Friday, May 06, 2005

"Pulp Fiction" , filme mágico feito para geômetras



Hoje quero comentar extensivamente a respeito de um certo filme. Sempre achei curiosa a opinião de algumas pessoas com quem conversei a respeito de “Pulp Fiction”. Dizem que o filme é legal porque realista. Ora, caro amigo, acho que você não o entendeu direito. A começar pelo próprio nome do filme, “Pulp Fiction”. Se o nome do filme faz menção a si mesmo, qual a referência que você percebe à realidade em seu nome?

Algumas pessoas podem dizer que o nome às vezes não tem relação alguma com o filme ou é por demais nebulosa. Vejam o próprio nome deste blog. Que raios de menção ele faz ao que escrevo? É verdade que há alguma, mas... Podem dizer também que um filme sempre é ficção, daí este nome, ainda que ele seja realista na medida que um bom filme do gênero deve ser. Vamos supor que isso tudo seja razoável. Então o que há de realista em seu enredo? Geralmente as pessoas fazem menção à cena dos dois assassinos (personagens de John Travolta e Samuel Jackson) no carro conversando sobre o nome de alguns sanduíches americanos na Europa. Há também algumas referências àquela cena em que o boxeador (Bruce Willis) em sua casa encontra um assassino (Travolta) lendo um jornal na privada – onde todos somos reis de um peculiar reino –, fazendo suas necessidades mais básicas. Bom, a primeira cena é propriamente realista, mas a segunda só “acidentalmente”. É natural que alguém converse sobre hambúrguer. Eu mesmo já me envolvi numa conversa sobre o nome que determinado salgado recebe em várias regiões do país, e foi até deveras instrutiva. No entanto, muito embora seja natural uma pessoa ir parar no "trono", nem tanto é encontrar em nosso próprio banheiro um assassino que foi enviado para te matar. Mas ao menos não é algo que agrida nossa inteligência: é apenas um fato bem singular.. Porém, a pergunta que não quer calar: que mais? Quais outras cenas que você assistiu que fizeram uma bela menção à realidade, de forma a poder classificar o filme como realista? Vejam bem, não vale apontar uma ou outra cena, mas provar que em conjunto ele é realista.

Advirto o leitor para que poupe suas forças: teus esforços serão em vão. O filme não é apenas irreal no sentido de ser uma ficção. Na verdade você verá um amontoado de absurdos. Praticamente o filme inteiro é um amontoado de absurdos. O que traz confusão à cachola de algumas pessoas é que ele geralmente parte de eventos um tanto normais, além de ser salpicado por algumas banalidades, que são por si costumeiros no lado de cá da tela. Digo “geralmente parte” porque, sendo a narrativa fragmentada, é como se ele tivesse vários (re)começos. Que eu lembre há três “episódios” interligados. Ei-los, segundo o próprio roteiro: 1) “Vincent Vega e a Mulher de Marcellus Wallace”, onde o matador de aluguel Vincent Vega (John Travolta, sem-graça como sempre, coitado) tem de cumprir uma insólita missão: fazer companhia por uma noite a Mia Wallace (Uma Thurman, bem no papel), mulher do seu próprio chefe, Marsellus Wallace (Ving Rhames, bom para o gasto) – sem obviamente tentar se engraçar para ela; 2) “The Gold Watch”, no qual o boxeador Butch Coolidge (Bruce Willis, também bom para o gasto), recebe dinheiro do chefão para entregar uma luta – e acaba descumprindo o trato, iniciando assim uma série de confusões; 3) “Jules, Vincent e Wolf”, onde um sujeito conhecido como Wolf (Harvey Keitel, bela aparição), alguém especializado em “resolver problemas”, é enviado para ajudar Jules Winnfield (Samuel Jackson, bem no papel e bastante carismático) e seu comparsa Vega a limpar o carro deles e se livrar de um cadáver, pois sem querer estouraram a cabeça de um infeliz com um tiro ali dentro. Há também um prólogo de razoável tamanho, onde Vega e Winnfield são mandados por Wallace a cuidar de um “certo negócio” – leia-se: matar gente – e um pequeno epílogo, que é uma continuação de uma curta cena do início do prólogo. Enfim, são estes os episódios. E sim, o elenco é cheio de conhecidos artistas.


Vega (Travolta) fazendo companhia a Mia (Thurman)

