Amigos, vou contar para vocês um pouco sobre meu prédio. Para vocês terem uma vaga noção do que é viver aqui, relatarei o que houve neste fim de semana.
Estava eu prestes a escrever triunfalmente a respeito do sentido da vida - qualquer semelhança com Monty Python não é mera coincidência - quando, de repente, escuto um barulho de goteira vindo do banheiro. "Deve ser o chuveiro ou a pia", pensei cá comigo. Qual não foi a minha surpresa em descobrir que estava pingando água do teto? Era uma cena muito tocante, pois ele estava completamente encharcado, e na parede escorria um filete d'água, contribuindo com a inundação. Intuitivamente girei a torneira da pia, mas a água, cadê? Meu apartamento estava sem água, sábado. No telefone eu contei o problema à minha mãe, que me tranqüilizou dizendo que a porteira disse que aquilo terminaria logo.
Mas cadê que terminou? O dia inteiro passou e aquela joça ainda estava daquele jeito. Pois fui me inteirar com o outro porteiro e eis a história cativante que me contou: no dia anterior, sexta, de fato também havia faltado água em toda a coluna oito, que é a minha, porque no 208 o cano estourou. Não foi a primeira vez que nesse ano aconteceu algo desse tipo na minha coluna, mas enfim. Por precaução, os porteiros fecharam a passagem de água. Enquanto consertavam, o vizinho do 1008, pessoa muito sábia e de alma grande, saiu de casa e deixou a torneira do banheiro aberta. Qual não foi a "surpresa" quando a água retornou e o apartamento do infeliz começou a inundar? Levem em consideração que o sujeito saiu e não voltou mais, além do fato de que a água foi reaberta de madrugada, horário estupendo para ninguém perceber coisa alguma de errado. Então durante a madrugada toda aquilo transbordou, inundou o corredor do décimo andar e, de quebra, houve uma infiltração homérica para o apartamento debaixo, o 908. Adivinhem quem mora ali? Uma dica: de manhã estava chovendo, pouco mas constantemente, dentro do meu banheiro. Parecia que em minha própria casa havia um exemplo de uma certa tortura chinesa, que segundo alguns é uma interminável goteira na solitária de um infeliz. Aquele "ping" durante sabe-se lá quanto tempo, dizem, deixa as pessoas alucinadas.
Então de manhã novamente fecharam a água e secaram o andar de cima. E nada do sujeito retornar. Muito bem. Em determinada hora, a velha esquisita do 308 foi à portaria reclamar que não havia mais água para tomar banho. O detalhe é que em todos os andares há uma torneira que pode ser usada, e era assim que eu estava me virando, indo e vindo, enchendo milhares de baldinhos. Mas a velha ignorou tudo e foi exigir que reabrissem aquilo, só por uns instantes. Os sábios administradores do prédio concordaram, afinal de contas quem não ficaria com pena de uma velhinha, ainda que fosse totalmente esquisita? Então aconteceu o óbvio: a água do 1008 recomeçou a transbordar, o corredor novamente ficou alagado, e o escroto do 908 teve mais infiltração, até que as sumidades perceberem que aquela idéia não havia sido muito boa. "Não deu nem pra lavar minha cabeça", foi o que a velha doida disse momentos depois na portaria, segundo testemunhas.
O problema não parou aí. Na portaria há uma lista com vários telefones, e felizmente havia o celular do vizinho do 1008. Tentaram ligar por meia hora. Nada. Até que finalmente uma pessoa atendeu, dizendo que não sabia de quem estavam falando, que nunca morou naquele prédio e ademais nem do Rio era. Brilhante, o número estava errado. Para piorar, disseram que o vizinho não costumava passar os seus fins de semana no prédio, embora várias vezes aparecesse no sábado rapidamente por um motivo qualquer. Mas é claro que neste dia ele não iria aparecer, não é mesmo? Tem coisas que acontecem na hora mais escrotamente errada. E de fato ele não apareceu. Então o síndico chamou a Defesa Civil, inteirando-a sobre o problema. Mas para resolver alguma coisa seria necessário, segundo a Defesa Civil, arrombar a porta do apartamento. Quem se responsabilizaria? Eu perguntaria: quer dizer que pode sair arrombando a porta dos outros por um motivo desses? Bom, de qualquer maneira, ficou claro que para início de conversa não seria ela quem teria em suas mãos a batata assando. O síndico olhou de soslaio, depois virou a cabeça e fingiu que assobiava. Os porteiros instantaneamente foram acometidos por uma inexplicável burrice, pois passaram a não entender mais nada do que lhes pediam. Sobrou para um vizinho, como se não bastassem os absurdos, a responsabilidade do arrombamento. Mas não, disse a Defesa Civil, um vizinho não pode ser responsabilizado. Sendo assim, ela lavou as mãos (trocadilho exato para tal situação) e foi embora. E a coluna oito permaneceu sem água durante quase o resto do dia.
(Vamos àqueles parênteses legais que só servem para aumentar desnecessariamente o texto. Não vou aqui comentar sobre um porteiro que, mais ou menos igual a um conspirador, resolveu falar mais tarde para mim uns podres do síndico, dizendo entre outras coisas que tudo, absolutamente tudo, mudaria para melhor após a saída de pessoa tão vil. Ele também me fez jurar que jamais contaria que foi ele quem disse aquilo. Não entendi porque me confidenciou assunto tão grave, pois minha influência no prédio é mínima e, dependendo de mim, permanecerá discreta até o dia do Juízo.
