Friday, May 12, 2006

Reflexões melancólicas sobre o Rio

Não sei dizer se em tempos passados o mundo costumava entrar com mais sem-cerimônia que a habitual em nossas casas. De qualquer modo, antigamente havia os ermos lugares para onde acorriam, como o leitor pode concluir antecipadamente, os ermitões. Lá no alto penhasco, na densa floresta ou isolada ilha, havia refúgio. Havia também um dado que hoje não temos: o tempo, comparado com o nosso, parecia um velhinho de bengalas. Tudo acontecia devagar. As guerras duravam cem anos, os homens estudavam por uns vinte anos na universidade, Cícero discursava no Senado por horas. Mas, que coisa curiosa!, ainda que a arte fosse longa, a vida conseguia ser mais breve que a de hoje. Breve, porém vivida como se fôssemos eternos.

Essa serena e imponente calmaria, que podemos ainda contemplar numa melancólica ruína ateniense ou romana, virou pó. Os tempos mudaram demais. E todo o tumulto que acontecia por baixo daquele andar vagaroso a nós parece algo menor. Mesmo um ambicioso como Marco Antônio, aos olhos de hoje, parece antes um líder de centro acadêmico universitário que um general populista romano. Hoje, qualquer zebedeu arregimenta massas imensas e delira publicamente como se fosse profeta. Lembremos do cabo austríaco ou do operário sem dedo.

Vejamos um exemplo retirado de minha própria experiência. Segunda-feira última, estava eu em casa quando fui surpreendido por uma gritaria. Pensei que minha Roma, que é meu prédio, estava sendo invadida por um bando de arruaceiros, os hunos de todos os tempos. Ora, se havia invasão, era metafórica: a bagunça ocorria há muitos e infelizmente não maiores metros. Como toda bagunça tem o dom de repercutir com intensidade por tudo ao seu redor, mais ou menos como um terremoto, então era realmente como se houvesse um comício na porta de minha casa. Minha casa, meu mosteiro! E se nem mesmo as casas piedosas escapam da turba violenta, que diria meu lar infestado pelo século!

Lembro que escutei uns zurros (porque pessoas não se comunicam aos gritos e urros), e o que era particularmente mais belo era que quem liderava aquela supina sem-educação não era outra pessoa senão nossa atual governadora. A senhora governadora liderava a gritaria, os xingamentos e as palavras de ordem. Eu era obrigado a ouvir tudo aquilo, porque não havia como eu fisicamente fugir. Sim, fisicamente: depois lembrei que seria mais sábio colocar uns fones de ouvido e ouvir música, coisa que prontamente o fiz. Meu espírito se afastou para lugares mais belos, se bem que levei muita chibatada até ele se fazer presente.

Leitor, essas considerações são melancólicas, o que está de acordo com meu caráter sentimental. Todavia, não é algo tão subjetivo assim. Realmente é uma pena quando sabemos que a cidade nem sempre foi assim, até porque nem sempre pessoas tão desavergonhadas tiveram a audácia de se candidatar a governador, muito menos ganhar. Coisas desse tipo aconteciam uma vez ou outra ao longo da história e só em momentos calamitosos. Hoje é lei. Sugiro ao leitor amigo a leitura d’A Rebelião das massas, do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, para que entenda melhor o que quero dizer.

Sei que estarei incorrendo num adágio batidíssimo, mas a verdade me obriga a dizer que antes houve tempos melhores. É por esta razão que te peço paciência, caro leitor, para que leia comigo um texto de Gustavo Corção chamado Rio Antigo. Vejamos o que ele diz:

Correndo os olhos pelo Rio Antigo, de Charles J. Dunlop, primeiro distraidamente, depois com atenção e a saudade despertadas, vi na fotografia de Augusto Malta, Marques Ferrez, George Leuzinger, E. A. Mortimer, e outros, sem sombra de dúvida, com a firme convicção de que não estava sendo vítima de uma injustiça ditada pelas lembranças pessoais e pela nostalgia de minha própria vida passada, vi que o Rio daquele tempo, do princípio do século e mesmo dos gloriosos tempos de Pereira Passos, era mais belo, mais limpo, mais claro, mais amável, mais espaçoso, mais luminoso do que este Rio de hoje, que cresceu errado, que andou pelos bordéis da péssima arquitetura e das administrações públicas ainda mais prostituídas. Bom, bom Rio de antigamente! Não consigo separar bem a saudade da apreciação puramente objetiva, mas torno a dizer que tenho a certeza – uma certeza difícil de provar – de não ser injusto nas apresentações que faço do crescimento torto desta infeliz cidade. Não me prendo também ao pitoresco, ao aspecto puramente silvestre e rústico. Justamente, de todo o agradável livro de Charles J. Dunlop, os capítulos e as fotografias que mais forte impressão me causaram são aquelas que se referem ao primeiro passo do progresso, às obras do engenheiro Francisco Pereira Passos, que prometia uma cidade maravilhosa, infelizmente abortada mais tarde pelos seus continuadores.

