Sunday, August 14, 2005

Sobre o intelectual

Posso estar enganado, mas talvez a profissão (?) de intelectual é das mais ingratas que existe.

Primeiro e mais fundamental: porque o intelectual deve lidar com a verdade. E isso, bondoso leitor, fará com que você, caso intelectual, passe por maus bocados. Em épocas tão bizarras como a nossa, ser intelectual, nesse sentido, é praticar exílio voluntário. (Aqui vale uma explicação. Quando eu digo que esta época é bizarra, não recorro a uma figura de estilo: é constatação de um fato. Mas se o leitor quiser uma imagem mais literária do que estou dizendo, então afirmo que nunca a gravidade se fez mais terrível e presente.) E isso porque a simples menção ou idéia de compromisso com a verdade chega a ser para muitos algo estúpido e deplorável. "O que é a verdade?", perguntava Pilatos. Pois hoje essa dúvida é tida como inquestionável certeza da não existência de uma verdade sequer (que não, é óbvio, que nenhuma verdade existe...).

Além de estarmos cercados por milhares de Pilatos (quando não nos comportamos que nem o próprio, às vezes), o intelectual vive normalmente uma vida estranha aos olhos da multidão. Ele é, definitivamente, um outsider, alguém que vive num fundamental descompasso com o restante do povo. Ele tem um gênero de vida tão singular que parece um outro tipo de ser humano. Suas preocupações geralmente estão em outra ordem. Que tipo de gente procura saber por que chove, por que o sol é quente e brilha, o que é a alma e se ela é imortal, qual a origem dos idiomas, qual o sentido da vida, o que é justiça, quanto mede a diagonal do quadrado, qual o órgão responsável pelos nossos pensamentos, etc? Daí a relação de amor e ódio que ele trava com o povo. Não sei se o leitor já reparou, mas em termos gerais o intelectual é venerado só depois de morto. Enquanto vivo, ou ninguém dá muita atenção ao que ele diz, ou caso dêem o tratam com desprezo, com as devidas exceções. Daí a célebre história de Tales e sua escrava. Por outro lado, chega a ser natural como o intelectual muitas vezes olha com desprezo (etimologicamente: "olhar por cima") o restante do povo, considerando-o ingrato. Talvez fosse demais dizer que o intelectual gostaria de ser amado e sente aquele tipo de rancor dos apaixonados que são solenemente ignorados, às vezes com deliberado pouco-caso, pelas suas amadas? Mas não acho nenhum pouco absurdo de se imaginar que, do ponto de vista da honra, só umas poucas e precárias vezes o intelectual recebe em troca honrarias à sua altura. Os antigos diziam que a guerra é gerada pela afronta à honra. Quem sabe então se todas essas filosofias niilistas são, no fundo, causadas por tal e rude golpe no orgulho do pensador (detesto esse termo) que as produziu?

A vida do intelectual é mesmo sui generis. "Como essa gente", pensa ele, "consegue se manter impassível e até algumas vezes hostil a coisas tão belas quanto a literatura, a ciência, a filosofia? Como é possível viver sem isso? Como é possível não ser intelectual?" Tais questões não deixam de ter uma bela dose de amor-próprio. Mas amor-prório esse repleto de fundamentos. Porque, como certa vez disse Ortega y Gasset, a vida do intelectual é maravilhosa. Coisas magníficas passeiam sem cessar ante seus olhos. Ele vive num estupor constante. E é nesse sentido que Aristóteles, na Metafísica, disse que

foi a admiração o que inicialmente levou os homens a filosofar

e que

buscar uma explicação das coisas e se admirar delas é reconhecer que as ignora; por esta razão o filósofo é, até certo ponto, um homem aficcionado pelos mitos, porque o mito se constrói sobre assuntos maravilhosos. (Met, I, 2. Grifos meus.)

É essa capacidade (ou falta de) que separa o intelectual do restante do povo: a maior parte das pessoas não sente admiração por nada senão aquilo que foge do habitual (eis uma teoria do jornalismo), enquanto para o intelectual tudo lhe parece maravilhoso. E mesmo quando ele está de posse plena dos conhecimentos a respeito de algo, ainda assim aquilo lhe parece belo. "Nada causaria mais assombro a um geômetra que ver que a relação do diâmetro à circunferência resultasse comensurável", disse também o mesmo Aristóteles. Se era admirável como as coisas são o que são, após o pleno conhecimento delas torna-se admirável como elas poderiam deixar de ser o que são. E tal estupor é proporcional, claro, à beleza do objeto contemplado. (Tal idéia tem como pressuposto que há uma hierarquia entre todas as coisas, mas isso é outra conversa.)

Aqui o leitor pode estar se perguntando se uma vida tão admirável pode ser tão ingrata. E digo que é justamente nessa admiração que está um grande perigo. Benedetto Croce disse certa vez que os maiores descalabros já ditos vieram justamente dos grande e famosos intelectuais. São coisas que nenhuma pessoa normal e minimamente sensata jamais diria. Ele citou como exemplos a implicância de Platão com a poesia e a presunção freudiana sobre a importância capital na vida humana daquilo que eu chamaria de mundo sub-humano. Mais exemplos de loucuras certamente não faltam - e sempre muito bem argumentados, como aliás todo louco costuma fazer. Zenão e a negação do movimento, Parmênides e a negação do mundo sensível, Marx e suas teorias a respeito da importância fundamental da economia, etc. Pois a admiração que todos esses e muitos outros intelectuais tiveram com o mundo foi tal que por um momento perderam o senso da realidade e o juízo, totalmente absorvidos por suas próprias divagações. Isso é mais ou menos como se tivessem tomado um baita porre de vinho. E como tal, a ressaca vem sempre terrível. (Acho que a filosofia realista é uma espécie de engove dos disparates intelectuais: ainda que não evite um eventual porre, nos protege bem dos efeitos da ressaca seguinte.)

Eis a que humilhação, a que espécie de miséria o intelectual está perigosamente destinado. É aquele famoso bordão que diz que a pior queda é a dos grandes. O longo livro da imbecilidade humana tem como principal contribuição esse tipo tão sui generis de homem, como um cachorro que não larga o osso.

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