Thursday, October 21, 2004

Divórcio e barbárie

Provavelmente o leitor acharia muito estranho se um filho fosse ao cartório para anular sua união com os pais ou vice-versa. Isso não seria menos esquisito se ocorresse com nossos irmãos, tios, primos, avós, etc. Mas é bem possível que o leitor não estranhe tanto se um marido insatisfeito fosse ao mesmo cartório para anular suas ligações com a esposa. Estamos tão habituados com a idéia de divórcio que ela se tornou algo tão natural quanto o Corcovado.

O que é o casamento? É a união indissolúvel entre marido e mulher, visando constituição de família. Atentemos para a palavra “indissolúvel”: se é assim, então onde fica o divórcio? Não fica; aliás pode até ficar no caso do casamento civil. Pois o Estado até matrimônios gere, como se não bastasse sugar nossos míseros centavos a cada mês com dezenas de impostos, obrigatoriedade do voto, do serviço militar... Até violar seus cidadãos quando mortos, sob o pomposo nome de “autopsia”, ele quer. Só que, em se tratando de casamento, o Estado não supre uma peculiaridade desta união. É que a Igreja une sob os auspícios de um dom sobrenatural, criando no instante dos votos um parentesco que não foi o de nascimento. Assim, por causa desse dom, os nubentes vêem suas famílias crescer: surge uma segunda mãe, um segundo pai, um segundo primo, um segundo avô etc. etc. Quando um casal se une desse modo, pode-se dizer que cada um se casa com a família do outro. E o resultado dessa união, realmente espantosa, é a junção de várias pessoas em uma só: de um pouco de sangue de cada família surge uma nova criaturazinha, que é conclusão concreta (melhor: carnal) dessa união. Eis que a ligação de sangue sobrenatural se desdobrou e criou uma ligação carnal em forma de pessoa. A palavra empenhada ao pé do altar se fez carne: é o nascimento da criança.

Se pai e mãe são tão parentes quanto primo e tia, como é possível haver o divórcio? Só pode ficar no casamento civil, que une sem unir. Não quero dizer com isso que os anjos não desceram dos céus e transformaram a união de duas pessoas no cartório no principal acontecimento do universo naquele exato instante. E se várias pessoas se casam ao mesmo tempo, então por um mistério também cada uma será o centro do universo. Porém o que eu quero dizer é que o Estado não tem o poder sobrenatural para sacralizar esta união. Tenho um certo receio de usar a palavra “conveniência” para explicar isso, pois dá margem a equívocos. Se o leitor tiver boa vontade, entenderá que com isso digo que o casamento em cartório acaba se baseando em formalidade jurídica, um assinar de papéis, embora um assinar de papéis todo especial. Mas é apenas ali no papel que está a salvaguarda do casamento. E sabemos como papéis são frágeis.

Há um agravante nesta já insólita situação, que não sei dizer se filosoficamente é causa do movimento ou final disso tudo. É o problema da palavra empenhada. Antigamente, quando quase ninguém sabia escrever, só alguém muito original consideraria indispensável um contrato por escrito e assinado para empenhar um juramento. Em épocas muito remotas, as pessoas juravam nas e pelas coisas mais insólitas: água, vinho, fogo... Até os coitados dos santos eram empenhados, ou as mães. Coitados de ambos! Esses hábitos até hoje podem ser vistos na nossa própria sociedade, ainda que tenham perdido a freqüência e importância original. Em pleno século XX, meu avô, segundo lendas, quando empenhava a palavra, dizia também que jurava pelo seu bigode, pois aquilo era a prova de ele ser um homem, e homens não quebram a palavra. Bigode! Não sei dizer se ele se viu muitas vezes com o bigode aparado; em todo caso, é um exemplo engraçado de como essas coisas permaneceram até os dias de hoje.

