Um bom amigo meu, certo dia, se queixava comigo porque achava que escrevia mal até não mais poder. Enquanto ele fazia suas confissões, eu sorria um pouco, mais ou menos como quem diz em tom de galhofa: "Bem vindo ao clube, amigão!"
Infelizmente eu não estava em condições de lhe dar algum conselho para que escrevesse melhor, pois sou a penúltima pessoa deste mundo que tem condições de dar conselhos: não a última, porque já vi horror pior que o meu. Mas se não estou no último lugar da fila, então alguma coisa eu sei, ou supostamente penso saber.
Vamos então ser poéticos, leitor, e fantasiemos juntos.
Uma coisa que me parece ser tão clara quanto Jesus ter sido filho de Maria é que só se aprende a escrever primeiramente lendo. Só que há leituras e leituras. Será difícil saber escrever lendo jornais, ou pelo menos os jornais de hoje em dia, que são escritos do jeito mais troncho possível. Às vezes é tal o descuido com o texto que podemos mudar de posição os parágrafos e até todas as frases sem que haja a menor diferença. As idéias não formam um todo amarradinho, sem contar quando são vagas, imprecisas. Pelo contrário, mais parece que foram expelidas com toda a má vontade deste mundo, cuspidas no papel a intervalos irregulares. Não será pelos jornais que aprenderemos a escrever, embora haja as sempre honradas exceções. Pensemos então nos livros. Mas quais? Há livros que só servem de alimento às traças, e com razão. A promiscuidade de publicações deveria ser um pecado equivalente à luxúria. É uma montanha de entulho que sem dúvida nenhuma tende ao infinito. A situação só não está irremediavelmente perdida porque da mesma forma que a existência de um só justo redime toda a cidade corrompida, também um bom livro justifica de certa maneira a má nomeada dos seus demais irmãos de papel.
Mas essa retomada de confiança nos livros não respondeu a pergunta: quais? No caso em questão, leitor, só podem ser os clássicos. Teremos então de ler as principais obras de nossa língua, antes de mais nada, a fim de saber como se deve escrever. E aqui peço licença ao Senhor Fio da Meada para convidar a Senhorita Digressão. Acho útil lembrar ao leitor de onde vem a expressão "clássico". Sabemos que o português é derivado do latim, e naturalmente há milhares de palavras provenientes da língua de Cícero. A nossa palavra em questão está nesse vasto grupo: provém do termo classici. Segundo Áulio Gélio, ele se referia, em sentido estrito, à primeira das classes instituídas pelo rei Sérvio Túlio. Com o passar do tempo, o sentido da palavra também passou a desiginar aquilo que fosse mais exemplar e elevado. Até hoje dizemos que um "sujeito desclassificado" é aquele sem modos, enquanto o que tem classe é mais digno. Naturalmente, o termo foi sendo utilizado também para designar as obras que eram mais estimadas. Assim, da mesma forma que há várias categorias de cidadãos, sendo que uma delas é a mais elevada (e por isso mesmo a menor, se bem que a mais poderosa), há várias categorias de livros, dentre as quais o seleto grupo dos clássicos. E onde um romano aprendia os clássicos? Na classis, que em português dará a nossa classe. Era através deles que o jovem romano, auxiliado pelo grammaticus, dominava com maior solidez o latim. Ortografia, gramática e, é claro, um mergulho em sua cultura, tudo isso o moço romano aprendia através dos clássicos. Aqui o Senhor Fio da Meada gentilmente pede a mão da Senhorita Digressão, porque o ensino dos jovens latinos muito tem a ver com o que estamos discutindo, leitor, que é o saber escrever. Os clássicos serviam como exemplos para o aprendizado. E, coisa curiosa, o ensino da gramática, segundo os antigos, vinha exatamente acompanhado do ensino literário. Esse verdadeiro legado romano foi largamente utilizado durante boa parte da longa Idade Média.
Do que foi dito, poderíamos fazer a seguinte pergunta: quais autores estariam para a nossa língua assim como Cícero e outros estavam para o latim e Homero e os demais ilustres helenos para o grego? Tendo em vista que as obras clássicas têm a característica de estarem já consolidadas - elas se tornam uma autoridade por si mesmas e pela força da tradição -, citemos só uns poucos nomes como exemplo: Camões, Pe. Antônio Vieira, Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Machado de Assis. É lógico que há muitos outros, e não apenas no campo da literatura propriamente dita: é o caso de Joaquim Nabuco, só para dar um exemplo. Cada um desses autores (e muitos outros) são muito úteis como exemplo do bom modo de escrever, e é muito útil imitá-los como estudo. Com a prática, as construções mais intrincadas e o vocabulário mais nebuloso tornar-se-ão familiares. Nossa compreensão do idioma aumentará aos poucos, e então saberemos nos expressar muito melhor que antes, sem contar que ao mesmo tempo nossa própria cultura literária crescerá.
Leitor, aqui termina a nossa fantasia, mas antes quero dizer mais três palavras.
Vou aos poucos colocando em prática tudo isso que te disse, embora eu esteja seguro da minha defasagem, sobretudo se compararmos com que idade um moço romano já dominava perfeitamente sua língua. O domínio do próprio idioma é uma condição básica para o desenvolvimento cultural, portanto é mais que urgente estarmos largamente familiarizados com ele, ou seja, é vital dominá-lo bem, ainda que às vezes ele nos seja violentamente hostil. É preciso aprender a domesticá-lo.
A discussão acerca do que é um clássico certamente não se encerra com o que eu disse, pois minha intenção era só dizer uma coisinha em linhas bem gerais. Além disso, é importante avaliar até que ponto os clássicos de uma língua estrangeira podem ser úteis para a nossa.
Por último, ainda que eu incorra no pecado de subestimar o leitor amigo, aviso que é claro que a discussão sobre como escrever bem não se esgota aqui. Há outras coisas importantes também. No entanto, achei por bem atacar um dos pontos mais necessários e tradicionais, que é o auxílio dos clássicos.
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2 comments:
Enquanto eu escrevia o texto bateu um soninho gostoso... Espero que uma coisa não tenha relação com a outra. ;)
Poxa, tinham deixado uns links bons sobre o assunto... Por que tiraram?
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