Nota: O texto é de meados do ano passado, mas eu o reescrevi quase todo hoje.
Em certo post, Ruy Maia Freitas, do ótimo Despoina Damale, disse algo sobre a importância do senso poético. Curiosamente, eu também havia pensado sobre isso, porém em termos um pouco diferentes. Talvez alguém ache até mesmo inusitado o que direi.
Que eu seja cobrado pelo mais empedernido leitor: que raios eu quero dizer? Vou dar um exemplo que parecerá muito, muito idiota, mas não o é – creia em mim. Digamos que eu, ou mesmo você, faça uma troça ingênua sobre determinado assunto, por exemplo o teatro, afirmando que seria menos pior ele não existir a ser cuspido o tempo todo na platéia. Muito bem. Vamos continuar dando asas à imaginação e suponhamos que um sujeito de humor um tanto canhestro, tendo ouvido a troça, resolva logo em seguida explicar passo a passo a grandeza e o esplendor do teatro, cite de cor inclusive a Poética, explique direitinho a história da tragédia, sua relevância para o homem, tudo sem nunca deixar de cobrar exatidão filosofia e quiçá escolástica sobre os conceitos empregados na troça, etc, etc. Ótimo, ninguém duvidaria que quem nos respondesse assim não é uma pessoa de todo mal-informada: quantos seriam aqueles que leram a Poética e algo da escolástica? No entanto, e farei uma comparação com a música, é evidente que houve uma desafinação aqui, porque o que eu – ou você – disse com determinado tipo de espírito, em tom de pura galhofa, o nosso amigo entendeu de outra forma ou não conseguiu manter a conversa no mesmo tom.
Nem discutamos se o sujeito é ou não pedante, ainda que pareça que sim. O problema todo é a maneira com que o nosso caro e suposto amigo encarou a circunstância. Mesmo tendo razão e mesmo tendo o direito de cobrar maiores explicações, o fato é que a situação não exigia de maneira alguma tal tipo de postura. Não sei se o que quero dizer ficará mais claro ou obscuro com a analogia que direi a seguir, mas é como se ele exigisse uma visão escolástica de uma intuição mística, o que seria absurdo. Claro que aqui no exemplo nem há mística ou escolástica, mas fazer cobranças desse tipo naquela circunstância é falta de senso poético. A resposta correta deveria vir mais ou menos na mesma clave. É como se cobrássemos – mais uma analogia – de alguém que contou para a gente uma piada de judeu exatidões filosófico-históricas a fim de provar que a piada não faz jus aos judeus.
Encarar as coisas sem o menor espírito desportivo - espécie de variante do senso poético – é uma característica de duas classes de seres: os animais e os loucos. Sim, os animais, porque afinal de contas alguém já viu um animal irônico ou, fazendo aqui uma concessão a um leitor louco o suficiente para ainda teimar, pelo menos irônico de propósito? Quanto aos loucos, não é difícil entender o motivo: eles encaram tudo de maneira racional demais, colocam a razão acima de tudo, o que naturalmente leva qualquer um à demência. Já dizia Chesterton: O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão. Alguém lelé da cuca necessita de uma explicação sumamente racional para tudo justamente porque perdeu todo o senso poético do mundo. É sempre assim: começa elogiando até o exagero a ciência e a razão, depois não entende mais as razões das pessoas darem um simples “bom dia” umas às outras, acaba acreditando piamente em toda uma série de disparates (apoiados no que ele chama de ciência), até que, no fim, caso ele seja coerente consigo mesmo, termine seus dias num hospício. Daí haver duas classes de loucos: a daqueles que de fato vão parar no hospício achando que vivem no passado, em outro planeta e demais coisas intrigantes do gênero, e a de alguns intelectuais. A diferença de um doido que está no hospício e alguns intelectuais é que estes não têm coragem de levar suas idéias até as últimas conseqüências. Mas vez ou outra aparece algum mais corajoso e que vira lenda. O exemplo que me vem à mente é o de Empédocles. Segundo uma anedota, após ter salvado os selinúncios de uma grave peste, Empédocles, durante um banquete em comemoração do fim daquela desgraça, foi honrado pelos habitantes da cidade como se fosse um deus. O sábio então teve a esdrúxula idéia de comprovar a opinião dos selinúncios jogando-se dentro de um vulcão ali próximo, o famoso Etna. Segundo alguns, o vulcão logo em seguida cuspiu uma de suas sandálias de bronze que ele costumava calçar. Bom, se dermos crédito à história, temos um belo exemplo de uma falta completa de senso poético, embora o cronista desconhecido tenha introduzido o elemento faltante na conclusão do episódio, ressaltando ainda mais o caso insólito. A falta de senso poético do filósofo fica então compensada com a ironia do cronista. O pobre Empédocles levou toda a história a ferro e fogo, até literalmente no caso do fogo e menos literalmente em relação ao bronze. Mas longe de ele ser um caso isolado dentre os intelectuais que embirutaram. Há pelo menos cerca de trezentos anos parece que alguém resolveu deixar que os loucos publicassem fartamente suas “reflexões”, muito embora, a bem da verdade, eu tenha de admitir que a loucura pareça rondar a vida de qualquer intelectual desavisado.
