Antigamente, e devo alertar que por esse advérbio entendo um passado de seis anos, eu era de certa forma influenciado pelas opiniões dos assim chamados "tradicionalistas", cujo mote é que houve na década de 60, devido a um concílio infeliz, a criação de uma igreja diferente da Igreja: seria a "Outra", nas palavras de Gustavo Corção. A "Outra" seria uma espécie de anti-Igreja e até mesmo parasita: dentro da própria Igreja ela lhe consumiria. Vem disso a célebre expressão "auto-destruição da Igreja." Dadas as dificuldades que atualmente cercam a Igreja, o poder de atração dessa idéia é hipnotizador, pois parece explicar de modo mais ou menos simples praticamente tudo. Todavia, nada como um ano após outro. Atualmente, acho que me livrei em boa parte dessa explicação, pois ela me parece não só desprovida de sentido mas também maléfica. Meus motivos não são difíceis de entender, embora sejam, talvez, difíceis de vivenciar. Tentarei, pois, explicar esse meu aparente enigma.
Não tocarei em questões teológicas nem filósoficas, pois não quero me enrolar ridiculamente. Ademais, a prudência exige que não nos atiremos de cabeça em águas que não conhecemos a profundidade. Portanto peço ao leitor católico que aceite tão-somente algumas idéias bem simples. Com efeito, sabemos por exemplo que a Igreja foi fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que "sobre ela as portas do inferno jamais prevalecerão". Precisamos então confiar na Igreja assim como confiamos em Jesus Cristo: é absolutamente impossível separar um do outro. Sabemos também que o Espírito Santo sempre estará ao lado da Igreja, afinal "o Senhor é meu pastor e nada me faltará". Certa vez Bento XVI, na época cardeal, disse que a Igreja é um barco antigo mas seguro e bem provado. Ele tinha razão, porque se ainda que estivermos no vale da morte o Senhor estará conosco, também Ele estará com a comunidade de fiéis em meio às tribulações que ela vier a atravessar ao longo dos séculos. Jesus Cristo, conforme as Santas Escrituras, diante do temor dos Seus ministros quando da tempestade no mar, acalmou-a, e todos seguiram boa viagem. Do mesmo modo, sendo a Igreja um barco e o mundo águas revoltas, o Espírito Santo estará sempre presente a fim de que tudo concorra bem. Nossas preocupações são decorrentes da nossa pouca fé: acaso não disse o Senhor que "não vos preocupeis com o dia de amanhã"? A Igreja também é nossa "mãe e mestra", "mater et magistra". À certeza inabalável de suas decisões como mestra, junta-se a doçura da mãe que cuida de seus pequeninos. Ora, quando alunos acatamos aquilo que o mestre nos ensina, e como filhos confiamos em nossas mães sem temor algum. A Igreja não ensina novidades, mas guarda e atualiza todo o patrimônio sagrado. Doutra maneira, ela nos ampara em todas as nossas necessidades, pois é a Esposa de Cristo e nós os Seus filhos. Daí que devemos acatá-la como mãe e como guardiã do que há de mais precioso, que é a tradição sagrada.
Se o leitor é católico, tais pontos, simples, são indisputáveis. Nessas questões de princípio ninguém deve tocar. Porém sabemos como a nossa fé caminha aos solavancos, principalmente nas adversidades. Quantos podem resistir aos assaltos daqueles que, vendo-nos em circunstâncias miseráveis, caçoam e dizem: "Esperou no Senhor, livre-o; salve-o, se é que o ama"? Eu próprio tenho dificuldade de entender muitíssimas coisas. Contudo, aqueles pontos simples precisam ser a minha rota de fuga. Se dissermos todos os dias "creio", e se pedirmos a Deus força para crermos n'Ele e na Santa Igreja, enfim, se aceitarmos a graça de Deus, ela será derramada em nós e nos fortificará. Nossas dúvidas serão aos poucos saciadas, pois Jesus Cristo já dissera: "Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei e abrir-se-vos-á, porque todo o que busca, recebe: e o que busca, acha: e a quem bate, abrir-se-á". É preciso, portanto, ter confiança, pois se nossas dúvidas forem sinceras elas serão satisfeitas.
No entanto, preciso dizer ao leitor que tudo aquilo que for ocasião de perda deve ser dispensado. Compreendo perfeitamente o quão difícil é às vezes agir assim, porque há momentos em que uma renúncia parece uma afronta não só a nós mesmos como também aos outros. Darei como exemplo todas as discussões acerca da licitude do último concílio. Ora, as discussões a respeito moveram escândalo após escândalo. Isso é absolutamente inaceitável. Tal como a Reforma produziu um escândalo tão imenso que pôs as almas de todos os fiéis em perigo, as discussões acerca da validade do último concílio também têm sido ocasião de muitas perdas: o que mais tem havido são insubmissões, mentiras e calúnias. Numa palavra, tem havido ataques constantes à caridade. Note o leitor que nem entro na questão de nossa irrelevância diante desses problemas. Realmente, por uma questão de humildade, seria ridículo nos revolvermos demais a esse respeito. Todavia, estou atacando o problema de um modo que vai mais além. Considero extremamente maléfico se envolver demais nessas discussões, porque são de fato motivo de perda. Já dissera Nosso Senhor: "Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o, e lança-o fora de ti: porque melhor te é que se perca um de teus membros, do que todo o teu corpo seja lançado no inferno." Que palavras formidáveis e aterrorizantes! Assim, em termos práticos, eu tento evitar, na medida do possível, entrar em discussões acerca do concílio, a não ser para lembrar que a Igreja é fiel a Deus e que o concílio, sendo da Igreja, é também fiel a Deus. Por outro lado, já que o próprio Jesus Cristo dissera que é necessário tirar antes a trave de nosso próprio olho antes de falar do cisco no olho de outrem, tento evitar, na medida do possível, falar ou pensar mal de alguém, a não ser de brincadeira. Claro que freqüentemente me pego nessas faltas, mas se eu próprio não consigo me submeter à Igreja como é preciso, até que ponto é justo eu reclamar de um padre ou leigo insubmissos? Finalmente, se porventura eu observar que a pessoa, mau grado ter opiniões estranhas (uso "mau grado" porque não compreendo a forma "malgrado"), está sinceramente em busca de uma resposta pessoal, serei o último a denigri-la: o problema não é a busca em si, mas o jeito como conduz suas buscas. Seria um problema de direção espiritual -- não que eu esteja me considerando um diretor espiritual, é óbvio.
Há muito a dizer ainda sobre o assunto, mas basta por enquanto.
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