- ...
Mamãe:
- Olha, ele quer falar alguma coisa!
Josué, tentando parecer simpático:
- Sou eu, o titio, bebê! – mas pensando: “Que ordinária! Não tá vendo que essa coisa não vai falar porcaria nenhuma?”
Bebê:
- ...
Mamãe:
- Fala, bebê, fala!
Josué, esquecendo os rudimentos da vida urbana:
- Espero que você não puxe a retardada da sua mãe, moleque idiota. Seus pais devem ser primos de primeiro grau.
Bebê:
- Gloooshfp!
Mamãe:
- Olha, ele está quase falando meu nome! Ouviu?
Josué, meio assustado:
- Como é que é? – mas pensando: “Será que esse moleque me xingou? Me respondeu? E agora? Olha a merda que fiz... Daqui a pouco esse moleque cresce, vira bandido e me dá uns tiros, tudo por causa disso...”
Mamãe, agora no telefone:
- Ouviu ele falando? Agora ele está todo agitado.
- É, ouvi. – mas pensando: “Se for verdade que as primeiras impressões são as mais fundamentais, inculquei ódio a mim mesmo nesse moleque. Meu Deus, o que foi que fiz?.”
- Vou ter que desligar, ele não me deixa falar.
- Tudo bem, depois a gente conversa. – mas pensando: “Ele deve estar pleno de ódio no coração.”
- Tchau, beijos!
- Espere! Ele está precisando de alguma coisinha?
- Ah, não precisa, está tudo bem...
- Não, que isso, vou levar um brinquedo bem chique dez pra ele. – mas pensando: “Espero que dê para subornar esse moleque, não tô a fim de ser assassinado.”
- Ah, jura? Traz um patinho? Ele adora patinhos! – mas pensando: “Chique dez? O que ele quis dizer?”
- Sim, eu levo. Deixa o titio falar com esse bebê fofo só uma coisinha...
- Não dá, ele acabou de fazer cocô.
- Cocô? – mas pensando: “O que isso quer dizer? É algum símbolo, não me resta a menor dúvida. Preciso raciocinar como se eu fosse uma criança de seis meses, é questão de vida ou morte.”
- Olha, tenho que ir, beijos.
- Ah, tudo bem... Beijos... – mas pensando: “Aniquilei meu próprio futuro, chucrute!”
Josué passou o resto de seus dias apreensivo, olhando sempre de soslaio o filho de sua amiga, suando demais e sentindo seus músculos se contraírem descontrolados, efeito este que o obrigava a fazer movimentos inusitados. Houve o boato de que Josué estava praticando algum tipo de ioga, e muitas pessoas, quando o viam se contorcendo daquela maneira tão original, balançavam a cabeça com aprovação angélica, supondo que ele estava se tornando espiritualmente mais elevado. O fato de ele se tornar mais melancólico confirmava as suspeitas. A senhora De Souza (née Childerica), praticante de um rito cristiano-oriental-cosmológico-panteísta, costumava dizer que aquela melancolia era o resultado de uma profunda desilusão energética, o que era bom, porque resultado da confluência dos poderes magnéticos do seu avatar intergalático com a evolução sumamente pessoal de seu espírito, o que poderia ser resumido com o termo “Hiai”, supostamente de origem assíria. De qualquer forma, certas atitudes suas permaneciam inexplicáveis, como da vez em que Josué, enquanto segurava o bebê, ao mesmo tempo em que o pequeno babava-lhe desmesuradamente, bradou com horror: “Comigo é nove da garrucha trouxada!”, para espanto de todas as criaturas visíveis e invisíveis que se encontravam no recinto. Em outra ocasião, a criança, com idade um pouco mais avançada, jogou-lhe feijão na camisa, o que fez Josué dar um pulo meio canastrão e gritar: “A realidade é uma quimera!” Todos esses eventos tornavam a figura de Josué enigmática, o que lhe dava, ainda mais, uma aura de divino mistério e – para não poucas senhoras e senhoritas – de inacreditável sedução. Quanto ao garoto, perturbava-lhe muito os agrados que o “titio” tão insistentemente lhe oferecia, sem contar aqueles esgares sinistros. Nunca houve explicações. Tudo permaneceu no tenebroso reino do subtendido. Portanto, eis aqui a moral da história: pientíssimo leitor, se tiveres de xingar um neném de seis meses, xingue, porém arcarás com todas as funestas conseqüências enquanto ainda fores habitante deste mundo sublunar e quiçá para depois desta vida.
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