Friday, January 18, 2008

E um feliz Natal

Não considero que desejar com atraso um Feliz Natal seja um despropósito. Gostaria de invocar um exemplo forçado: os Reis Magos só visitaram o Menino Jesus algum tempo depois de Seu nascimento. Ora, se eles se atrasaram um pouquinho, por que eu também não poderia? Portanto, desejo a todos um Feliz Natal.

Um feliz ano-novo atrasado

Gostaria de desejar muitas felicidades aos amigos que freqüentam, assim imagino, este mal escrito blog, pois, afinal de contas, novamente o enorme pedaço de pedra que habitamos e flutua no espaço graças a várias tensões físicas que equilibram os corpos no universo vai, de novo, dar outra volta ao redor de um astro que por sua vez também dá uma volta ao nosso redor, caso você, ó leitor, se coloque como referencial do movimento. Todos sabemos que este fenômeno é um acontecimento sideral interessantíssimo, afinal de contas são vários globos interagindo no universo, criando aquilo que certos homens com imagem poética mais dilatada costumam chamar de harmonia das esferas, algo que, em termos práticos, não servirá nem para você ter um emprego melhor, nem para cozinhar mais decentemente, nem para acordar sempre no horário, nem para contar uma agradável piada – desconsiderando, é claro, a querela a respeito do valor da astrologia. Não podemos esquecer também que é muito mais bonito desejarmos felicidades duas ou três vezes por ano, e isso por causa de uns poucos motivos: o que se faz só de vez em quando mas com certa pompa nos parece mais aprazível e menos vulgar; porque o Natal e o Ano-Bom sempre são motivos de júbilo, e também o aniversário, mas este é opcional porque esquecível – o dos outros, claro está; e, finalmente, porque consideramos louco perigoso quem deseja toda hora felicidades ou quer nos abraçar demais. Seria muito ridículo desejarmos felicidades todos os dias, exceto no caso de Deus, pois a criação é leve para ele, ou seja, boa e feliz.

Deixemos porém este prefácio um tanto formal a fim de conhecermos algo sobre um notável senhor, que chamarei de Herr Smith. Era um homem dado a originalidades, ou seja, bastante excêntrico. Vejamos o que ele disse quando ouviu os tradicionais votos de felicidade, numa roda de amigos, durante uma virada de ano:

-- Escuto, amigos, vários votos de felicidade e de saúde. Pois eu desejaria a todos vocês que pusessem ovos.

Naturalmente o mundo ficou chocado, e isto era exatamente a intenção de Herr Smith. Se o mundo fosse chocado, surgiria algo de novo e original. Tal é o poder do ser humano, que se transforma em chocadeira deste enorme globo. Era essa a sua opinião. Mas seria melhor acompanharmos o seu raciocínio:

-- Sabemos que não há nada de novo debaixo do sol. Ora, como haveria num front? O título da obra daquele senhor alemão é desnecessário. Abram as páginas do livro do Eclesiastes e vocês lerão basicamente tudo o que precisam. Novamente nosso mundo dará outra volta, como sempre, ao redor do sol. Portanto, amigos, eu desejaria um ano cheio de surpresas a todos vocês, contrariando aparentemente o ensinamento bíblico. Não me ocorreu melhor pensamento que desejar a todos vocês que pusessem ovos. Evidente que não qualquer ovo, mas os mais elegantes. Homens e mulheres, coloquem muitos ovos, de preferência coloridos!

São esses os pensamentos de Herr Smith. As opiniões a respeito do que ele disse eram em geral favoráveis, seja pelo inusitado da proposta, seja pelo estado ébrio dos convivas. E já que mal saímos da grande festança de Reveillon, desejo igualmente aos caros leitores que coloquem muitos ovos ao longo deste ano que promete tanto dessa vez –- e de preferência ovos coloridos. Ignoremos tristezas e angústias, porque o que importa, com exceção de Deus e de sua legião de fiéis, é que botemos ovos mui elegantes. E aqui me despeço, deixando para todos vocês um último pensamento do caro Herr Smith: “Se os homens pusessem ovos, jamais haveria o flagelo da fome, e se houvesse ovos de ouro, jamais haveria pobreza.”

Se por um acaso o leitor imaginou que nada mais haveria de ser dito, devo advertir que você esqueceu que uma das características das artes de nosso tempo -- incluindo a literatura -- é que jamais sabemos quando algo termina direito, e às vezes sequer entendemos quando e de onde começou, além de muitas vezes nos indagarmos do sentido daquilo que vemos, lemos ou ouvimos. Isso tudo foi para dizer que a parte que segue é uma espécie de epílogo, embora maior que a parte anterior. Vejamos então o resto sem mais desfazer as horas.

