Saturday, October 16, 2004

O Mistério do gatinho e do velho do espeto de pau

O gatinho perambulava como sempre pelas ruas. Achava muito chato andar um pouco para encontrar terra e por lá depositar seu cocozinho, mas era uma questão de etiqueta. O xixi, bem, o xixi ele fazia em qualquer cantinho. Quer dizer, não em qualquer lugar, só em certos cantinhos, de preferência desertos, pois se alguém chegasse perto ele travava. Se bem que uma única vez, ali na Rua Riachuelo, bem de noitinha, recebendo afagos de rapaz carinhoso, ali mesmo ele não resistiu e fez xixi, para comoção do rapaz carinhoso. Se pudesse, o gatinho riria, mas apenas soltou um miau.

Era bonzinho. Todos simpatizavam com ele. Menos o velho sujo do espeto de pau. Este cidadão, se é que poderíamos chamar assim um sujeito de tão má catadura e de hábitos tão peçonhentos, era um flagelo. Não apenas para o gatinho, é importante dizer. Qualquer criatura viva que cruzasse seu caminho teria sérias chances de virar um cozido, exceto os homens, menos por pudores morais que pela dificuldade de prender alguém para comê-lo. Mas nosso bichano era experto, malgrado sua pequena idade e aparência frágil, nas artes da sobrevivência das ruas. Pois, e aqui cabe uma digressão, homens e bichos já nascem sabendo o mínimo para sobreviver, sendo esta sabedoria apenas aprimorada com a prática ou soterrada pelo descaso.

O homem terrível do espeto de pau procurava de todas as maneiras alcançar seu objetivo, que nada mais era que absorver a vida. E caçava, caçava com prazer. Só nosso bichano escapava de seu ódio.

Este estranho espetáculo se repetia como um rondó. Um obsevador atento, entretanto, perceberia que, de um modo um tanto imperceptível, o gatinho mais e mais se aprimorava em sua elegância, maior valor dava em fazer seu cocozinho na terra e seu xixi no cantinho deserto, enquanto o homem do espeto de pau mais obcecado ficava com a idéia de sugar a vida de todas as criaturas que cruzassem seu caminho.

E então, num acontecimento testemunhado por aquele moço carinhoso que provocou o xixi involuntário do gatinho, chegou-se ao clímax daquela tendência que apenas um observador atento saberia explicar. Foi numa noite de domingo, muito parecida com aquela outra de tempos passados, e também na Riachuelo. O moço carinhoso reconhecera o gatinho, já mais crescidinho, deitado, observando os carros. E já se aproximava dele quando apareceu, do nada, aquele homem malvado com seu espeto de pau. Este sujeito vinha literalmente rosnando e babando, de olhos arregalados, como um louco furioso. O moço se assustou – a rua estava deserta, não havia ninguém que pudesse lhe socorrer. E já se preparava para correr quando o gatinho se ergueu e, fitando aquele maldito ser, surpreendentemente exclamou:

– Claudite jam rivos, pueri; sat prata biberunt; corruptio optima pessima – disse, com voz de barítono.

E ribombou um trovão, sendo que o céu não parecia mal-humorado. O moço ficou petrificado. A criatura vil começou a tremer, literalmente soltou um uivo, babou mais um pouco e desatou a fugir, desesperado, para nunca mais voltar.

Nosso amigo carinhoso não compreendia nada daquilo. Não sabia se era mais difícil aceitar um gato falando latim com voz de barítono ou uma pessoa de tão maligno feitio ser tão fragorosamente derrotada. Aquilo era demais para ele. Foi aí que o gato novamente falou, e de novo com voz de barítono:

-- A vaincre sans péril, on triomphe sans glorie.

Tal coisa não era possível. O moço não aguentou e desmaiou, não sem antes ver o gatinho fazendo algum tipo de saudação com a patinha e indo embora. Só acordou quando sentiu as singelas gotículas de chuva que lavavam seu corpo e a Rua Riachuelo naquele instante. Foi para casa meditar sobre o assunto, porém não encontrou resposta alguma. Passou o resto de sua caridosa existência a procurar o gatinho ou o homem do espeto de pau, mas jamais os encontrou. Só quando mais velho, bem mais velho, suspeitou encontrar a chave para tão estranho enigma. Mas nunca teve certeza da resposta. Teve o pejo de manter a história apenas para seus botões.

3 comments:

Anonymous said...

Traduzindo:

1) tirando o "corruptio optima pessima" ("a pior corrupção é a dos melhores"), que é um provérbio, o restante é do Virgílio, último verso de sua terceira écloga: "fechai os regatos, rapazes: os prados já beberam bastante";

2) verso de Corneille, em "O Cid": "quando se vence sem perigo, triunfa-se sem glória.

Logo:

O gatinho conhecia Virgílio e Corneille de algum modo. :)

Cassiano

Carlos Kramer said...

Mas que gatinho dos diabos! Ou seria dos céus? O certo é que ele conhece mais literatura do que eu. Quase morri de rir com essa história. Fiquei imaginando a cara do gatinho enquanto falava com voz zde barítono. Mas o corioso mesmo é que, esta semana, nós dois publicamos textos sobre bichos que, para o leitor, perigam não fazer muito sentido. O sentido do meu eu te explico depois, pessoalmente. Parabéns pelo ótimo texto.
Carlos.

Anonymous said...

oi cass!
Estou me sentindo um farrapo humano...Um gato que fala?
Que fala LATIM?? Bem , eu ia fazer agora um comentário bem estúpido, daqueles tipo assim: Latim? Nao teria sido uma lingua mais apropriada para um cachorro? L-A-T-I-M !!! he,he! pois é, eu fiz!!
e por falar em cachorro, dá uma olhada lá no meu fotolog!! Quem sabe vc não tira um conto da minha foto?!
Beijo grande
Selline
:p