Desde o capítulo intitulado Primeiras Aplicações Industriais da Luz Elétrica, surge a figura extraordinária do homem de governo que os cariocas de hoje ignoram. O redator do referido capítulo menciona o fato de ter sido a antiga estrada de ferro Dom Pedro II, no ano de 1879, na gestão do engenheiro Francisco Pereira Passos, o primeiro estabelecimento do Brasil que teve iluminação elétrica. A inauguração do novo sistema ocorreu às oito e meia da noite do dia 21 de fevereiro, com a augusta presença de SS. MM. Imperiais, do presidente do conselho, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu; ministro do Império, Carlos Leôncio de Carvalho, e demais personalidades de destaque. Eis como o Sr. Dunlop narra a cerimônia no seu momento máximo: “Da sala das máquinas, o imperador e sua comitiva dirigiram-se para o saguão. Nesse instante, apagaram-se os bicos de gás. Súbito acenderam os globos opalinos, e uma luz brilhante iluminou o saguão, o vestíbulo e a plataforma dos passageiros. Eram, ao todo, 6 lâmpadas de arco Jablochkov (do engenheiro russo Paul Jablochkov, que morreu na miséria em 1894), sendo 4 na plataforma, 1 no vestíbulo e 1 no saguão. O resultado deve ter sido excelente, pois a “Gazeta de notícias”, do dia seguinte, informou que a luz dava uma claridade que se podia comparar à luz da lua cheia, numa noite perfeitamente limpa de nuvens.”

No capítulo intitulado Campo de São Cristóvão, estamos em 1906, vinte e sete anos mais tarde. O engenheiro Pereira Passos é agora o prefeito da cidade. Diz lá o narrador daquele melhoramento municipal: “Um dia o prefeito Pereira Passos lembrou-se de embelezá-lo (o Campo de São Cristóvão que era um lugar mau freqüentado e sujo), e ordenou fosse levada a efeito a idéia. Iniciados os trabalhos, em poucos dias estavam podadas as árvores, desentulhado o lixo, cortado o capim e revolvida a terra. Surgiu depois o primeiro canteiro, e, a seguir, dezenas deles, simetricamente plantados. Apareceram, após, as alamedas e os belos repuxos, e começaram a florescer as roseiras e muitas outras plantas. Já era outro o aspecto do Campo de São Cristóvão. Afinal, no domingo, dia 11 de novembro de 1906, foi ele oficialmente inaugurado...”.

Admira, leitor amigo, a genial singeleza deste último período e sobretudo saboreia o discreto, decente, o civilizado advérbio dos bons tempos do engenheiro Francisco Pereira Passos: “Afinal... foi inaugurado...”. Primeiro a limpeza, o revolver da terra, o corte do capim. Depois a vez das rosas abrirem suas pétalas não oficiais, e muitas outras plantas. “Afinal...” Bons, excelentes tempos! A fotografia mostra o coreto em que os personagens importantes compareceram, de cartola, no dia solene da inauguração: lá está a figura do Presidente da República, Rodrigues Alves, que vem a ser tio-avô do governador Carvalho Pinto de São Paulo; e lá está ao lado do pequenino Presidente a figura majestosa do prefeito Pereira Passos. Eis como está narrada a cerimônia: “Aí, o prefeito fez a entrega do Campo, radicalmente transformado, ao povo de São Cristóvão. Estava, incontestavelmente, um primor. Ressoaram palmas e todos ergueram vivas aos Drs. Rodrigues Alves e Pereira Passos. Seguiu-se um lauto almoço em que tomou parte o Presidente etc. etc. Foi esplêndido o ‘menu’ servido, tendo o Comendador Gomes Carneiro, durante o ágape, recitado poesias de sua lavra. Ao champagne foram erguidos diversos brindes. O de honra foi levantado ao povo de São Cristóvão. A fotografia mostra...”.

A fotografia mostra, além dos personagens oficiais e do coreto, uma coisa fina que estava no ar do Campo de São Cristóvão como poderia estar na Place de l’Etoile. A direção em que estava perdido o olhar do prefeito Pereira Passos era uma outra, que evidentemente não foi seguida pelos que trouxeram o colesterol da cafajestagem para as artérias desta pobre República. A fotografia mostra aquilo que era claro, que era limpo, que era belo no Rio de Janeiro do meu tempo de criança. E note bem o leitor que esse tempo de infância a que me refiro foi também uma época de grande pobreza para a nossa família. Mas a casa em que morávamos pobres, e que certamente já foi destruída neste afã de erguer jazigos perpétuos de vinte andares, era feita de tábuas vindas do golfo do Báltico, telhas vindas da França, pedras de Portugal, ferragens da Inglaterra. Expliquem-me isto os economistas, sobretudo aqueles que se apregoam a necessidade de ter tudo nacional, como se o Brasil fosse um planeta perdido na escuridão do espaço. Expliquem-me como se fazia para ser pobre e feliz em casas tão pouco nacionalizadas. E expliquem-me outros doutores a misteriosa razão que leva não sei que Gênio mau a esconder dos cariocas de hoje a lembrança do prefeito Pereira Passos. Quando mudaram o nome da Avenida Central para Rio Branco, seria mais razoável, sem nenhum desapreço ao diplomata, lembrar o nome do Prefeito. Mais tarde, quando parecia que a oposição ia derrubar de vez o mito Vargas, foi procurado um nome para a Avenida que até hoje ficou sendo Presidente Vargas, graças ao suicídio do dito Presidente. Lembraram diversos nomes. Creio que se não fosse o suicídio mudariam para Castro Alves. Ninguém, que me conste, lembrou o nome do engenheiro Pereira Passos.

