Apenas querendo deixar de molho meu cérebro, sentei e fui trocando de canal, enquanto comia torrada com requeijão e bebia um "genérico" de nescau. Primeiro passei por um joguinho da Major League Soccer horrível: mais de 40oC no campo, um time todo de preto, falta de habilidade mínima com a bola. Depois pulei para a Record, onde passava, com uma dublagem igualmente horrível, "1492", na parte onde Colombo faz um discurso - para ficarmos com o mesmo adjetivo, horrível - para acalmar a tripulação, muito nervosinha por não chegar a nenhuma mísera ilhota. Passei. Caí na TVE, que normalmente já não tem algo bom, num programa de um cara gordão que acha muito interessante ter sua caranchona estampada na tela. Coisa detestável, parece com aqueles sujeitos que para conversar quase nos beijam. E dava até para ver detalhes dos dentes dele.
O nome do apresentador era Abujanra (ou coisa parecida), ator - já vi aquele cara numa novela. Mas o interessante mesmo era a pose dele. Se a tevê estivesse sem som, pelos seus gestos e expressões pareceria que estava fazendo alguma revelação religiosa - ou pelo menos uma ótima sacação, que seja. E de fato começou até bem, descontada a caranchona estampada na tela: "Hoje, direi uma coisa que o público médio desconhece por absoluto, que a imprensa desse país quase não diz, e que quase ninguém sabe. Vou falar sobre um dos movimentos mais lindos e importantes da história do mundo"... Ora, naquele momento, entre um e outro gole de meu nescau "genérico", instantaneamente fiquei pensando sobre que diacho aquele homem diria. Algo que o público médio não sabe? Que a imprensa não divulga? Que é lindo e importante? Várias opções surgiram, de modo arrebatador. Será que eu teria a felicidade de escutá-lo a dizer algo sobre o movimento pré-rafaelita, que mesmo não sendo lindíssimo é interessante? Ou haveria de ser uma apresentação sumária da redenção do barroco no início do século XX? Talvez, por outro lado, alguns comentários sobre o cinema alemão na década de XX, e quem sabe trechos de filmes como "Aurora" ou "Dr. Marbuse"? Quem sabe então - hipótese que eu considerava remotíssima - ele dirá algo a respeito da catalogação pela Sociedade de Bach em Leipzig, em vários volumes, das obras completas daquele compositor?
O leitor deve ter percebido que em todas as hipóteses eu imaginava algo relacionado às artes, num período de no máximo um século e meio, dentro de tudo aquilo que o ator disse: algo que geralmente o público nunca ouviu falar, que a imprensa não divulga, etc. Finalmente eu veria na TVE algo que valesse a pena. Mas eis que, para destruir tais sonhos e criar só pesadelos, como aqueles bichos de "Monstros S.A.", o ator arrematou: "Vamos aqui falar sobre a... Comuma de Paris". Só pude exprimir duas frases de uma palavra cada, até porque eu estava comendo torrada: "Hein? Quê?" E para não perder o embalo, ele, o apresentador de caranchona estampada na tela, franzindo a testa e dando um sorriso ao mesmo tempo que falava, pediu que um historiador convidado explicasse ao público o que foi tão solene movimento. Quando o historiador começou a dizer "a Comuna de Paris foi...", retornei ao joguinho.
Mas ele estava tão ruim que, vinte minutos depois, voltei àquele canal, pois eu estava curioso em como aquilo haveria de terminar. E peguei mesmo o final. Tive sorte, pois consegui pescar a pergunta-chavão clássica quando se discute socialismo e afins. Eis o diálogo rápido:
Abujanra (sempre com aquela expressão que mencionei acima): Daria para prever que a Alemanha Ocidental engoliria a Oriental e a enriqueceria? Daria para prever o desmoronamento da União Soviética?
Historiador (despenteado e com a barba por fazer, que proporciona segundo alguns um bônus no carisma, já que seria de mau-tom não fazer o genêro "estou-nem-aí-para-a-moda-porque-sou-inteligente-demais"): Ora, quem faz previsão é astrólogo. (risos de deboche) História não é previsão, só trabalha com post-facts. Não dava para adivinhar. Por exemplo, quem é que aqui no Brasil ia adivinhar que Tancredo ia subir ao poder, acontecer aquilo tudo com ele e que Sarney viria logo em seguida? (Em seguida, apresentador e entrevistado se levantam e se abraçam, dançando tempo polca. Não, não, a dança fica por conta de minha imaginação.)
Como em tão poucas palavras alguém concentra tanta bobagem? O historiador mistura eventos acidentais, como o fato do Tancredo ter morrido por complicações de saúde, com algo puramente analisável a partir de certos pressupostos (que foram colocados em prática), como foi o comunismo, para daí concluir que tanto a conclusão de um caso quanto a do outro foram puramente acidentais. Façamos a prova dos nove a fim de averiguar se o historiador tem razão, através de comentários e análises a respeito do socialismo feitos por certas pessoas, antes e durante a URSS:
1) Meados do século XIX: Donoso Cortés afirma que a Rússia seria o palco do socialismo e de sua expansão imperialista;
2) Fins do século XIX: Eugen von Böhm-Bawerk analisa "O Capital" de Marx e diz que aquilo é uma canoa furada, insustentável;
3) Meados do século XX: Ludwig von Mises e Friedrich Hayek dizem que uma economia controlada pelo Estado é inviável;
4) Fins do século XX: Ronald Reagan percebe que a URSS está com seus dias contados e a coloca numa arapuca cujo fim bom todos conhecemos;
5) Durante esse tempo todo (I): a Igreja repete constantemente que o comunismo é um perigo temível e que deve a todo custo ser evitado;
6) Durante esse tempo todo (II): uma cacetada de pessoas, mas uma cacetada mesmo, das mais diferentes opiniões, estão de acordo sobre o mal do comunismo e provam por A+B, tanto antes como durante a existência da URSS, que a experiência comunista resultaria em fracasso redundante e incrível perda de vidas;
7) E assim por diante.
Uai! E agora, em 2005, nosso caro historiador, com os (inúmeros) fatos à sua disposição, coisa que muitos dos que sabiam que o comunismo era um mal conheciam só parcamente, afirma descaradamente uma pérola dessas, achando que tudo não passou de um acaso igual ao que houve com o falecido presidente Tancredo Neves. Hazard is my ass. Desse jeito até me animo para virar historiador também.
Para combinar com o adjetivo-figurinha do início do texto: foi horrível o que ele disse. E ruim por ruim, mais uma vez retornei ao joguinho, e de novo pulei fora. Para voltar à TVE? Só se eu fosse um desses comunas que gostam de errar de novo: fui para o computador escrever isso aqui, pois me divirto mais.
Bom, como acho que sairia ganhando mais o leitor, no final das contas, vendo algo de fato um tantinho mais interessante, aqui vai um ou outro quadro de pintores pré-rafaelitas. Já disse que não acho lá mil maravilhas, mas é melhor que saber o que foi a Comuna de Paris. E até, boa noite (ou dia, que seja).
April Love, de Arthur Hughes.
Beata Beatrix, de Dante Gabriel Rosseti.
Sidonia von Bork, de Sir Edward Coley Burne-Jones.
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