Thursday, May 12, 2005

Do conhecimento

Nossa inteligência pode ser comparada ao espelho e à água. Isto porque ela ao mesmo tempo reflete e assume a forma dos objetos a quem, por amor, sai ao encontro. Por isso não é errado quando algumas pessoas dizem, ao se referirem a algum maior esforço de contemplação, que “saíram de si mesmas” ou, como o poeta, “transforma-se o amador na coisa amada pela virtude do bem querer”. E isso por um acaso não nos lembra os testemunhos de êxtases de toda uma multidão de santos? No entanto, uma inteligência despreparada ou corrompida equivaleria a um espelho partido, refletindo de maneira caótica e fragmentada o mundo que nos cerca. Ou então a uma espécie de máquina de triturar, quebrando os objetos que deveria amar por si mesmos a fim de melhor caberem em sua mesquinha percepção. Tal estado de espírito é perigosíssimo, pois aqueles que se encontram assim tendem a atribuir ao mundo uma desordem que é fruto senão apenas de seu interior em frangalhos. Todavia, mesmo um espírito alquebrado busca refletir o mundo de alguma forma, pois mesmo atravessando um estado de confusão ele não pode deixar de se apaixonar de alguma maneira. É um dom compartilhado por todas as pessoas.

Nossa inteligência está em constante paixão neste mundo. Tudo que a cerca é motivo para cativar a sua atenção, e nada seria mais correto que alguém afirmar que o amor, por seu respeito desinteressado e sua veneração pela coisa amada, e pela sua busca ao que lhe é ao máximo possível semelhante, é um dos movimentos de nossa razão. Portanto, toda e qualquer filosofia é baseada no amor, que nada mais é que a conformação desinteressada, por assim dizer, de nosso ser às coisas que nos cercam.

Como buscamos pelo amor a imagem do mundo em todo seu esplendor, então é vital que nos fiemos a exemplos dignos. Afinal de contas, como seria possível acreditarmos na ordem e eternidade das coisas se não conhecêssemos nada disso, nem se jamais ouvíssemos seu testemunho? Por onde podemos concluir que geralmente um espírito sem a experiência da beleza da ordem e sua eterna necessidade de manter a existência de todo o cosmos – que é uma outra forma de entender a justiça – jamais poderá refletir (lembrem-se do espelho) adequadamente sobre as coisas mais elevadas: ele simplesmente as ignora, pondo-se num estado inferior ao que na verdade lhe pertence por natureza. Portanto, somente aqueles que já possuam algum tipo de “experiência pessoal” com o belo estariam plenamente capacitados a amar verdadeiramente todas as coisas nobres.

A capacidade que temos de refletir o mundo em nós mesmos indica alguma espécie de afinidade entre ele e nós. Se não estivessem de certa maneira em estado de latência as coisas em nós mesmos, como então seria possível chegar a conhecê-las e amá-las? Por exemplo, como seria possível conhecer e amar um belo prédio se sua imagem já não estivesse de certa maneira “escondida” em nossa alma? Ou como seria possível nos tornarmos músicos, caso já não tivéssemos de certa maneira algum contato latente com a música? Se a história já não estivesse em nós como uma das nossas possibilidades de existência, de que forma então haveria historiadores? Se não existisse em nós mesmos uma espécie de perfeição, como então avaliaríamos as coisas mediante sua maior ou menor perfeição própria? Platão chamava isso de “reminiscências” em seu diálogo “Mênon”: todo o conhecimento nada mais seria que um constante “recordar”, pois uma vez nossas almas já contemplaram toda uma constelação de seres magníficos, nobres, mas em nossa existência neste mundo apenas muito parcamente deles recordamos.

