Por acaso, pulando de canal em canal, peguei pela metade o Oratório de Natal de Bach. Como elogiar essa obra é querer explicar ao leitor que o fogo queima, digo apenas uma coisa: que a platéia sempre se supera nesse tipo de evento. Ora, imagine só, leitor: numa obra de mais de uma hora, a platéia aplaudindo a cada término de ária ou duo... Nos quinze minutos finais, provavelmente com a mão já em carne viva, o público parou de se intrometer. Ainda bem; imagino que simbolicamente foi Bach que do Céu usava a palmatória naquela gente mal-educada.
Interrupções fora de hora, ao menos em concertos, são coisas de praxe por estas plagas verde-amarelas. Não sei dizer como é lá fora; mas aqui a coisa chega a um nível absurdo. Coisas de brasileiro, coisas de brasileiro...
Já prevendo algumas (más) reações devido a minha simpática alusão aos brasileiros, peço licença para contar algo que eu presenciei com estes olhos muxoxos que a terra há de comer e passar mal: eu e meu amigo Thiago fôramos ao Theatro Municipal (aqui no Rio) assistir a alguns trechos de Beethoven, se não me engano no ano passado ou retrasado. Pois bem, a orquestra tocava o último movimento da Nona, quando, no meio da parte coral, após uns dez minutos, quando o coral silenciava para a entrada do tenor (no verso Und der Cherub steht vor Gott), de repente a platéia veio abaixo. As pessoas começaram a aplaudir freneticamente, provavelmente achando que a música terminara por ali mesmo. É verdade, admito, que aquele trecho é bem empolgante, mas daí interromper a música é demais. Não lembro bem, mas acho que inclusive houve um princípio de u-hu!, que graças aos céus morreu prematuro. Naquele fatídico instante, meu corpo se contraiu de tal maneira e meus olhos, pasmos, procuravam com tal ênfase uma explicação visível para aquilo que possivelmente meu amigo deve ter se assustado comigo. Acho que ele mais tarde até confessou que já ia aplaudir – oh, desejo mimético! -, mas se viu inibido ante minha expressão de horror.
Um público despreparado é sempre imprevisível. Imagine o leitor um tatu-bola que seja perseguido por agentes do FBI munidos daquelas armas que dão choques, e eventualmente acabe por ser acertado uma ou duas vezes: coisa tão esquisita quanto à percepção do público ouvindo a Nona. Veja bem, não estou aqui dizendo que apenas criaturas intelectualizadas têm a capacidade de ouvir Beethoven, mas sim que uma gafe é bem provável caso não estivermos adestrados o suficiente para enfrentar certas situações.
Noutra ocasião, acho que no início do ano passado, também no Municipal, à medida que o coro ia entrando as pessoas aplaudiam. O problema todo era que as pessoas aplaudiam a cada fileira que entrava, pois o coro era grande, o que tornava os aplausos intermináveis: eles iam terminando quando de repente uma nova fileira surgia do nada; então retornava o frisson popular. Evidente que aquilo deu no saco. A impressão que dava é que ninguém agüentava mais aplaudir, mas por uma idiotice qualquer não cessavam. Enfim, até o bom-senso dessa gente não funciona em questão tão prática: se era para aplaudir, que assim fizesse quando o maestro surgisse, reservando a bateção para o final. Fiquei com vontade de tirar meus sapatos e batê-los um no outro para ver se o ridículo da situação fizesse com que o frisson baixasse.
E quanto àqueles pequenos ruídos que o público sempre reserva para o momento imediatamente anterior à execução da música? Barulhos pequenos, porém praticados de maneira tão persistente e sincronizada que julgo não ser de todo temerário supor que em meio ao público se forma, por natureza, neste instante, uma espécie de “orquestra paralela”, provando assim empiricamente que todos os homens são músicos em potencial. Talvez pela ânsia de provar que ainda está vivo, embora calado e em ambiente escuro, o público faz as cadeiras rangerem, sussurra de maneira que todos ouçam, chora – literalmente, conquanto (pelo menos que eu tenha presenciado) apenas as criancinhas –, tosse de forma assustadora, etc. Isso sem contar com um ou outro velho que parece não ligar muito para as convenções sociais e insiste em falar alto, aborrecendo-se quando reprimido. Isso me fez lembrar um conhecido meu, que com seus quase sessenta anos teve a autoridade de me dizer que “esses velhos acham que só porque são velhos podem fazer o que querem” (sic), após ouvir um senhor que lamentavelmente cismava em gritar após o alerta para o início do espetáculo.
Eu ia reclamar de mais algumas coisas a respeito do comportamento do público (quando não é o pessoal do próprio espetáculo que causa vexame: vivem dizendo que em teatro o pessoal da fileira da frente recebe uma ducha de saliva dos atores babões. Isso sem contar os espetáculos ditos de "vanguarda", nos quais o pobre-diabo do espectador paga para ser feito de gato-e-sapato pelos supostos artistas; ou mesmo aqueles pobres miseráveis que pagaram não-sei-quantos-reais para assistir Caetano Veloso sendo despido até ficar com o bumbum murcho de fora. É por essas e outras que não vou ao teatro, já que não costumo pagar para ser tratado, à semelhança dos masoquistas, como um vira-lata pulguento.), porém estes pequenos exemplos bastam para aqueles que já têm uma certa experiência nestas coisas. E para quem não tem, que faça como eu próprio fiz nas primeiras idas ao Municipal: vai acompanhado por alguém mais sábio, e só cometa a audácia de aplaudir não quando a chusma assim o fizer, mas tão-somente quando o sábio assim o fizer.
Marido e mulher deveriam aplicar a base deste princípio em seu relacionamento mútuo, e então seriam para sempre felizes. Mas perdão, leitor, por essa inferência aparentemente desconexa. É um subplot de um futuro texto, tenha paciência...
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1 comment:
Olá,
li este texto e juntamente com vc detesto maus comportamentos em concertos!GOSTARIA DE SABER SE VC TEM ALGUM MANUAL DE BOAS MANEIRAS EM APRESENTAÇÕES DE MÚSICA ERUDITA PARA ME INDICAR:
Juliana
julibelbr@yahoo.com.br
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