Um dos mais curiosos e badalados subtipos de intelectuais loucos é o cético materialista. Este de fato não consegue nem mesmo entender como é possível gostar de um poema, isso quando pelo menos o compreende ou imagina compreendê-lo. Note o leitor que não me refiro simplesmente àquele pasmo inicial daquele que ignora algo que de repente aparece na sua frente. Me refiro ao sujeito que só acha que algo está cabalmente explicado quando demonstrado quase de modo físico-matemático, científico. O louco que escolho para ilustrar este exemplo é Karl Marx. Dizem que ele gostava bastante de literatura, em especial a Ilíada. Mas vejam só que coisa curiosa. Ele ficava se perguntando como era possível gostar tanto de um poema feito num modo de produção tão diverso do seu. Santo Cristo! Ele tinha que encaixar o bendito livro que tanto gostava em seu modo de conceber o mundo mas simplesmente não conseguia. Se os fatos contradizem minhas teorias, pior para os fatos, já disse um outro intelectual tantã. Tivesse Marx pensado suficientemente bem apenas sobre este pequeno exemplo e talvez nunca mais viesse com aquelas histórias sobre a cultura ser uma espécie de vestimenta enganadora de uma realidade mais profunda, a saber, a senhora economia e a luta de classes. E não faltam pessoas que raciocinam mais ou menos por este esquema, o qual muitos chamam de “científico” (lembremos mais uma vez daquela frase, “o doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão”): gente que acha que os genes, o sexo, a linguagem e demais excentricidades explicam absolutamente tudo da vida humana. Sim, excentricidades, termo muito próprio, porque tais coisas, embora façam parte de nós, não são de modo algum a gente; é como se vivêssemos através delas, ou mediante elas, embora em última instância sejamos anteriores a elas, que são só a nossa roupagem: são a nossa epiderme. Assim, o sujeito é biruta porque pensa que a nossa vida é tão somente o superficial. Mas a realidade, como não poderia deixar de ser, se apresenta lotada de apesares. Quando o indivíduo é confrontado com eles (os apesares teimam em aparecer), ele então sobe no caixotinho escrito Raison, bate no peito estufado e diz, todo categórico: “Eles não existem! Eles não existem! Vocês estão todos loucos! Loucos!”
O mundo do doido, embora pareça ser todo bem-amarradinho, todo explicadinho, é de um brutal desleixo. Tudo, tudo que é muito bem explicado só o é porque deixou alguma coisa de fora. A simplicidade se faz às custas dos elementos indesejados. É verdade que a ciência opera mais ou menos assim, porém há sempre um limite claro. O físico sabe (ou deveria saber) que seu afazer, embora nobre e valiosíssimo, não esgota todas as possibilidades da realidade. O que não está na alçada da Física, que outra ciência busque explicar. E assim por diante. Acontece que o doido é por natureza destemperado. Então vai andar por cima de tudo como um rolo compressor. Se algo não se encaixa em seu mundo, então é porque não presta. O cético materialista sempre passa uma sensação enorme de aridez mental, de uma pobreza franciscana tremenda, mesmo sendo aparentemente um sujeito bem-informado e instruído. Na verdade, parece demais com um daqueles sujeitos pobres e muito mal-educados que de repente ganha dinheiro demais: com toda a riqueza à sua volta, continua grosseirão em essência.
Essa situação, justamente por ser tão errônea, nos leva a um paradoxo dos mais inusitados. É que o doido, quando corajoso, quando finalmente percebe que não consegue explicar tudo conforme a Senhora Razão, acaba acreditando piamente que este mundo é, em suma, irracional. É o caminho mais natural da “razão embirutada”. Ela começou crendo demais em si mesma e acabou perdendo o juízo e atribuindo os seus próprios disparates à própria natureza do mundo. Em face disso, surge toda uma filosofia que bem mais merecia ser chamada de antifilosofia. É o niilismo final. Nada mais faz sentido, não existe verdade, nem você é quem você é ou o que você pensa foi você mesmo quem pensou. Racionalmente você descobre que não existe razão coisa nenhuma. Uma antifilosofia desse tipo pode ter várias repercussões. Ora ela pode ser encarada de modo desesperado (ou destemperado, que o leitor escolha)– aí estão os suicidas para confirmar –, ora ela pode ser encarada de maneira resignada, com algum resquício estóico que todo o sujeito sentimental geralmente possui. Independente da posição tomada, o dado é este: o mundo é trágico. É por este motivo que imagino ser difícil encontrar um cético realmente bem-humorado. Se ri, é um riso nervoso, quase de desespero. Vive, ou melhor, sobrevive. Ele é como uma árvore seca, pois o senso poético é a seiva o que nos vivifica.