Como eu disse, todos estes episódios têm um começo banal ou são salpicados por banalidades. Veja mesmo o leitor que a própria “sinopse” que dei de cada um deles a princípio não demonstra nenhum absurdo, talvez com exceção do segundo, pois quem é que vai deixar a sua mulher bonita sob cuidados de um capanga, de noite? Mas enfim, aparentemente não dizem muita coisa. Claro que não é comum igualmente atirar sem querer na cabeça de alguém dentro de um carro, mas isso não importa. O “problema” está em como os episódios são desenvolvidos e terminam. Assim, no primeiro um dos assassinos teima em citar uma passagem da Bíblia, fala idiotices quase o tempo todo, come o lanche dos vagabundos que mais adiante matará, fazendo comentários sobre seu gosto, etc, etc, etc. Tudo meio fantástico. No segundo, que aliás é o menos bizarro dos três, a mulher do chefe, uma pessoa muito esquisita a propósito, depois de farrear com o seu “lacaio”, consome excessivamente drogas e acaba sofrendo um ataque de overdose, sendo curada por Lance (Eric Stoltz), um traficante também meio perturbado, através de uma injeção de adrenalina direto no seu coração (detalhe: ninguém sabia direito como aplicá-la). O terceiro é o mais estranho, porque tanto o boxeador quanto o chefão, após uma série de confusões, acabam parando nos porões de uma loja de armas, onde o dono cuida secretamente de um irmão demente que usa trajes sadomasoquistas que vive encoleirado. Não satisfeito com isso, Tarantino ainda inventa que o dono da loja é um pervertido que, após prender Willis e o chefão, chama um amigo policial para violentar os dois. Quem tem a duvidosa “honra” de ser o primeiro a comer o pão que o diabo amassou é Wallace. E há mais outras loucuras, as quais deixo de lado por economia de espaço. Por fim, no último há um determinado sujeito (Keitel) que é especialista em se livrar de situações embaraçosas tais como um carro cheio de miolos espalhados por todos os lados. O próprio sujeito é esquisito, não como a mulher do chefão ou o traficante, mas pelo seu jeito aparentemente sofisticado e educado casado com a sua profissão de “auxiliar de bandido”. Ele dá um jeito de ajudar os dois assassinos de uma maneira estranhamente curiosa. Isso sem contar a calma com que conduz a situação e certas particularidades do episódio que o tornam meio bizarro. Detalhe para a ponta do próprio Tarantino como o sujeito que acolhe em sua casa os três.

Em todos os episódios acontece algo violento, variando apenas a intensidade. Vai do violento ao brutal, mas sempre é dosado com um senso de humor estranho. O filme todo é assim, violento e supostamente engraçado, porque na opinião do autor deste texto é difícil rir de um sujeito sendo violentado por duas pessoas (fiquei por uns três meses, depois de assistir àquilo, erguendo minhas mãos para o céu e me perguntando “por quê, por quê?”) ou de um carro cheio de miolos espalhados, ou que mais seja. Vejam vocês que tudo fica tão inverossímil que o conteúdo em si das cenas perde completamente substância em função de uma espécie de sátira bizarra que o diretor quer fazer em cada episódio. Digo isso porque o filme não é nenhum pouco sério, ao contrário. A seriedade dos personagens em certas situações serve propositadamente para aumentar mais ainda a carga de humor. Por exemplo, aquela cena onde Willis conta para sua esposa a história do relógio que herdou de seu pai. Então a graça – se podemos dizer assim – de “Pulp Fiction” está no fato de ser deliberadamente inverossímil. E a quantidade de sangue acaba por ser proporcional à sua graça, justamente porque ele é inverossímil. Isso porque normalmente as pessoas ficariam chocadas (e mesmo nesse filme muitas ficam) em ver cenas de overdose, assassinatos, violência desmedida, etc. Lembro mesmo de certa vez ter lido uma entrevista de Tarantino onde ele disse que gosta de fazer humor com violência, o que ficou claro em “Pulp Fiction”. Acho que apenas isto encerra qualquer dúvida acerca do realismo ou não deste filme. E não só nele. Assisti já a outros dois, “A Balada do Pistoleiro” e “Um Drink no Inferno”, nos quais essa peculiar concepção ficava por demais evidente. “Um Drink no Inferno” chega às raias do paroxismo, sendo dos três o mais fraco. Na verdade, não podemos deixar de perceber que em suma estes três são variações de um mesmo tema.


Winnfield (Jackson), Vega (Travolta) e Wolf (Keitel)

Pode ser que haja um leitor teimoso que insista, a despeito de tudo, que “Pulp Fiction” é um filme realista porque é uma história a respeito do submundo, que de fato existe. Talvez este mesmo leitor diga que no submundo as coisas são mesmo brutais e destituídas de sentido. Infeliz de ti, meu caro, que conhece tão bem o mundo do crime! Espero mesmo que não haja nenhum criminoso a passear por este blog. Isso parece com aquele argumento de que neste mundo tudo é tragédia, sem que o autor desta pérola jamais tenha passado por uma só. Também é igual àqueles que adoram dizer que as pessoas são canalhas, como se estivesse envolvido por toda uma corja de malfeitores. E o fato do submundo ser absurdo devido a sua brutalidade não implica que a violência seja engraçada. Em todo caso, não necessariamente um filme é real ou verossímil porque se apóia em coisas que de fato ocorrem neste nosso pequeno grande mundo.