Lembro-me agora das ressonâncias que tinha em nós, em casa, o nome do grande engenheiro. Foi talvez ele que me plantou na alma o gosto da profissão, de tanto ouvir falar em torno, com respeito e até veneração. Lembro-me de minha mãe, num dia muito claro e muito antigo, a me explicar a obra daquele grande homem que n’’O Malho’ eu via caricaturado ou fotografado ao lado do presidente da República, que eu aprendi a desenhar assim: um círculo, dois círculos menores no lugar dos óculos, e cinco fios de barbante paralelos.

Naquela fotografia do Campo de São Cristóvão, e em outras, vê-se também que as cartolas da época não ofendiam os brios de ninguém. O povo era mais bem vestido, e sobretudo a tenue, a posição do corpo era mais ereta, mais briosa, mais desempenhada que a de hoje. Corra você mesmo, leitor, seu álbum de avós e repare como eles eram mais altivos e verticais. E então? O que foi que houve, com os homens, com as cidades? O que foi que aconteceu?

O que me parece certo, para a cidade, se não para os homens, é que não seguimos hoje a linha de crescimento que estava esboçada naquele coreto em que compareceram Rodrigues Alves e Francisco Pereira Passos. Houve um desvio, uma deflexão, uma inclinação, uma curvatura, uma deformação, e em certo ponto começa uma outra história em que predomina a coisa espessa e feia chamada cafajestagem, e em que inaugura-se um jardim antes de nascerem as rosas...

Sim, paciente leitor, a belle époque já esteve aqui, e os políticos recitavam poesias de sua própria lavra, o povo andava com garbo e sobriedade, havia cartolas para serem tiradas durante um verdadeiramente cortês “bom dia!”, e toda mulher era senhora ou senhorita, enquanto os homens eram, necessariamente, senhores. Aliás, confesso novamente que sinto uma certa melancolia ao dizer essas coisas, mas que agora tem a companhia de uma estranha sensação de nostalgia por um tempo que nunca vivi. Ah, como falta uma palavra para designar tal sensação!

Usando um jargão platônico, todos nós participamos da boa e bela educação. Nós, seja qual época for, participamos da cidade celeste. E há épocas em que a boa e bela educação é praticada mais forte e naturalmente, de tal modo que transborda até em nossos atos mais simples e irrelevantes. É um estado natural de fleuma, por assim dizer. Abundam homens de notável caráter, só diferindo-se entre si pela grandeza demonstrada. Já constatava Hume, um fleumático, que Buffon, que era outro, tinha um ar de Marechal da França. A esse propósto, o caráter de Buffon, segundo Le Senne, poderia ser de um tipo da família do “fleumático majestoso”, cuja dignidade se faz patente “pela nobreza dos modos e do linguajar” (Le Senne, Traité de Caractérologie, 3a. ed, P.U.F., p. 522). Realmente os homens se comportavam como cavalheiros, até porque as mulheres eram, por assim dizer, mais exigentes (tema este que merece uma atenção especial, conforme o próprio Ortega y Gasset já chamou a atenção em seu livro Sobre el amor; ataquemos melhor esse assunto em outra ocasião). Sendo todas as mulheres como um ideal encarnado, todas pareciam princesas, e os homens necessariamente marechais da França ou algo em vias disso. (Daí vem a especial graça de toda uma série de personagens de Machado de Assis. Eles parecem especialmente cômicos quando comparados ao fundo em que se moviam. Só no séc. XIX que poderia surgir um Simão Bacamarte.) E mesmo o mais nervoso dos homens daquelas épocas gloriosas mais parece um fleumático crasso, um apático, perante os nossos irrequietos olhos modernos. Mesmo a poesia de um Villon, surgida numa época tão problemática quanto aquele fim de Idade Média, parece algo infinitamente aristocrático se comparada a muita coisa escrita hoje em dia. Nada mais natural, portanto, que, numa época em que vivemos curvados sob o peso de uma não sei qual angústia e não sei qual tristeza, nada mais natural que a política esteja tão infestada dessa coisa espessa e feia chamada “cafajestagem”.

Tenho algo em comum com aquele notório bigodudo alemão. Eu e ele temos um pé num tempo diferente do vivido. A diferença é que Nietzsche tinha uma mente póstuma. Eu nasci pretérito mas com o outro pé atoladíssimo no presente. É uma melancolia danada...

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