Devemos acrescentar na nossa breve história dos juramentos que eles sempre tinham um caráter sagrado. Ninguém escolhia a água por ela ser uma substância intrigante ou o vinho porque o juramento era coisa de gente bêbada. Jurava-se sob a água porque muitos acreditavam que no princípio tudo era água, sendo as coisas agora compostas substancialmente por ela – era a substância mais importante que existia. Ou o fogo, segundo outros. Quanto ao vinho, não sei dizer o motivo, mas imagino que tenha alguma relação com Baco ou outro deus. Além disso, não podemos esquecer que a palavra, por si só, é um atributo que os deuses gentilmente nos emprestaram. Se atentássemos para a sua importância, pensaríamos cinco, dez vezes antes de usá-la. Então o juramento é (ou era, se formos muito pessimistas) algo muito especial e até misterioso, sagrado quanto à sua natureza. Quebrar uma promessa, um pacto, só gente impiedosa, só gente completamente afastada da civilização, só teria coragem um bárbaro.

E o que seria o divórcio senão uma quebra de um juramento? Para piorar a situação, um dos mais importantes juramentos que duas pessoas podem fazer? Não é verdade que apenas os bárbaros não empenham seriamente a palavra? Pois aí está, leitor: nós somos incivilizados, impiedosos, pois em uma quantidade absurda de casos, além de não pensarmos no absurdo que é o desligamento de um laço de parentesco, não levamos a sério nossos próprios votos. Não medimos as conseqüências da nossa própria palavra empenhada e não hesitamos em quebrá-la quando melhor nos convém. Elegemos a eficiência como o mais soberbo princípio e, a partir daí, vivemos na mais medíocre prática de conveniências, de egoísmos e do amor-próprio. Esse problema é tão grave que chega a ameaçar uma sociedade. Se do ponto de vista individual cria inimizades, de um ponto de vista mais geral o juramento se torna uma prática vazia. A sociedade acaba aceitando o império universal da desconfiança. Por que não poderia alguém se “divorciar” da sociedade e, por razões de conveniência, realizar um golpe de Estado e rasgar a Constituição? E o que impediria, em um mundo assim, de um país quebrar tratados cuja tinta que serviu para sua assinatura mal secara? É o mundo das traições, das apunhaladas, dos advogados e promotores em número absurdo, do medo, da desconfiança e do descrédito. É a volta a quatro patas a um estado primitivo, onde tudo parece conspirar contra nós.

8 comments:

Rafael Bosisio said...

Caro Cassiano, fantástico seu texto! Acredito que a palavra de um homem deve ser um dos bens mais sagrados que ele pode ter.

Carlos Kramer said...

Cassiano,
Seu texto só tem um problema: não deixa margem para comentários. Mas mesmo assim, vou me esforçar.
Sempre digo, com relação à educação, que 90% das pessoas só usa o domínio da língua escrita para assinar contratos e pegar ônibus. Quando me lembram que os papéis não valem realmente nada e que o valor das nossas palavras anda cada vez mais reduzido, me vejo obrigado a concluir que vivemos numa sociedade falida, sem palavra e com escrita vazia. Teoricamente, o que está escrito deveria perdurar até mais tempo do que o que foi dito, visto ser a palavra escrita uma sacramentação, para a posteridade, do que se quer dizer. Na prática, nem uma coisa nem outra valem mais nada e, como você expos magistralmente, o casamento é o maior e mais cruel exemplo dessa falta de caráter endêmica.
O texto está ótimo. Não se incomode se, em alguns dias, eu acabar escrevendo sobre o mesmo assunto no meu blog. É que agora não vou mais conseguir parar de pensar no problema que você levantou.
Abraços,
Carlos.

Anonymous said...

