Não sei dizer se é um caso de psicopatologia eu pensar com certa freqüência na morte. Quer dizer, não digo que penso na minha ou na de alguém, mas apenas nela e em suas – como eu poderia dizer? – “implicações” (por falta de um termo melhorzinho). Também não quero dizer com isso que fico abismado pelo fato das pessoas morrerem ao invés de viverem para sempre – isso seria muito jeca. Não acho, aliás, nada do que já matutei sobre o assunto original ou digno de renome.
O mais estranho é que não tenho nenhuma grande experiência a respeito da perda de entes queridos. Naturalmente, numa situação onde a morte é coisa tão inusitada, eu deveria antes não tê-la em mente ou, ao seu menor ruído, sentir terrível calafrio ou pavor. Mas não é bem isso. Muito embora eu me ponha a refletir, às vezes, sobre hipotéticas e trágicas situações, em que perco entes queridos, por mais doloroso que seja imaginar algo desta monta não sinto algum tipo de desespero, porém algo próximo à dor da saudade, mas uma saudade que será, nalgum tempo, saciada. Mas em que sentido? Não sei dizer muito bem, talvez como se não fosse a última vez que verei aquela pessoa que deixou este mundo.
Seria estranho eu ter uma experiência a respeito desse tipo de perda e de sua natureza graças a um meio tão aparentemente artificial como um livro ou tão aparentemente distante da nossa realidade concreta como a música? Pior, de gente que há muito, por sua vez, morreu? É esta a questão: foi lendo e ouvindo música que adquiri alguns “vestígios de idéias” em relação à morte. Foi lendo sobre Sto. Tomás de Aquino e como ele se portou ante o velório de sua mãe; foi lendo Heródoto e como ele fazia questão de ressaltar o problema da “Roda da Fortuna”, que molda a vida, sem que possamos verdadeiramente considerar feliz alguém enquanto vivo porque a qualquer momento pode ocorrer-lhe uma desgraça; foi lendo Platão e sua filosofia do “aprender a morrer”; foi lendo o Eclesiastes e sua canseira em relação ao mundo; foi conhecendo um pouco acerca do monaquismo e sua vida dedicada à preparação, ainda aqui, e mais adequada que a de todas as outras pessoas, ao outro mundo; foi lendo, por estranho que possa parecer, biografias de gente como Bach, e a maneira com que lidou freqüentemente com a morte através da perda de vários de seus filhos e inclusive de sua primeira esposa; foi ouvindo réquiens e mais réquiens que tudo isso me tocou de forma ainda mais forte; foi lendo livros de história, que apresentavam exemplos vários do que Heródoto, Platão, Aristóteles, o Eclesiastes e os monges já diziam: que a vida é fragilíssima e que devemos envidar nossos esforços ao que seja realmente de valor, às coisas eternas, as quais, algumas, ainda nesta vida, podemos contemplá-las e segui-las, conforme os Magos seguiram a Estrela para encontrar o recém-nascido Menino Jesus. A Bíblia é uma imensa reflexão sobre a morte, e termina da maneira mais categórica: sim, ela foi vencida em determinada época, e será vencida novamente. Que aguardemos.
Mas tudo isso, naturalmente, tanto pela gravidade da questão como pela minha paupérrima experiência, não serve para que eu firmemente tenha, atualmente, uma posição existencial sobre o problema. Estes “contatos” serviram, isso sim, como uma espécie de obra de arte: causaram-me, antes de mais nada, uma profunda impressão. Porque ainda que eu sinta, ao contrário, toda a sorte de forças que me desviam da impressão que tenho sobre a morte, e ainda que freqüentemente eu aja de forma contrária ao que penso, ainda assim tenho comigo todos aqueles exemplos. Sinto mesmo um certo conformismo a seu respeito. Penso, aliás, que há uma certa justiça na morte, se o leitor me permite disparar uma frase de efeito, a qual não procurarei, por preguiça, explicar. Não quero dizer que a morte seja uma felicidade, ou que devemos esperar pela redenção de nossas almas às custas deste mundo “cruel e feio”. Estou apenas comentando que ela parece apontar para algo que está acima das tribulações ensandecidas de nossa existência, o que me parece um indício de dignidade. Percebam: eu disse “apontar”, que equivale a uma indicação de certa coisa. Na realidade, não é a morte por si que é digna de elogios, mas a referência que ela nos dá a algo mais íntimo em e para nós mesmos, que não sei bem definir o que é, mas que todos aqueles grandes homens que citei, de alguma forma, ainda em vida enxergaram, procurando expressar de variadas formas, seja por escrito, seja pela música, suas impressões. É como se não fosse possível vivermos sem dar algum tipo de solução (ainda que seja provisória e hipotética) ao enigma que ela nos apresenta. Que é que existe depois dela? Será que você, amigo leitor, está lendo um texto que não servirá para nada, ou a atenção que você está gentilmente dispensando para ele será inútil, assim como as realizações minhas e tuas nesta vida, após deixarmos este mundo de justiça imperfeita? E se for assim, tudo inútil, para que tantos trabalhos? A morte é a esfinge que por enquanto devora todos os homens.
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