Isto prova que não é por causa da “vestimenta” de um filme que ele necessariamente será mais ou menos realista. Vou me explicar melhor. Não é pelo fato de Pulp Fiction” contar uma história de criminosos que ele será mais realista que “Bambi”. Ao contrário, “Bambi” é infinitamente mais verossímil que “Pulp Fiction” porque sua história, com exceção dos animais falando, não é incongruente. Ninguém acha estranho ou absurdo tudo o que aconteceu com o notório cervo, embora seja um conto onde animais falam e agem como humanos. Aliás, não repugna nenhum pouco à nossa imaginação um bicho falando, ou mesmo um vulcão cantando. Ora, afinal de contas o que aconteceria se um vulcão ou um bicho pudessem se expressar como nós? São, por mais estranho que pareça, possibilidades, ainda que insólitas. E quanto mais insólitas, mais improváveis, até chegar ao ponto de se tornarem verdadeiramente inverossímeis ou difíceis de engolir, pois para tudo há um limite, mesmo que turvo. O que causaria incômodo seria o fato de por exemplo acharmos engraçado um Lobo Mau devorando brutalmente uma Chapeuzinho Vermelho, afinal de contas o Lobo é mau e não pode ser engraçado – eis um exemplo de limite. Mas se porventura conseguissem dar uma reviravolta nos valores do conto e mostrassem quão bondoso e divertido é o Lobo Mau comendo brutalmente a Vovozinha e a Chapeuzinho Vermelho, então haveria um problema, por mais magnífica que fosse a narrativa da história.

E eis um problema importante de “Pulp Fiction”: ele consegue te divertir com brutalidades justamente porque o conteúdo é absorvido em sua forma inverossímil. Você não se diverte porque o chefe está sendo brutalmente violentado, mas sim porque a situação é absurda e curiosa, e num passo de mágica fazemos abstração da cena. Você não acha legal alguém ter overdose, mas aquela situação é tão estranha que chega a ser divertida. O próprio “clima” do filme desvia o foco de nossa atenção: a violência que chega às raias do paroxismo serve como ponte para a nossa diversão, como se por um dado momento teus olhos, mesmo assistindo a uma cena particularmente forte, acabassem por ver coisa diversa. Isto é semelhante a uma brilhante moeda no fundo de uma piscina: nós a vemos distorcida e até mesmo julgamos que ela está numa dado lugar quando na verdade está em outro. No fim você mal percebe brutalidades, apenas acha tudo aquilo legal. E aqui está a habilidade de um diretor como Tarantino: te faz esquecer aquilo que você está vendo e te faz rir de algo diferente. Uma habilidade temível, eu diria.


Marsellus Wallace (Rhames) e Butch Coolidge (Willis) comendo o pão que o diabo amassou...

Mas talvez o problema fundamental de “Pulp Fiction” esteja noutra coisa. Um bom método para averiguar a validade de algo é contemplá-lo por um longo tempo. Se surgir espontaneamente uma simples e básica pergunta, “e daí?”, então somente há duas e não mais que duas hipóteses: ou não entendemos nada do que contemplamos ou realmente o nosso objeto de atenção carece de sentido e valor. Pois ouso dizer que este filme não escapa desta pergunta. Se não escapa, então vamos patentear a dúvida: “‘Pulp Fiction’? Hm, e daí?” Imaginando que posso perguntar alguma coisa para o filme, então que ele me diga: o que você quis passar para gente? Pois acho que a resposta não seria muito diversa de um sonoro e distinto “nada a declarar”. Daí que me espanta o fato de tanta gente ter gostado de um filme como esse, que não diz nem pode dizer para quê veio. Talvez aqui resida mais uma indicação da habilidade do diretor, criando um “clima” que disfarçou por completo a falta completa de sentido e verossimilhança. Não parece algo muito fácil semelhante feito. O filme realmente não é muito bom, mas o diretor blefou bem.

Por último, vale a pena comentar melhor sobre este tal "clima". É muito estranho quando há abstração do conteúdo de algo em prol das intenções de um autor. Isso tem limites. Por exemplo, por mais que eu tente, será para mim complicado transformar água em vinho, a não ser por milagre ou por ilusão. Não sendo eu santo ou Deus, então apenas por ilusionismos terei êxito. De maneira parecida, transformar brutalidades em diversão não parece tarefa simples e quiçá possível, senão através de certa atenuação em seus efeitos e muita habilidade por parte do diretor. Isto se refere à forma através da qual ele constrange sua matéria-prima. E como deveríamos proceder para que da matéria feia e brutal enxerguemos graça e diversão? Acho que estabelecendo relações entre as partes da história concebida pelo criador e a matéria-bruta/brutal, embora nunca ele possa alterá-la por completo. Isso cria uma atmosfera ilusória, e o que veríamos pareceria diverso do que era no início. Ora, quem assim procede estabelece novas relações, e são elas que captamos sutilmente, fazendo com que uma determinada coisa pareça diferente. E como os espíritos mais adestrados para analisar coisas deste tipo são os geômetras, digo então que um filme como “Pulp Fiction”, a julgar sua natureza, foi feito magicamente por um geômetra para gente de espírito igualmente geométrico, mas por sua vez desconhecedora de seus truques. Que o leitor acrescente a isso uma certa repulsa pela realidade por parte de quem assim procede. Portanto, não vejo muitos motivos para não considerar muito estranha a opinião de alguns amigos meus sobre a suposta realidade deste filme até que alguém me prove o contrário.


Terminando belamente com a Mia

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