Uma senhora, que por razões de sigilo não divulgarei o nome, tendo ouvido de longe o que disse Herr Smith, foi para a sua casa absorta em reflexões. Seu marido estranhou, pois não era muito comum ver aquela senhora tão entrincheirada em divagações. Seu olhar perdia-se na curvatura do mundo, assemelhando-se mais a um boi parado ouvindo alguém berrando para que ele saia do lugar. Mas o marido, ruim observador de pessoas –- e, por conseguinte, com muito potencial para marido traído –-, achou que sua mulher estava apenas em processo de assimilação do novo ano. “O calendário pode ser algo misterioso para certos indivíduos”, foi o que achou. Em seguida coçou de uma maneira gostosinha o queixo e pensou: "Algumas coisas só as mulheres percebem." E assim rumaram para casa, quedos.

Quando o marido virou para o lado e dormiu na cama, a mulher se levantou e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho e viu as marcas da vida. Ao que tudo indicava, a vida foi para ela uma espécie de engenheira de obras incompetente, que busca fazer reformas sem ter um bom plano, apenas conseguindo no final um resultado tosco e disfarçado superficialmente. Isso a teria deixado deprimida se as palavras que ouvira por acaso de Herr Smith não tivessem ecoado dentro de seu frágil cocoruto cabisbaixo. Ela contemplou uma oportunidade de realizar finalmente algo de especial. Animada, pois parecia ser uma linda idéia, trancou-se no banheiro e fico de cócoras, fazendo um certo esforço. Todavia, aquela situação insólita lhe fez pensar numa questão prática –- ao menos para o que ela entendia como prática naquele instante: ela não ouvira qual o modo mais apropriado de se botar ovos. Ora, sabemos que os seres humanos são dados a imitações, e o próprio Aristóteles já fez elucubrações das mais elevadas sobre o tema. Na falta de um modelo humano, a senhora se viu obrigada a imitar o modelo que parecia mais simples e conveniente: a mamãe-galinha. Mas de chofre ela foi constrangida pela verdade, porque não sabia exatamente como uma galinha botava ovos. Seu saber era por demais genérico. Dessa forma, bem entre seu desejo e a consumação desse desejo havia um muro prosaico que, por não se mostrar transponível, acabou se revelando o motor de sua frustração. Uma pequena inviabilidade técnico-prática estava vaporizando o seu sonho. Mas a senhora não deixaria mais uma vez que dificuldades dessem conselho ao desânimo, como tantas vezes houve em sua vida. Foi então que ela tomou uma decisão grave: depois de quase vinte mil anos... perdão, depois de quase vinte anos longe dos livros, ela voltaria a freqüentá-los a fim de se preparar para entrar em algum curso de apicultura! E foi o que ela contou ao marido no dia seguinte. Ele, sendo aquilo que se costuma chamar popularmente de “mosca-morta”, concordou, embora estranhasse. Que diabos ela faria num curso de apicultura?

A mulher passou sete anos estudando para entrar no curso – é evidente. Você não pensaria, insigne leitor, que rapidamente ela voltaria a se acostumar com os estudos, se é que um dia já esteve acostumada, não é mesmo? O conto se tornaria bizarramente inverossímil caso isso acontecesse.

Quando ela enfim entrou no curso de apicultura após tanto tempo, houve muitos festejos. Foi grande a surpresa do mundo. Herr Smith foi convidado para uma comemoração, fato este que o surpreendeu, já que nunca vira aquela senhora mais gorda senão naquela dia. Mas ela fez questão de cumprimentar-lhe entusiasticamente, dizendo-lhe que ele foi um dos motivos de ela entrar naquele curso. Ele nada entendeu e pediu explicações.

-- Herr Smith, não se lembra da vez em que, numa virada de ano, disseste que deveríamos todos botar ovos?

-- Perdão, madame, mas digo muitas coisas, ainda mais em estado ébrio.

-- Imaginei que fosses casado...

-- Hein? Não, não. Eu quis dizer que... Enfim, o que tem essa história de botar ovos?

A senhora percebeu que estava se abrindo demais a alguém que não conhecia direito. Além do mais, não é muito conveniente falar acerca de questões muito graves em eventos sociais. Ela adotou um tom mais genérico:

-- Gostaria apenas de dizer que o senhor inspirou meu ingresso no curso de apicultura.

-- A senhora há de compreender minha ignorância, porém não consigo compreender qual a ligação entre aquela conversa sobre botar e o curso de apicultura.

Com um pouco de dificuldade, a senhora controlou seu desejo de divulgar ao mundo a idéia tão filantrópica de botar ovos. Limitou-se novamente ao mais genérico:

-- Porque o estudioso de apicultura domina a arte da criação de aves e de multiplicá-las.

