Saturday, October 23, 2004

Ditadura e divórcio

Admiro-me que não tenham feito ainda, que eu saiba, a aproximação entre dois fenômenos evidentemente semelhantes: a ditadura e o divórcio. Em ambos existe o mesmo oportunismo que pretende dar golpes na vida, e a mesma recusa de pacto ou juramento. Em ambos, a mesma miopia de memória; a mesma miragem do sucesso imediato.

O divórcio é o maquiavelismo a domicílio. A ditadura é o divórcio em política. Corre nos dois fenômenos, como idêntica seiva, a coleante traição diante dos obstáculos, isto é, a esperteza. Em política, está maduro (ou podre) para a ditadura o povo convencido de que um tratado ou uma constituição são meros farrapos de papel, sendo admissível somente a conveniência ou a etapa. Na vida familiar, a esperteza, que pretende se ajustar aos minutos que passam, conduz à falência do matrimônio. É dura a vida civil, com suas leis, seus úteis embaraços, e seus inevitáveis sacrifícios; mas muito mais dura é a vida conjugal. O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os vermes da astúcia que pedem alimento de meia em meia hora. É uma vida de longo alcance, de incalculável alcance. Uma artilharia pesada que precisa da instalação muito firme para atirar obuzes por cima dos séculos.


Admiro-me pois que essa aproximação, tão clara a meu ver, não tenha sido tentada. Mas, como já tenho visto muita contradição neste vale de lágrimas, não me espanta em demasia que muitos ardorosos democratas, que fulminam o maquiavismo político em alto jornalismo, defendam ao mesmo tempo o maquiavelismo caseiro. Não me espanto porque, antes disso, eu vi os ardorosos defensores do casamento sacramental e dos costumes, os pilares da Igreja, defenderem a ditadura, e respirarem, como um ar de delícias, a atmosfera dos decretos-leis.

(Trecho de Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção, de 1946, ed. Agir, p.173-4. Este livro é uma espécie de introdução ao G.K. Chesterton. Foi através dele que tomei conhecimento de um livro muito interessante de Chesterton, Barbarism of Berlin. Basicamente, ele diz o que eu escrevi em parte no texto anterior: que a palavra é o fundamento da civilização. O livro foi publicado, se não me engano, em 1915, durante a Grande Guerra. Ora, Berlim era composta por barbáros justamente pelo fato de quebrar juramentos solenes. Eles eram o que Chesterton chamava de "barbarismo negativo", que era o impulso de destruição dos pilares da civilização por bárbaros. Era o Huno, que se comprazia em devastar Roma. Este era o Alemão, e não sei se fará sentido a comparação, mas o próprio Nietszche, muitos anos antes, já dizia que a Alemanha era composta por bárbaros, mas no sentido de gente inculta. O "barbarismo positivo", pelo contrário, procura evoluir com a civilização. É como um godo que pretende trabalhar junto a Roma em prol de ambos. O Russo entraria neste caso, pois procuraria se integrar à Europa.)

2 comments:

Anonymous said...

oi cass,
gostei do texto, agora se vc me permite usarei ele por alguns instantes, a fim de que ( isso é separado, junto...ô santa ignorância)algum ser possa lê-lo
"O casamento é uma empresa temerosa que só pode ser levada a cabo quando queimarmos em nossos corações todos os vermes da ASTÚCIA que pedem alimento de meia em meia hora."
Ouviu Kramer? Que tal parar de catar as minhas fotos, hein??
beijo cass e valeu pelo espaço! he! He!
e pelo texto de inspiração tb!
selline :)

Cassiano Farias said...

Quando quiser xingar alguém, entra aqui e desconta a raiva. Mas escreva o nome do sujeito para a gente saber quem é. :)