Wednesday, April 27, 2005

Os Cavaleiros Contra um Terrível Mal - Parte II

(Obs: clique aqui para ler a parte anterior)

Os cavaleiros permaneciam mudos ante aquela cena tão bizarra. Pareciam quase hipnotizados pelo poder daquele monstro. Muitos sentiam inclusive vontade de se ajoelhar sob o peso de tão funesta impressão, tão pequenos se sentiam contemplando a potência daquele ser. Porém, aquele austero e frugal cavaleiro, espantado com tudo aquilo, não se conteve e, partindo com sua lança na mão, espada na bainha, falou em altos brados:

- Criatura do Satã, aniquilar-vos-ei, em nome do Senhor! – e correu a toda velocidade.

Como que despertados de longo sono, os outros caíram em si e trataram de fazer o mesmo. O capitão, desolado, praguejou:

- Ai da língua do homem! Quem controlará de forma devida? – e acompanhou seus companheiros.

Imediatamente o animal virou a cabeça em direção àquela turba. O ancião, visivelmente assustado, proferiu algumas palavras em um idioma extravagante e correu para dentro da floresta. Dois cavaleiros foram em sua direção. O restante quedou-se perante o monstro, com suas lanças em riste. Então o monstro, para o pavor de todos, lançou-se em direção dos guerreiros em uma frenética correria. Aqueles que não puderam desviar foram pisoteados brutalmente. Feito isto, a criatura volveu-se para trás e novamente correu em direção ao amontoado de homens, naquele instante já aturdidos. Alguns esboçavam uma fuga quando o capitão disse:

- Em nome do Senhor, ó irmãos, não fugis! Permaneçamos como verdadeiros homens para lutar a boa luta! Que venha esse demônio e toda a legião do inferno!

Aquelas palavras infundiram confiança nos cavaleiros e os que pensaram em fugir, envergonhados, permaneceram ao lado de seu líder. E todos se desviaram do atropelo. E um deles arremessou sua lança bem nas costas da criatura. Mas a lança não a feriu.

- Por São Miguel! – gritou – Tamanha é a rijeza de sua carne que não me foi possível feri-la!

- Contenha-te, homem – alguém falou –. Nem que pereçamos todos haveremos de descobrir seu ponto fraco.

A cada passo da criatura o solo retumbava, semelhante a tambores. Por conseguinte, a cada correria o chão vibrava e gemia como se estivesse sob a fúria de um deus. E ela já estava preparada para efetuar um terceiro atropelo quando o austero cavaleiro, invocando seu santo protetor, arremessou com todas as suas forças sua lança bem na cabeça do monstro. Mas sua pontaria o traiu e apenas de raspão a acertou. Contudo, a criatura soltou um alto rugido, causando rebuliço entre as aves que dormiam, protegidas da tempestade, em ninhos nas copas das árvores.

Dando suas costas para aqueles valentes, o monstro desatou em derradeiro atropelo, mas desta vez para o interior da floresta. O capitão ordenou que alguns buscassem seus cavalos e a seguissem, a fim de localizar sua toca. Entrementes, cuidou dos feridos e aguardou o retorno dos dois que foram ao encalço do ancião. E não muito tempo depois eles retornaram, tendo o velho como prisioneiro. Imediatamente o capitão o inquiriu:

- Em nome do Senhor, ó ancião, que espécie de animal era aquele contra o qual eu e meus irmãos pelejamos?

O velho respondeu em seu extravagante idioma. Ainda excitado pela peleja terminada havia pouco, o capitão praguejou:

- Velho, mal saímos de uma batalha e entramos em coisa pior. Nosso grupo retorna de uma expedição vitoriosa contra uma multidão de bárbaros e ficou incumbido de dar as boas novas ao rei. Contudo, atravessando essa floresta três vezes maldita, encaramos um animal bizarro em tua companhia. Então respondes na língua das gentes e fala, conforme a verdade, tudo o que sabes acerca daquele incrível horror. Senão, juro-o perante meus irmãos, haverás de pagar caro pelo sangue de cada um destes nobres homens feridos!

Ao que o ancião respondeu:

- Valoroso capitão, tuas palavras me infundem muito medo. Por São Jerônimo, acalma-te e me poupe de tua ira! Não percebes que sou um velhaco indefeso?

- Velho – replicou o capitão dos cavaleiros –, tu estavas em companhia de uma besta que feriu quatro dos cavaleiros mais valorosos que já vi em toda minha vida. Ao lado deles em infinitos combates com grande honra combati, sem que jamais, por habilidade, fôssemos machucados gravemente pelo ferro assassino. Tudo se pôs a perder em pouquíssimos momentos há pouco! E ainda por cima, quando furtivamente vos observávamos, tu estavas entregues em carinhos e amenidades com aquele demônio. Não podes ser tão indefeso a ponto do demônio se submeter a tua mão.