Olá cass,
Seu texto é um MÁXIMO, muito bom mesmo!
Nao consigo tirar nem muito menos pôr; tenho que admitir com o Carlos: Ele não dá nem marge para coméntários; não precisa.
A agua sempre foi um elemento muito ligado a pureza ( a purificação), acredito que ela possa ser nesse contexto relacionada com a intenção de que os nossos votos sejam vistos como algo transparente, sem manchas, da sinceridade das nossas palavras.Além disso ela também é identificada com a questão de "um novo nascer", quer dizer, ela pode ser identificada com a questão do renascimento, que particularmente acho que tem muito haver com o que você disse a respeito da junção de duas famílias distintas. Não sei se eu "viajei na maionese", mas oseu texto acabou me fazendo pensar nessas duas coisas.
Desculpa se o texto não está escrito muito bem, é que eu tô com pressa... tô no horário caro da net! he! he!
Gostei muito do seu texto, parabéns e um grande beijo
Selline

Cassiano Farias said...

Renascer? Então está aí mais uma boa explicação para uso da água no batismo: nascimento do novo homem.

Olha, essa tua explicação sobre a água é bem mais clara do que a que eu dei. Quase eu a roubei para enfiar no meio do texto ;)

E o Carlos tocou em um ponto interessante. Encarar a palavra escrita como uma espécie de sacramentação é, em outras palavras, encará-la como a "consumação" de algo nobre. Sendo assim, só gente realmente preparada, iniciada mesmo, seria apta para mantê-las. Daí que tão poucos soubessem ler e escrever antigamente, pois o acesso ao conhecimento e seu domínio é um luxo reservado naturalmente para poucos. Nada anormal, então, termos uma imensa maioria de analfabetos junto a uma minúscula elite letrada - mas que elite! E outra coisa que dá para deduzir do que o Carlos disse: que não é à toa que religiões do nível do Cristianismo, Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo sempre tiveram seus livros sagrados. Pois o livro é "consumação" de algo nobre, e nada mais elevado que a Revelação. E todos os livros são (ou deveriam ser) pequenas revelações. Sendo assim, o livro é dos mais caros bens que existem, e é uma pena que nesse boom de publicações acabemos por perder a noção de sua importância. Acho que teríamos um pudor enorme em escrever qualquer coisa. ;)

Cassiano Farias said...

Renascer? Então está aí mais uma boa explicação para uso da água no batismo: nascimento do novo homem.

Olha, essa tua explicação sobre a água é bem mais clara do que a que eu dei. Quase eu a roubei para enfiar no meio do texto ;)

E o Carlos tocou em um ponto interessante. Encarar a palavra escrita como uma espécie de sacramentação é, em outras palavras, encará-la como a "consumação" de algo nobre. Sendo assim, só gente realmente preparada, iniciada mesmo, seria apta para mantê-las. Daí que tão poucos soubessem ler e escrever antigamente, pois o acesso ao conhecimento e seu domínio é um luxo reservado naturalmente para poucos. Nada anormal, então, termos uma imensa maioria de analfabetos junto a uma minúscula elite letrada - mas que elite! E outra coisa que dá para deduzir do que o Carlos disse: que não é à toa que religiões do nível do Cristianismo, Judaísmo, Islamismo e Hinduísmo sempre tiveram seus livros sagrados. Pois o livro é "consumação" de algo nobre, e nada mais elevado que a Revelação. E todos os livros são (ou deveriam ser) pequenas revelações. Sendo assim, o livro é dos mais caros bens que existem, e é uma pena que nesse boom de publicações acabemos por perder a noção de sua importância. Acho que teríamos um pudor enorme em escrever qualquer coisa. ;)

Cassiano Farias said...

Como saiu esse repeteco?

Anonymous said...

oi cass,
você acertou em cheio. Nao só no Batismo, mas no Matrimonio as alianças também são purificadas com água!
um grande beijo e novamente parabéns pelo texto.
Ps: vc chegou a ver meu cachorro chinês?
Agora o Carlos tá querendo fazer concorrência com o meu fotolog. Vê-se pode???
:) Selline

Cassiano Farias said...

Cheguei não. Tirou foto? E não saba que o Carlos resolveu competir contigo... Juntem os dois em um truste e peguem todo o mercado ao invés de competirem...:)