Esta paixão do nosso espírito, espécie de carência primordial, só existe na medida em que ele mesmo tenha um pouco de tudo em si mesmo e parta rumo a redescoberta, através do próprio mundo, de si mesmo. Noutras palavras, o conhecimento só é possível porque conhecemos sim as coisas, porém em estado de potência. E se elas existem desde sempre em nós neste estado, então nossa existência é plenamente condicionada pelo fato de haver objetos que são eternos. Daí que a busca pelo saber seja uma espécie de transcendência, porque eleva pelo intelecto nosso ser a alturas magníficas que nada mais são as que, por algum admirável e maravilhoso motivo, de certa forma já nos encontramos, bastando que conscientemente nos elevemos. É a fuga da caverna de Platão. Isto é algo que nos atrai de forma tão completa que a descoberta de coisas belas e boas nos proporciona prazer, e nada mais prazeroso que estar à altura de nosso amor, sendo então todos nós destinados à beleza e à bondade, de acordo com nossos esforços. Talvez nem seja a palavra “destinados” a mais correta, porém “obrigados”. Na verdade, a nobreza impõe-se como uma responsabilidade, um “fardo” – entre aspas, porque embora não pareça fácil sermos magnânimos, por outro lado é algo que por sua própria natureza só nos proporciona as maiores felicidades, tanto para cada um de nós quanto para toda a sociedade.

Então a busca do conhecimento é uma espécie de redescoberta. Não de qualquer coisa, mas sim daqueles objetos que já nos “pertencem” por excelência, sendo daí todo o estudo algum tipo de descoberta fundamental de nós mesmos. Isso quer dizer que se não dirigirmos nossos esforços e trabalhos rumo a isto, o conhecimento daquilo que em certo sentido por natureza já nos pertence, estaremos fatalmente nos colocando abaixo de nosso próprio ser, o que é uma vergonha imensa. Numa palavra: estamos sendo inferiores, vulgares, um bando de escravos. E isto equivale à ignorância, porque nenhuma pessoa, devidamente sábia, entre duas opções escolheria a pior em absoluto, como Sócrates bem advertiu no diálogo “Protágoras”. Portanto, a vida mais digna é aquela voltada para as coisas mais nobres que existem neste mundo, porque temos em nós mesmos a nobreza, ainda que em muitos instantes, por ignorância, falhamos. E isso nada mais é que, em outras palavras, o conselho fundamental de Aristóteles no décimo livro, capítulo sétimo, de sua “Ética a Nicômaco”, verdadeira lição de vida e recado para toda a eternidade:

Se, portanto, a razão é divina em comparação com o homem, a vida conforme a razão é divina em comparação com a vida humana. Mas não devemos seguir os que nos aconselham a ocupar-nos com coisas humanas, visto que somos homens, e com coisas mortais, visto que somos mortais; mas, na medida em que isso for possível, procuremos nos tornar imortais e envidar todos os nossos esforços para viver de acordo com o que há de melhor em nós; porque, ainda que seja pequeno quanto ao lugar que ocupa, supera a tudo o mais pelo poder e pelo valor.

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A consciência de nosso lamentável aspecto com relação àquilo que por natureza devemos ser é o ponto de partida cujo fim é a sabedoria. Isto equivale a dizer que a constatação de uma ignorância nos leva apaixonadamente para um estado completamente contrário. Mas isto só se dá para aqueles que têm a experiência do belo, amando-o e percebendo a necessidade de sermos também belos e bons. Ora, necessidade é uma violência: portanto, isto é algo que nos foi imposto, sem termos como renegar nossa missão. Mas é uma violência que não pode ser entendida em sentido lato. Porque na verdade não é que fomos constrangidos a ser homens, mas simplesmente somos homens e não outra coisa. Portanto, é uma violência na medida que se torna uma questão de reto encaminhamento para um fim certo e determinado. Os meios podem ser os mais obscuros possíveis, porém a meta é clara, mais ou menos como se quiséssemos chegar a um determinado lugar, mas para isso tivéssemos de atravessar densa e escura floresta. Enfim, pode ser uma submissão, mas é uma submissão ao que tem de ser ou ao que é necessariamente excelente.

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