Hoje eu estava lembrando do mural do Centro Acadêmico da faculdade. Havia um monte de coisas nele, porém o que mais me chamava atenção era a parte sobre cultura. Não lembro exatamente o que havia escrito ali cotidianamente, mas eu sempre tinha a impressão de que por "cultura" os coordenadores do mural entendiam um amontoado caótico de gostos totalmente doidos que porventura tivessem alguma coisa a ver com política. "Cultura", no caso, era simplesmente um desregramento qualquer apoiado em algo que, em última instância, o justificasse, mas sempre tendo um fim político, ainda que remoto. Até a loucura tem algum método.
Além daquele mural, outra coisa que me chamava a atenção era a mania excessiva de se possuir um trejeito. Era como se o mais importante, a meta almejada na faculdade não fosse o que se estudava, o saber, mas a incorporação de modos. Podia ser o modo de falar, de se vestir, até mesmo de se sentar e de olhar. E o que é mais estranho (ou de se esperar) é que isso ocorria quase naturalmente. De repente você estava todo "universitado", se o leitor me permitir tal expressão tenebrosa. O universitário geralmente se trái. Quando você ouvir alguém dizendo alguma coisa bizarra, como por exemplo "Eu, entrando aqui, será uma fogueira de paradoxos", pode ter certeza que é universitário. Claro que o bizarro admite graus, porém nunca deixa de ser esquisito. Em todo o caso, o camarada podia ser burro feito uma porta, mas ele haveria de conquistar, talvez por osmose, todo um repertório de ademanes que indicariam de onde ele era, quase como se fosse uma nova impressão digital. Isso não deixa de ser um caso interessante de estudo antropológico.
Querem ver um dos rebentos desse estado de coisas? A TVE é um belíssimo exemplo. Com um pouco de prática você é capaz de dizer qual é a universidade, o curso, o período e as notas de cada um daqueles jovens apresentadores, ou mesmo se fazem pós-graduação e qual a tese. Posso até mesmo listar um conjunto de sujeitos mui apreciados pelos nossos simpáticos universitários: Raul (perdão, Raulzito), Francisco Buarque de Hollanda (perdão de novo, é Chico), Marisa Monte, os grandes poetas Caetano Veloso, Renato Russo e Bob Dylan, Sartre, Nietzsche, Bukowski, um poeta de boca meio mole e brasileiro que esqueci o nome mas vive aparecendo na TV dizendo que é beatnick, Paulo Leminsk, talvez algum rock... E tudo isso porque o camarada é culto. Mas ser culto é coisa esnobe. Então ele vai gostar também de coisas do povo, como um sambinha (não qualquer um, senão é esculhambação, tem de ser da época de D. João Charuto) e um pagode ("de raiz", conforme dizem, seja lá o que isso for). É assim que fica o intelectual depois de tomar muito sol na cuca. E há mais coisas. Fiquemos apenas nessas.
A universidade é um enorme centro de recreação e terapia. Vira clube, onde os pais deixam seus pimpolhos. Lá eles fazem cabriola. Porque onde não há regras sobra bagunça. E aí percebemos o que leva esse povo alegre e festeiro a ter uma concepção tão troncha de cultura. Ninguém quer saber de regra nenhuma. Mas façamos aqui uma concessão. Há uma quantidade imensa de sujeitos que poderiam te dizer que gostam deste ou daquele grande escritor, deste ou daquele grande pintor, etc. Pode parecer mesmo que na verdade repudiam aqueles ademanes todos, conservando-os tão-somente como máscara para espantar a multidão de brutos e inconvenientes. Isso por si só já demonstra que a atmosfera ambiente te obriga a tomar uma determinada postura. Agora bem: quantos seriam capazes de sustentar suas opiniões de modo objetivo, racional, acurado, sem temor da multidão? Sabemos que os menos aptos a sobreviver em dado ambiente acabam morrendo ou tendo de procurar outros ares. Não seria diferente nesse caso. A tendência de que haja pessoas capazes dessas coisas vai tendendo perigosamente a zero, e daqui a pouco será uma questão de façanha. Ora, nada mais diverso do que teria de ser um ambiente de intelectuais.
(continua)
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5 comments:
Tenho a impressão de que mudarei alguma coisa nesse texto. Isso que dá escrever por causa da vontade pura e simples, temperada com um sono tremendo.
Bom texto. Mas, em um ano e meio de universidade, não desenvolvi qualquer habilidade de perceber a tipologia dos sujeitos e seus cursos. Sei lá, acho que prestar atenção neles me fazia mal, me deprimia.
Estudar esse tipo de coisa deve ser mais ou menos como tentar entender o demônio. Necessário e até interessante, mas provavelmente nocivo.
Marcio Hack
Ah, e o Olavo de Carvalho disse numa aula que a chave para entender esses maneirismos é o conceito de "desejo mimético", do René Girard. Já comprei um livro dele, mas ainda não comecei a ler.
Marcio Hack
Marcio, certamente se o centro de nossas atenções recair nos trejeitos das pessoas de uma faculdade, então alguma coisa está muito errada. Mas o fato de darmos as costas conscientemente para uma coisa já indica como essa coisa está presente para nós. Virou problema: está bem no meio do caminho, o que nos faz usar de mil táticas para vencê-lo. Embora eu nunca tenha pensado seriamente nisso, talvez seja natural que haja alguma imitação. Mas isso nunca foi tão problemático quanto agora. Chama muito a atenção.
A analogia com a demonologia foi interessante. Eu diria, além disso, que uma observação mais atenta poderia servir como exorcismo.
Nunca li nada de Girard exceto comentários aqui e acolá. Quando você ler, me diga o que achou. Por sinal, qual livro dele que você comprou? Abraços.
"Um longo argumento do princípio ao fim", que o Olavo, descobri agora pelo Google, elogiu neste artigo:
http://www.olavodecarvalho.org/semana/girardboff.htm
M.
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