-- Apicultura? Entendo... Contudo, diga-me uma coisa, amável senhora: a definição que me deste sobre o trabalho do apicultor aprendeste onde por um acaso? Estou bastante espantado.

-- Lembro-me disso desde meus tempos de jovem ingênua. Havia um apicultor amigo de meu pai. Nunca vi o trabalho dele. Mas assim que soube que era apicultor, perguntei o que significava. Ele me disse que cuidava das mais doces, pequenas e tenras criaturas aladas, e que me mostraria seu pinto calçudo em privado assim que eu quisesse vê-lo. Jamais tornei a vê-lo, porque ele e meu pai brigaram. Nunca entendi o motivo. Qual deve ter sido a espécie de passarinhos que ele cuidava, Herr Smith?

-- Não sei, querida senhora, provavelmente alguma que ele tinha dificuldade de manter sob controle. Mas aquele homem parecia ser dado à poesia. Preciso confessar que tua conclusão acerca de ele ter sido criador de pássaros me deixou admirado. Me responda ainda outra coisa, por gentileza: quando procuraste o curso, acaso viste alguma imagem de animais? Umas abelhas, por acaso?

-- Oh, eu vi! Que curioso o senhor ter comentado isso. Vi muitas abelhas. Creio que sejam mascotes da instituição. Havia tantas imagens delas!

-- Amável senhora, percebo, ou melhor, é evidente que serás uma tremenda apicultura. Também estou espantado com a qualidade desse curso que a senhora ingressou. É tudo interessante demais.

Logo em seguida, Herr Smith se despediu, dizendo que urgentemente precisava voltar para casa, pois teria que saber quanto custava o boi gordo. Na realidade, assim que ouviu aquela definição tão heterodoxa da arte da apicultura, ele lembrou das razões que o haviam levado a não mais ir a eventos sociais. Despediu-se e foi embora rapidamente.

E o que aconteceu com a senhora?

Apenas no meio do curso estranhou o fato de jamais mencionarem aves. Fez um esforço mental supremo a fim de lembrar alguma coisa das suas lições de biologia na época do então presidente Washington -– não o George, mas o Luís, bem brasileiro. Como nada conseguia – exceto um escorrer de mucosas pelas vias aéreas – concluiu então que as abelhas faziam parte da classe das aves. Quando ela exprimiu essa opinião durante uma aula, foi motivo de incredulidade da multidão, com a exceção de um rapaz que há algum tempo achava necessário repensar a divisão biológica dos seres vivos, incluindo um componente aí que não fosse necessariamente físico-químico. O que o levou a ingressar num curso de apicultura, é difícil saber. Mas, sentindo-se inspirado pelo que entendeu como audácia científica da parte daquela senhora, encheu-se de coragem e seguiu adiante em suas especulações, o que no futuro se mostrou recompensador, pois, graças a elas, recebeu os mais variados e belos prêmios no campo da pesquisa científica. Atualmente sua hipótese da divisão dos seres vivos segundo uma gradação que considera a potência espiritual como elemento mais importante vai se tornando cada vez mais aceita.

Mas, finalmente, o que aconteceu com aquela senhora? Ela continuou por muito tempo a aplicar, ou melhor, tentando aplicar seus conhecimentos apicuários para que lograsse botar ovos. Para sua lástima, tudo parecia infrutífero, afinal as abelhas e aves não parecem formar um todo harmônico. Todavia, em certa ocasião, ela acordou com um ovo laranja com detalhes em amarelo ao seu lado. Mal tendo percebido isso, uma gotinha de lágrima se formou em seu delicado olho esquerdo e só desceu por ali, porque no primeiro a remela havia construído uma impávida fortificação. E a senhora permaneceria a contemplar aquele ovo laranja com detalhes em amarelo por muito tempo, se não fosse a insensatez de seu marido, que, num momento de puro hábito, pousou a sua busanfa, já alargada pela idade e pela má vontade da natureza, bem naquele ovo, onde talvez houvesse uma vida em potencial. Sua mulher gritou cheia de horror farsesco, mas ele, insensível, apenas supôs que já havia chegado a hora temida de usar fraldas geriátricas.

Saturday, January 12, 2008

O funesto conto do homem que ousou vilipendiar o bebê

Resolveram colocar a criança para falar no telefone com Josué. Um raio de pensamento logrou atingir-lhe: “Pelos céus, não quero falar com esse projeto de bigorrilho, que coisa mais chata.” Mas a mamãe não se deu conta disso e colocou o bebê para falar:

- Fala, filhinho, fala com o tio!

