O problema mais grave de um filme como o “Inteligência Artificial” é o que chamo de “complexo de inho”. É um robozinho que tem aparência de menininho e que é adotado por um casalzinho, cujo filhinho está gravemente incapacitado. Ah: existe ainda um ursinho que vive atrás do robozinho. Isso sem contar em como este sujeitinho é enjoadinho. Confesso que se eu comprasse um robô assim, depois das primeiras três horas me seria difícil resistir à tentação de jogá-lo fora ou pelo menos devolvê-lo. Haja paciência...
Esses inhos têm seu motivo, e não é nada relacionado propriamente ao filme, mas a quem o vê. Porque das várias maneiras de cativar um espectador, uma das mais fáceis é a apelação aos sentimentalismos(inhos). Quem não fica emocionado vendo a história de um garotinho – ainda que seja um robozinho – que acaba sendo largado às próprias custas pela mamãezinha que ele tanto ama, esta uma mulherzinha muito carente, coitada? Quem resiste às desventuras do garotinho, acompanhado pelo seu ursinho e por um robô-prostituto bonzinho? E a beleza das cores do filme, com aquela cidade toda de néon à noite? Ora, se mulher pelada é para quem tem o sangue fervendo, e a violência gratuita é para quem for desprovido de sentimentos, o “complexo do inho” é a maneira de cativar quem tem coração mole ou está cansado das outras duas maneiras de apelação.
O pior de tudo é que o argumento do filme é muito bom. Vejam só quantas questões sobre o fato de uma empresa resolver produzir andróides com o intuito de serem substitutos de crianças para pais que, por diversos motivos, não podem tê-las, não surgem! É um tema sério e tenebroso por natureza. Todo mundo pode adivinhar que as conseqüências de algo assim não serão nenhuma beleza, e o próprio filme o comprova. Aliás, o pior de tudo é que o diretor não é nenhum incompetente. Nos lampejos sem apelação, ele mostra todo o seu potencial. Aquela cena mais para o fim, onde o garotinho vê uma série de cópias de si mesmo na empresa que o fabricou, por exemplo, é quase digna de redimir o filme. Ou aquela onde vários robôs buscam, no meio da sucata, alguma coisa que lhes sirva, inevitavelmente nos demonstra a gravidade do problema. Ou mesmo aquela cena onde o garotinho é abandonado pela mãe, que comove seriamente - a despeito de algum exagero por parte dos atores ou da trilha sonora, não me lembro direito. No entanto, Spielberg joga tudo fora quando quer porque quer meter um bando de ETs a fim de dar um final feliz, mesmo às custas da nossa paciência. Se o leitor prestar atenção no desenrolar do filme, verá que não há alternativa alguma para que ele termine bem. Tudo conspira contra aquele garotinho infeliz, o que de certa maneira, dentro daquele enredo, faz sentido, ou seja, faz bem. Então qual foi a única maneira de não deixar o público chateadinho? Foi inventar aquele esdrúxulo expediente dos ETs, quando era para o filme terminar, com todas aquelas explicações chatas. Seria menos pior se o próprio Jesus Cristo transformasse o garotinho num moleque de verdade.
Kubrick participou da elaboração do argumento daquele filme. Ora, pergunto ao leitor: se fosse ele o diretor em lugar do Spielberg, você poderia imaginar todos esses inhos? Respondo por ti: não! Ainda que o filmasse como uma fábula, provavelmente seria de propósito canhestra, afinal de contas, dadas as circunstâncias em que se passa o filme, a redenção do robozinho em gente de carne e osso não responderia a questão: e quanto aos outros milhares que surgiriam? E o problema da criação deles? É por causa de problemas assim que fica difícil comparar o “Inteligência Artificial” com Pinóquio: ambos se passam em circunstâncias muito diversas. Gepeto não criava simulacros de crianças. E sua sociedade nem podia imaginar um tráfico de bonecos ou um mal-estar de algumas pessoas diante de andróides (ou bonecos, que seja).
Por fim, toda a fábula possui um vilão. Pergunto: quem é o sujeito malvado da hitória? O caçador de robôs? Não, ele é, digamos assim, "politicamente correto", afinal tem muita preocupação em não pegar uma pessoa por engano. Os motoqueiros? Não, aparecem muito rápido. O público que quer ver os andróides serem destruídos? Mas não, diacho!, a gente compreende perfeitamente a posição deles. O único vilão que concebo é o menininho que foi causa da expulsão do andróide. Convenhamos que um vilãozinho desses não dá para o gasto...
Embora eu tenha criticado tão asperamente “Inteligência Artificial”, ele não é uma porcaria. Como eu disse antes, há cenas realmente belas, fora toda aquela potencialidade do roteiro. Mas bateu na trave, e por culpa consciente do diretor, fazer o quê?
Enfim, se eu tiver que recomendar esse filme a um público específico, recomendo aos de coração mole, que acham que tudo tem de ser muito bonitinho e fofo, independente do conteúdo infantilizante com que se depararem, e todo o gênero de pessoas impressionáveis. Pelo mesmo motivo recomendo a quem está habituado a assistir porcarias como “Cidade de Deus” e adjacências, porque pelo menos um filme como “Inteligência Artificial” pode servir como inspiração a conversas mais sérias e elevadas, o que não é o caso daquele troço horroroso.
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