É por este motivo que, ao ouvirmos de alguém cheio de sentimento trágico, que o mundo é uma piada, devemos logo em seguida concordar e até agradecer pela pessoa ter dito tão sábia coisa. Porque apenas um ser dotado de muito bom-humor poderia criar coisas tão belas e boas. E se tudo for fundamentalmente um bem e for bom, então mais um motivo para isso tudo ser uma bela e espirituosa piada, porque tudo o que termina bem é uma comédia. Entre um mundo trágico, onde tudo é marcado pelo mal, e um mundo cômico, onde você pode se divertir porque as coisas são boas e terminam bem, há uma larga diferença. Peço inclusive ao leitor, caso tenha achado estranho o que eu acabei de dizer, que puxe pela memória acontecimentos que pareciam ruins, bem ruins, mas terminaram bem em sua própria vida. Hoje você não consegue até achar graça deles? Contudo, imagine agora se eles terminassem de fato mal: ninguém, ou melhor, nenhuma pessoa de bom-gosto costuma fazer piadas de morte de gente querida. Acho até que foi Machado de Assis que disse ser isso, a morte, um assunto sério por excelência. Mas voltando àquele ponto de vista sobre o fino humor que sutilmente marca este mundo, ele só pode ser percebido por quem possua uma visão poética da realidade, pois do contrário exigirá, como o chato que nunca entende uma piada, explicações pormenorizadas e por fim inúteis de algo que você deveria entender antes pelo espírito da coisa. Daí que uma pessoa inteligente é sempre, e antes de tudo, espirituosa. E o que mais uma pessoa assim faz senão instintivamente dar as mais sábias, curiosas e devidas respostas nos momentos mais inusitados possíveis? Isso porque uma pessoa espirituosa entende bem sua situação e seu momento: é o tal do senso de timing. E seus ditos podem ganhar tanta fama que, esquecido o sujeito que os proferiu, ainda assim eles continuam sendo usados por quem nunca o viu mais gordo e em épocas nunca dantes imaginadas, como é o caso dos provérbios, armazém do senso comum. Ser espirituoso é saber encarar a realidade com o devido senso poético, ou seja, uma espécie de sentido que a transcende e aponta como as coisas deveriam ser. Aliás, este é um outro motivo de tanta gente supostamente racional(ista) menosprezar os ditados, outra fonte do senso comum, pois não podem entender o fundo espirituoso subjacente aos mesmos. Quanta sabedoria e verdade não há naquele velho provérbio português que diz: Não há geração sem rameira ou ladrão.
Para evitar qualquer mal-entendido, aviso de uma vez por todas que no parágrafo anterior não gracejei nem do mundo enquanto criação da boa-vontade divina, nem do senso comum, nem fiz abstração descarada da tensão trágica que também existe neste mundo. Quando digo que tudo aquilo é entendido melhor à medida que tenhamos uma visão espirituosa, acrescentando que o bom-humor está subjacente a isso tudo, não quero dizer que tudo está destituído de seriedade ou que não é para ser levado a sério. Neca de pitibiriba. Embora eu não goste muito de me expressar por idéias paradoxais, ao menos não em prosa, eu diria de um modo poético que a realidade é de tal modo séria que nos faz sorrir de satisfação. É justamente sua seriedade e seu peso que acabam nos dando a real medida da alegria. Isso é uma coisa que um cético não vai entender nunca. Sempre lhe parecerá um mistério como pode haver gente que se rejubila por causa do mistério do Deus pregado na cruz.
Enfim, foi pensando mais ou menos nessas coisas que também percebi a importância do senso poético para lidarmos com o mundo. A falta dele faz com que invariavelmente representemos sem querer, também como Ruy M. Freitas comentou a respeito do caso particular de cem freiras marchando junto ao MST até Brasília dia desses, um papel tragicômico no grande palco do mundo. Ficamos naquele meio-termo que só serve para nos denegrir e nos confundir. Começa bem, começa sensato, mas termina muito mal, porque na verdade nem começou bem, nem sensato. Não é à toa que ao mesmo tempo que abundam os céticos, abundam também a loucura e toda a sorte de disparates. Mas não é nada, meu caro leitor, que São Paulo já não apontasse a solução. Porque, segundo ele, onde abunda o pecado, superabunda a graça. A marca da alegria é sempre presente. O Apóstolo tinha mesmo um baita senso poético.
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