Saturday, November 13, 2004

Do mal em ser amigo de todos

Quem é amigo de todos não é de ninguém. Daí que ser simpático com todos é indício ou de ingenuidade atroz ou de torpeza pura e simples. Em outras palavras, ser amigo de todos é implementar a discórdia em si mesmo.

Mas não faz parte do meu estilo disparar aforismos. Tratemos melhor essas idéias.

Imaginemos um exemplo absurdo. Que o leitor seja amigo de todo mundo de sua cidade. Ora, ainda que haja cidades e cidades, não é possível que em nenhuma não haja gente má entre os bons. Então o leitor necessariamente tem de ser amigo de gente boa e má. Mas que diacho de cidadão o leitor seria caso construísse amizades com qualquer tipo de gente? Donde se conclui que não é lícito conviver com qualquer um.

Há um segundo problema, que pode ser bem entendido se ilustrarmos com o exemplo da longínqua Idade Média. Naqueles tempos havia cavaleiros que juravam fidelidade a mais de um senhor. Este juramento implicava em vários deveres, entre os quais o de auxílio na guerra. Mas que acontecia se os senhores de um mesmo cavaleiro lutassem entre si? Então inventaram vários artifícios para tentar corrigir esse problema – não importa citá-los –, mas nada adiantou muito. Não devia ser raro um homem que jurara há tempos defender com sua vida seu senhor de repente virar-lhe as costas e prontamente auxiliar seu inimigo. Talvez mais sensatos fossem os japoneses: um samurai só podia ter um senhor.

E o problema da fidelidade atinge a religião monoteísta. Pois se para um islâmico só há um único Deus, como ele dirigirá um mesmo amor à outra divindade sem cometer o pecado mortal da apostasia, isto é, da traição? E aqui chego onde talvez alguém já tenha percebido: que não é possível amar incondicionalmente duas pessoas ao mesmo tempo e no mesmo instante. Haverá um momento em que nossos votos, tácitos ou não, entrarão em choque uns com os outros e cairemos numa traiçoeira cilada: atacar quem juramos defender. Pois se eu juro permanecer fiel a alguém, como terei dois senhores? A não ser no caso do leitor ser um protozoário, que consegue realizar a proeza da bipartição, suponho que seja uma tarefa ingrata servir da mesma maneira a dois amores.

Essa divisão de si mesmo é a conseqüência de atos que visam apenas interesses mais imediatos. Aqui vale alongar a analogia com os cavaleiros medievais. Eles muitas vezes juravam fidelidade a mais de um senhor para obter em troca mais terras, riquezas, poder sobre homens, etc. Mas tudo isso é válido quando o preço é se duplicar e lutar contra si mesmo, a fim de atender as exigências de vários senhores ao mesmo tempo? Daí que a traição leva à discórdia e à desunião, não só em relação a outras pessoas mas primeiramente consigo mesmo. Vida dupla, expressão que ilustra bem o problema.

O problema todo dessa questão é que não é possível, pelo menos num nível humano, conciliar o inconciliável. O “amai-vos uns aos outros” não pode ser lido de maneira incondicional. Até o amor é uma lei divina e, como qualquer outra, tem seus princípios. E este princípio, em relação ao divino, deve ser primeiro amar o bem e a verdade. Por isso, não nos esqueçamos, na bizarrice que chamamos de cotidiano, que buscar amizades a todo custo é uma atitude tão errônea quão execrável. Sejamos nobres e caridosos, mas sem com isso nos unirmos em uniões abomináveis a fim de trairmos a nós mesmos.

Fechemos este texto com a figura do monge. Ele é o melhor exemplo de fidelidade, pois só ama a Um. Este amor é tão fiel que nada mais no mundo é importante. E o monge ama apenas a Um e repele todas as outras coisas porque nada pode desviá-lo do único e mais rápido caminho para a vida perfeita. Apegar-se a qualquer outra coisa que não seja Deus seria um dividir-se a si mesmo. Vale a pena desenvolver mais este assunto, mas fica para outra ocasião.

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