Como prometi guardar sua identidade, não revelarei seu nome senão como "conspirador". Fechemos os parênteses)
Lá para umas dez da noite, já com minha mãe em casa devidamente inteirada do assunto, um porteiro tocou o interfone, dizendo que a situação estava sob controle, pois um tal de Manel (não lembro o nome do sujeito, mas deve ser esse, pois esses caras sempre têm um nome assim) deu um jeito. Para quem não sabe, Manel, que também nunca vi mais gordo, é uma espécie de faz-tudo do prédio, segundo o "conspirador". E, de forma muito semelhante ao nosso atual presidente, é afeiçoado ao que é cognominado vulgarmente como "água de passarinho": cachaça. Logo após o aviso, minha mãe resolveu ir à portaria a fim de saber direito que história era aquela.
A história, que segundo minha mãe foi relatada pelo porteiro - exceto as menções ao caráter ébrio de determinado personagem, que são de responsabilidade exclusivamente dela - foi mais ou menos a seguinte. O porteiro, já cabisbaixo, estava se lamentando quando de repente viu o Manel, tonto a não mais poder. Então começaram uma conversa sobre os problemas do prédio, quando o Manel disse, com voz de bebum:
- Acho que shei cumé que faz pra fechar a bica... Acho que o registro é perto da janelinha que dá pro corredor. Vamu lá que vô dá um jeito.
Lá foram então Manel e o porteiro rumo ao décimo andar. Chegando lá, Manel, tonto, enfiou o braço pela janelinha aberta do 1008 e tocou no registro.
- Ih, disse ele, achu que meti minha mão no registro!
- Então gira, Manel, respodeu-lhe o porteiro.
Pois então Manel girou, girou, e deu um derradeiro giro no registro, fechando-o por completo. Contudo, não dava ainda para avaliar a eficácia daquele procedimento porque não havia água escoando pelos canos da coluna oito. A solução foi pedir permissão ao síndico. Então lá foram os dois, porteiro e Manel, ao telefone. Por fim, o síndico permitiu que reabrissem. Para a alegria dos dois, de fato não escoava mais um pingo d'água pelo 1008.
- Dona Natália [nota: é a minha ilustre mãe], disse o porteiro emocionado, o Manel conseguiu fechar o registro. Foi a mão de Deus, Dona Natália, que através de mim guiou o Manel até lá em cima. Foi Deus.
- É, Dona Natália, falava então o segundo porteiro, o "conspirador", o Manel é muito bom no serviço. Nossa, ele é muito competente.
- É, Dona Natália [nota: não se espante, leitor pelas constantes repetições a "Dona Natália". Por um motivo inexplicável, a cada minuto eles se referem à minha mãe assim. Excesso de educação.], foi Deus que iluminou meu caminho e com a Sua luz me fez guiar o Manel. Não sei o que seria de nós sem o Senhor.
Enquanto eles trocavam tais conceitos, o Manel apenas abria um sorriso e balançava desenxabidamente a cabeça, de rosto inchado e vermelho, segundo os relatos de minha mãe.
- Dona Natália, disse o "conspirador", o trabalho dele foi tão bom, mas tão bom, que o síndico até falou que vai pagar uma cerveja pra ele.
(Peço licença para mais um daqueles parênteses tão legais. Devo também alertar o leitor sobre determinado procedimento do "conspirador". É que ele adora elogiar as pessoas. Excessivamente, diga-se de passagem, o que alguns chamam com razão de "puxa-saquismo". Eu mesmo um dia já fui alvo, mas isto não vem ao caso. Sou o último a dizer que o "conspirador" não é uma boa pessoa, muito pelo contrário. Mas que ele adora puxar o saco, ah, isso adora mesmo. Porém estou em digressões, voltemos ao texto.)
Minha mãe subiu e contou para mim este pequeno diálogo, sempre destacando as palavras "birita" e "bêbado" com relação ao Manel. E ela me disse também que todos eles não escondiam um certo ar de triunfo, coisa bem natural em situações deste tipo.
Por que não triunfaram com um dia de antecedência, evitando toda essa complicação, por que o triunfo se deu através de um bêbado perdido às dez horas da noite, por que a Defesa Civil com seus vários bombeiros não atinou com uma idéia que até mesmo um tonto cogitou, e por que Deus foi tão necessário para aquela solução, bem, são coisas que escapam a minha percepção. Em todo caso, talvez o problema ainda não esteja resolvido, pois imagino a reação daquela cândida criatura do 1008, aquele pivô involuntário de toda essa confusão, retornando segunda e vendo em que estado lamentável muito provavelmente se encontra seu apartamento. Isso vai dar em mais confusões. Aliás, aqui neste prédio nada se resolve, sempre há um subplot para algo novo. É que nem um pequeno cobertor para uma grande pessoa: quando uma parte do corpo estiver protegida, outra estará aos frios. Pois bem, então espero um tanto ansioso a fim de ver o que vai dar. E este é o meu prédio por um dia, e que o leitor tenha em mente que esta espécie de confusão não é nenhum pouco rara, ao contrário. E adeus.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment