Provavelmente o leitor acharia muito estranho se um filho fosse ao cartório para anular sua união com os pais ou vice-versa. Isso não seria menos esquisito se ocorresse com nossos irmãos, tios, primos, avós, etc. Mas é bem possível que o leitor não estranhe tanto se um marido insatisfeito fosse ao mesmo cartório para anular suas ligações com a esposa. Estamos tão habituados com a idéia de divórcio que ela se tornou algo tão natural quanto o Corcovado.
O que é o casamento? É a união indissolúvel entre marido e mulher, visando constituição de família. Atentemos para a palavra “indissolúvel”: se é assim, então onde fica o divórcio? Não fica; aliás pode até ficar no caso do casamento civil. Pois o Estado até matrimônios gere, como se não bastasse sugar nossos míseros centavos a cada mês com dezenas de impostos, obrigatoriedade do voto, do serviço militar... Até violar seus cidadãos quando mortos, sob o pomposo nome de “autopsia”, ele quer. Só que, em se tratando de casamento, o Estado não supre uma peculiaridade desta união. É que a Igreja une sob os auspícios de um dom sobrenatural, criando no instante dos votos um parentesco que não foi o de nascimento. Assim, por causa desse dom, os nubentes vêem suas famílias crescer: surge uma segunda mãe, um segundo pai, um segundo primo, um segundo avô etc. etc. Quando um casal se une desse modo, pode-se dizer que cada um se casa com a família do outro. E o resultado dessa união, realmente espantosa, é a junção de várias pessoas em uma só: de um pouco de sangue de cada família surge uma nova criaturazinha, que é conclusão concreta (melhor: carnal) dessa união. Eis que a ligação de sangue sobrenatural se desdobrou e criou uma ligação carnal em forma de pessoa. A palavra empenhada ao pé do altar se fez carne: é o nascimento da criança.
Se pai e mãe são tão parentes quanto primo e tia, como é possível haver o divórcio? Só pode ficar no casamento civil, que une sem unir. Não quero dizer com isso que os anjos não desceram dos céus e transformaram a união de duas pessoas no cartório no principal acontecimento do universo naquele exato instante. E se várias pessoas se casam ao mesmo tempo, então por um mistério também cada uma será o centro do universo. Porém o que eu quero dizer é que o Estado não tem o poder sobrenatural para sacralizar esta união. Tenho um certo receio de usar a palavra “conveniência” para explicar isso, pois dá margem a equívocos. Se o leitor tiver boa vontade, entenderá que com isso digo que o casamento em cartório acaba se baseando em formalidade jurídica, um assinar de papéis, embora um assinar de papéis todo especial. Mas é apenas ali no papel que está a salvaguarda do casamento. E sabemos como papéis são frágeis.
Há um agravante nesta já insólita situação, que não sei dizer se filosoficamente é causa do movimento ou final disso tudo. É o problema da palavra empenhada. Antigamente, quando quase ninguém sabia escrever, só alguém muito original consideraria indispensável um contrato por escrito e assinado para empenhar um juramento. Em épocas muito remotas, as pessoas juravam nas e pelas coisas mais insólitas: água, vinho, fogo... Até os coitados dos santos eram empenhados, ou as mães. Coitados de ambos! Esses hábitos até hoje podem ser vistos na nossa própria sociedade, ainda que tenham perdido a freqüência e importância original. Em pleno século XX, meu avô, segundo lendas, quando empenhava a palavra, dizia também que jurava pelo seu bigode, pois aquilo era a prova de ele ser um homem, e homens não quebram a palavra. Bigode! Não sei dizer se ele se viu muitas vezes com o bigode aparado; em todo caso, é um exemplo engraçado de como essas coisas permaneceram até os dias de hoje.
Devemos acrescentar na nossa breve história dos juramentos que eles sempre tinham um caráter sagrado. Ninguém escolhia a água por ela ser uma substância intrigante ou o vinho porque o juramento era coisa de gente bêbada. Jurava-se sob a água porque muitos acreditavam que no princípio tudo era água, sendo as coisas agora compostas substancialmente por ela – era a substância mais importante que existia. Ou o fogo, segundo outros. Quanto ao vinho, não sei dizer o motivo, mas imagino que tenha alguma relação com Baco ou outro deus. Além disso, não podemos esquecer que a palavra, por si só, é um atributo que os deuses gentilmente nos emprestaram. Se atentássemos para a sua importância, pensaríamos cinco, dez vezes antes de usá-la. Então o juramento é (ou era, se formos muito pessimistas) algo muito especial e até misterioso, sagrado quanto à sua natureza. Quebrar uma promessa, um pacto, só gente impiedosa, só gente completamente afastada da civilização, só teria coragem um bárbaro.
E o que seria o divórcio senão uma quebra de um juramento? Para piorar a situação, um dos mais importantes juramentos que duas pessoas podem fazer? Não é verdade que apenas os bárbaros não empenham seriamente a palavra? Pois aí está, leitor: nós somos incivilizados, impiedosos, pois em uma quantidade absurda de casos, além de não pensarmos no absurdo que é o desligamento de um laço de parentesco, não levamos a sério nossos próprios votos. Não medimos as conseqüências da nossa própria palavra empenhada e não hesitamos em quebrá-la quando melhor nos convém. Elegemos a eficiência como o mais soberbo princípio e, a partir daí, vivemos na mais medíocre prática de conveniências, de egoísmos e do amor-próprio. Esse problema é tão grave que chega a ameaçar uma sociedade. Se do ponto de vista individual cria inimizades, de um ponto de vista mais geral o juramento se torna uma prática vazia. A sociedade acaba aceitando o império universal da desconfiança. Por que não poderia alguém se “divorciar” da sociedade e, por razões de conveniência, realizar um golpe de Estado e rasgar a Constituição? E o que impediria, em um mundo assim, de um país quebrar tratados cuja tinta que serviu para sua assinatura mal secara? É o mundo das traições, das apunhaladas, dos advogados e promotores em número absurdo, do medo, da desconfiança e do descrédito. É a volta a quatro patas a um estado primitivo, onde tudo parece conspirar contra nós.
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8 comments:
Caro Cassiano, fantástico seu texto! Acredito que a palavra de um homem deve ser um dos bens mais sagrados que ele pode ter.
Cassiano,
Seu texto só tem um problema: não deixa margem para comentários. Mas mesmo assim, vou me esforçar.
Sempre digo, com relação à educação, que 90% das pessoas só usa o domínio da língua escrita para assinar contratos e pegar ônibus. Quando me lembram que os papéis não valem realmente nada e que o valor das nossas palavras anda cada vez mais reduzido, me vejo obrigado a concluir que vivemos numa sociedade falida, sem palavra e com escrita vazia. Teoricamente, o que está escrito deveria perdurar até mais tempo do que o que foi dito, visto ser a palavra escrita uma sacramentação, para a posteridade, do que se quer dizer. Na prática, nem uma coisa nem outra valem mais nada e, como você expos magistralmente, o casamento é o maior e mais cruel exemplo dessa falta de caráter endêmica.
O texto está ótimo. Não se incomode se, em alguns dias, eu acabar escrevendo sobre o mesmo assunto no meu blog. É que agora não vou mais conseguir parar de pensar no problema que você levantou.
Abraços,
Carlos.
Olá cass,
Seu texto é um MÁXIMO, muito bom mesmo!
Nao consigo tirar nem muito menos pôr; tenho que admitir com o Carlos: Ele não dá nem marge para coméntários; não precisa.
A agua sempre foi um elemento muito ligado a pureza ( a purificação), acredito que ela possa ser nesse contexto relacionada com a intenção de que os nossos votos sejam vistos como algo transparente, sem manchas, da sinceridade das nossas palavras.Além disso ela também é identificada com a questão de "um novo nascer", quer dizer, ela pode ser identificada com a questão do renascimento, que particularmente acho que tem muito haver com o que você disse a respeito da junção de duas famílias distintas. Não sei se eu "viajei na maionese", mas oseu texto acabou me fazendo pensar nessas duas coisas.
Desculpa se o texto não está escrito muito bem, é que eu tô com pressa... tô no horário caro da net! he! he!
Gostei muito do seu texto, parabéns e um grande beijo
Selline
Renascer? Então está aí mais uma boa explicação para uso da água no batismo: nascimento do novo homem.
Olha, essa tua explicação sobre a água é bem mais clara do que a que eu dei. Quase eu a roubei para enfiar no meio do texto ;)
E o Carlos tocou em um ponto interessante. Encarar a palavra escrita como uma espécie de sacramentação é, em outras palavras, encará-la como a "consumação" de algo nobre. Sendo assim, só gente realmente preparada, iniciada mesmo, seria apta para mantê-las. Daí que tão poucos soubessem ler e escrever antigamente, pois o acesso ao conhecimento e seu domínio é um luxo reservado naturalmente para poucos. Nada anormal, então, termos uma imensa maioria de analfabetos junto a uma minúscula elite letrada - mas que elite! E outra coisa que dá para deduzir do que o Carlos disse: que não é à toa que religiões do nível do Cristianismo, Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo sempre tiveram seus livros sagrados. Pois o livro é "consumação" de algo nobre, e nada mais elevado que a Revelação. E todos os livros são (ou deveriam ser) pequenas revelações. Sendo assim, o livro é dos mais caros bens que existem, e é uma pena que nesse boom de publicações acabemos por perder a noção de sua importância. Acho que teríamos um pudor enorme em escrever qualquer coisa. ;)
Renascer? Então está aí mais uma boa explicação para uso da água no batismo: nascimento do novo homem.
Olha, essa tua explicação sobre a água é bem mais clara do que a que eu dei. Quase eu a roubei para enfiar no meio do texto ;)
E o Carlos tocou em um ponto interessante. Encarar a palavra escrita como uma espécie de sacramentação é, em outras palavras, encará-la como a "consumação" de algo nobre. Sendo assim, só gente realmente preparada, iniciada mesmo, seria apta para mantê-las. Daí que tão poucos soubessem ler e escrever antigamente, pois o acesso ao conhecimento e seu domínio é um luxo reservado naturalmente para poucos. Nada anormal, então, termos uma imensa maioria de analfabetos junto a uma minúscula elite letrada - mas que elite! E outra coisa que dá para deduzir do que o Carlos disse: que não é à toa que religiões do nível do Cristianismo, Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo sempre tiveram seus livros sagrados. Pois o livro é "consumação" de algo nobre, e nada mais elevado que a Revelação. E todos os livros são (ou deveriam ser) pequenas revelações. Sendo assim, o livro é dos mais caros bens que existem, e é uma pena que nesse boom de publicações acabemos por perder a noção de sua importância. Acho que teríamos um pudor enorme em escrever qualquer coisa. ;)
Como saiu esse repeteco?
oi cass,
você acertou em cheio. Nao só no Batismo, mas no Matrimonio as alianças também são purificadas com água!
um grande beijo e novamente parabéns pelo texto.
Ps: vc chegou a ver meu cachorro chinês?
Agora o Carlos tá querendo fazer concorrência com o meu fotolog. Vê-se pode???
:) Selline
Cheguei não. Tirou foto? E não saba que o Carlos resolveu competir contigo... Juntem os dois em um truste e peguem todo o mercado ao invés de competirem...:)
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