Por um desses insondáveis mistérios deste mundo de justiça imperfeita, eis que eu, no momento de publicar um texto, me vi na incumbência de escrever três, os quais não tinham a menor conexão entre si. Para dizer em termos musicais, não eram variações do mesmo tema, sendo portanto bastante improvável que deles eu conseguisse compor uma fuga; no máximo haveria aquelas justaposições tão estranhas que se tornaram comuns na música vocal em fins da Idade Média. Eu iria acrescentar que elas eram fascinantes, porém o leitor muito justamente imaginaria que eu estivesse querendo inflar o meu ego tão raquítico.
Mas em nome da minha preguiça, hoje comentarei sobre apenas um assunto.
O que eu gostaria de dizer agora é que se há uma classe de doidos, certamente é a dos intelectuais, ou intelectualerdas, como costumava dizer Gustavo Corção. Sei que esse assunto já está um pouco batido, ainda mais para o digníssimo leitor deste pobre escritor - se é que poderia me chamar de escritor - , porque não muito raramente eu insisto nessa clave. Mas eu pediria a atenção do leitor mais uma vez para que vejamos isso de um ângulo pequenino e diferente. Gastarei algumas palavras sobre a ciência.
Vejamos a grosso modo a Física. Sem querer entrar em detalhes aristotélicos acerca de seu objeto e de seu método, sabemos todos nós, ou supostamente sabemos, que ela, como ciência, reduz os objetos de seu estudo a umas tantas explicações genéricas, que por sua vez, graças à ajuda da Matemática, são traduzidas em fórmulas algébricas. Essas fórmulas algébricas são o que são porque precisam unir a variedade dos fenômenos com as chamadas leis gerais. Podemos facilmente notar o trabalho de abstração da ciência partindo dos dados, isto é, dos fenômenos observados que se prestam ao estudo. Assim, há de se unir também os dados observados a uma explicação causal determinante, que deve ser, por ser científica, aplicável a todos os casos. Numa palavra, deve ser geral. Mas note o querido leitor que esse dado observado faz parte da realidade. Portanto, a explicação de uma ciência tão imponente quanto a Física é a observação de determinados dados, não da realidade inteira. Só que essa não é a única coisa interessante a ser constatada. O mesmo dado observado pode ser entendido sob perspectivas diferentes, as quais, como não é difícil de imaginar, não esgotam o dado: há sempre brecha para mais. E menos difícil ainda é imaginar que dados cada vez mais complexos são mais difíceis de explicar. O melhor exemplo disso é o homem. Poderíamos buscar explicações as mais variadas a seu respeito, sem que, com isso, esgotássemos a idéia do que seja o homem, porque ele abrange ao mesmo tempo, como já dizia Max Scheler, todos os diferentes estágios dos seres vivos e todo o mundo espiritual. É um ser muito complexo, e como tal ele pode ser compreendido, naturalmente, através das perspectivas mais diversas possíveis. Então alguém poderia estudar o homem pela perspectiva dos seres vivos, e então estará se apoiando na Biologia, assim como poderia compreendê-lo a partir da perspectiva da alma, cujo problema é da Psicologia. Talvez buscasse também entender o homem segundo a sua relação com Deus, o que é problema da Teologia, ou então a partir das suas relações orgânicas, cujo assunto poderia cair nas malhas da Química. E assim poderíamos prosseguir infinitamente, até porque, no caso do homem, ele concentra em si, de forma admirável, uma tal profusão de elementos que mais parece ser um mundo em miniatura - daí que, não por acaso, os medievais chamassem o homem de "mundo pequeno". Enfim, as perspectivas sobre um determinado assunto são as mais variadas possíveis, ainda mais quando o objeto fornecer uma quantidade enorme de elementos para a análise.
Contudo, há um detalhe importante nessa história toda. Todas essas ciências, embora tenham pretensão de explicação universal, só a terão dentro de seu próprio campo. Cada ciência é um recorte da realidade, pois ela é muito complexa. É por meio de abstrações que a realidade vai se tornando melhor entendida - ou mais racionalmente compreendida. Não podemos esquecer nunca desse detalhe. Direi em outras palavras. Todas as ciências buscam estudar sim a realidade, mas a realidade segundo determinado aspecto. Por ter a realidade aspectos infinitos, ela pode ser encarada sob perspectivas infinitas. É por isso que todas as ciências têm sempre um aspecto frágil, já que, além de não serem a explicação de todas as coisas (isto é, da realidade), esse caráter de abstração faz com que elas tenham qualquer coisa de irreal. Há ainda outra coisa, talvez a mais reveladora. Por terem esse aspecto frágil, elas nunca bastam a si mesmas, necessitando de um suporte que esteja para além delas. A Biologia, por exemplo, estuda os seres vivos, mas as suas explicações são também um ser vivo? A Física lida com as propriedades dos corpos, mas a propriedade em si é também um corpo? Quantas moléculas têm a Biologia e quanto mede a Física? A Biologia não é um ser vivo, assim como a Física não é um corpo, até porque, se fosse de outro modo, estaríamos seriamente encrencados: nos acharíamos na emergência de saber a Física da Física, e a Física da Física da Física, e assim até não mais poder, o que seria extremamente ridículo. Se nenhuma delas é aquilo que procuram estudar, que são a Biologia e a Física? Ora, essa pergunta, "o que é", pertence não a cada uma dessas ciências em particular, mas sim a metafísica. As próprias considerações sobre cada ciência exigem uma explicação que não se encerrea tão-somente em cada ciência. Então, se por um acaso eu não tiver dado uma explicação muito complicada, o leitor poderá concluir que qualquer idéia que tome qualquer ciência em particular como modelo explicativo de tudo e em todas as suas partes será apenas uma arbitrariedade e uma fantasia.
Agora bem, existe alguma ciência que estude a realidade, não em determinado aspecto, mas em seu conjunto, de modo radical? Se em sua forma radical a realidade é o ser, a única ciência que estuda o ser enquanto ser, segundo dizia o antigo Aristóteles, é a metafísica. Daí que, embora a metafísica não seja a explicação da realidade em todos os seus múltiplos aspectos, ela é o entendimento mais excelente a seu respeito, porque toma o ser em seu caráter mais radical. Não é estranho, pois que desde muito tempo seja ela considerada a ciência primeira, e nosso caro Estagirita também já dizia que o seu conhecimento participa do divino, já que Deus o tem em sua plenitude.
De tudo isso que o leitor acompanhou, não é difícil notar o quão esquisito é quando alguém, em nome de determinado campo de saber, exige submissão imediata de todos. Sempre tenho a impressão de que o sujeito que age assim é como alguém que construiu uma jaula tão esplêndida que, abobado com o seu trabalho, se mete lá dentro, joga fora as chaves e exige que o mundo inteiro também seja enjaulado. Semelhantes coisas sempre são ditas em tom grave. Mas não é de espantar, afinal de contas não há criatura no mundo que leve suas idéias extravagantes mais a fundo que o louco.