- Meu senhor – contestou o velho –, não tenho poder nenhum sobre aquela criatura. Eu riria disso se eu não estivesse em situação tão terrível como a que me encontro agora perante vós. Mas é pura verdade, a mais fiel que já emiti em toda minha vida: era ela quem me subjugava, não o contrário!

- Queres dizer então que era ela quem te levava para sorver a água do riacho? Ó velho, caçoas de mim deliberadamente! És louco rematado? Não te será prudente manter semelhante atitude, mui indigna da tua idade.

- Eu juro, eu juro, em nome de minha família!

- Senhor – disse um dos cavaleiros feridos –, é com pesar que suponho serem verdadeiras as palavras deste ancião. Eu mesmo – ai de mim! –, contemplando aquela besta, somente para mim blasfemei contra o nome do Senhor, chegando por funesto instante a adorá-la!

- Que dizeis, irmão? – perguntou surpreso o capitão.

- Eu também, meu senhor – respondeu outro –, senti tais indignidades por rápido e triste momento. E que o Senhor tenha piedade de mim!

Como muitos dos seus homens respondiam de maneira semelhante, a alma do capitão dos cavaleiros ficou muito intrigada. Somente um demônio infundiria tais sentimentos em homens tão nobres e altivos. Por conseguinte – raciocinou –, aquele ancião necessariamente possuía conhecimento acerca de um terrível e desconhecido mal. Desta forma, julgando que melhor seria nada saber que contaminar a si mesmo e a seus irmãos de luta, e imaginando por bem proteger seu rei e seus súditos de algo que começava a se desvelar terribilíssimo, golpeou o ancião bem no ventre, vindo ele a tombar sem vida de encontro ao chão pedregoso. Aquela atitude causou ruim impressão a todos, que diziam:

- Que impiedade fizestes, meu senhor? O homem estava indefeso e muito útil seria inquiri-lo sobre aquela criatura.

Com torvo aspecto, o capitão lhes respondeu:

- Valentes, acaso não tendes noção do que acabou de suceder-nos? Aquele velho já estava perdido e não fiz nada senão libertá-lo, em nome do Senhor, do grilhão daquela besta, serva do Inominável. Também não quero que eu ou vós, irmãos, sejamos contaminados pelo mal que somente este velho guardava para si, muito menos o nosso torrão querido. Que ao menos uma vez controlemos nossos ouvidos e não ouçamos o mal. Quanto à criatura, nossa lança provocou-lhe suficiente medo. Não há porque arriscarmo-nos novamente contra sua bestial fúria.

- Senhor – disse-lhe o cavaleiro austero –, falastes bem. Lancei-me com justos sentimentos, ainda que não somenos impulsivamente, àquele monstro. Não tive a humildade em reconhecer que nem tudo que está ao alcance da lança e se move e respira pode ser facilmente morto por mãos do homem.

- Ó valentes – falou-lhes o capitão –, sigamos o bom conselho do querido irmão. Ao menos proporcionemos um descanso decente para o infeliz velho. E juremos sobre nossas espadas não proferir uma só palavra sobre o ocorrido, a menos que seja absolutamente necessário. Que São Tiago abençoe nosso pacto.

Assim o fizeram.

Sob forte chuva, conquanto diminuísse paulatinamente, enterraram o ancião e improvisaram uma cruz. E tão logo retornaram os companheiros que correram ao encalço da besta – que misteriosamente desapareceu sem deixar vestígios, segundo afirmaram, surpresos –, lançaram-se em seus cavalos para continuar viagem para dar as boas novas da vitória para lá da banda do Oriente contra bárbaros ao rei.

Epílogo

Em meio à escura caverna, afastada de qualquer razoável aldeia, uma criatura terrível lambia suas próprias patas asquerosas. Em sua confusa mente muitas imagens sucediam-se, porém um motivo era constante: sempre lutara contra homens a fim de impor seu poder. Sempre foi assim, desde que tanto a criatura quanto os homens perambularam no mundo pela primeira vez. Muitos já se prostraram sob sua presença descomunal e opressiva. E mesmo que fosse acuada, ela retornava, pois sua potência era sempre a mesma, enquanto os homens são instáveis. Haveria de chegar novamente, como sempre acontecia, a sua vez, para logo depois ser vencida, em um moto perpétuo.

Doze pessoas ao seu redor a acariciavam e cuidavam de seus ferimentos. Sentiam-se como se fossem dela, mais que de si próprios. Reverenciavam-na tal como se fosse um deus. Elas sentiam a urgência de envidar todos os seus esforços para que mais uma vez os povos adorassem-na e mergulhassem na mais abjeta idolatria.
E o monstro não se lambia mais, mas por elas era lambido.

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