Bebê:

- ...

Josué, tentando parecer simpático:

- Oi, bebê, fala com o titio, fala. – mas pensando: “Ai, saco...”

Bebê:

- ...

Mamãe:

- Olha, ele quer falar alguma coisa!

Josué, tentando parecer simpático:

- Sou eu, o titio, bebê! – mas pensando: “Que ordinária! Não tá vendo que essa coisa não vai falar porcaria nenhuma?”

Bebê:

- ...

Mamãe:

- Fala, bebê, fala!

Josué, esquecendo os rudimentos da vida urbana:

- Espero que você não puxe a retardada da sua mãe, moleque idiota. Seus pais devem ser primos de primeiro grau.

Bebê:

- Gloooshfp!

Mamãe:

- Olha, ele está quase falando meu nome! Ouviu?

Josué, meio assustado:

- Como é que é? – mas pensando: “Será que esse moleque me xingou? Me respondeu? E agora? Olha a merda que fiz... Daqui a pouco esse moleque cresce, vira bandido e me dá uns tiros, tudo por causa disso...”

Mamãe, agora no telefone:

- Ouviu ele falando? Agora ele está todo agitado.

- É, ouvi. – mas pensando: “Se for verdade que as primeiras impressões são as mais fundamentais, inculquei ódio a mim mesmo nesse moleque. Meu Deus, o que foi que fiz?.”

- Vou ter que desligar, ele não me deixa falar.

- Tudo bem, depois a gente conversa. – mas pensando: “Ele deve estar pleno de ódio no coração.”

- Tchau, beijos!

- Espere! Ele está precisando de alguma coisinha?

- Ah, não precisa, está tudo bem...

- Não, que isso, vou levar um brinquedo bem chique dez pra ele. – mas pensando: “Espero que dê para subornar esse moleque, não tô a fim de ser assassinado.”

- Ah, jura? Traz um patinho? Ele adora patinhos! – mas pensando: “Chique dez? O que ele quis dizer?”

- Sim, eu levo. Deixa o titio falar com esse bebê fofo só uma coisinha...

- Não dá, ele acabou de fazer cocô.

- Cocô? – mas pensando: “O que isso quer dizer? É algum símbolo, não me resta a menor dúvida. Preciso raciocinar como se eu fosse uma criança de seis meses, é questão de vida ou morte.”

- Olha, tenho que ir, beijos.

- Ah, tudo bem... Beijos... – mas pensando: “Aniquilei meu próprio futuro, chucrute!”

Josué passou o resto de seus dias apreensivo, olhando sempre de soslaio o filho de sua amiga, suando demais e sentindo seus músculos se contraírem descontrolados, efeito este que o obrigava a fazer movimentos inusitados. Houve o boato de que Josué estava praticando algum tipo de ioga, e muitas pessoas, quando o viam se contorcendo daquela maneira tão original, balançavam a cabeça com aprovação angélica, supondo que ele estava se tornando espiritualmente mais elevado. O fato de ele se tornar mais melancólico confirmava as suspeitas. A senhora De Souza (née Childerica), praticante de um rito cristiano-oriental-cosmológico-panteísta, costumava dizer que aquela melancolia era o resultado de uma profunda desilusão energética, o que era bom, porque resultado da confluência dos poderes magnéticos do seu avatar intergalático com a evolução sumamente pessoal de seu espírito, o que poderia ser resumido com o termo “Hiai”, supostamente de origem assíria. De qualquer forma, certas atitudes suas permaneciam inexplicáveis, como da vez em que Josué, enquanto segurava o bebê, ao mesmo tempo em que o pequeno babava-lhe desmesuradamente, bradou com horror: “Comigo é nove da garrucha trouxada!”, para espanto de todas as criaturas visíveis e invisíveis que se encontravam no recinto. Em outra ocasião, a criança, com idade um pouco mais avançada, jogou-lhe feijão na camisa, o que fez Josué dar um pulo meio canastrão e gritar: “A realidade é uma quimera!” Todos esses eventos tornavam a figura de Josué enigmática, o que lhe dava, ainda mais, uma aura de divino mistério e – para não poucas senhoras e senhoritas – de inacreditável sedução. Quanto ao garoto, perturbava-lhe muito os agrados que o “titio” tão insistentemente lhe oferecia, sem contar aqueles esgares sinistros. Nunca houve explicações. Tudo permaneceu no tenebroso reino do subtendido. Portanto, eis aqui a moral da história: pientíssimo leitor, se tiveres de xingar um neném de seis meses, xingue, porém arcarás com todas as funestas conseqüências enquanto ainda fores habitante deste mundo sublunar e quiçá para depois desta vida.