Wednesday, November 01, 2006

Uma opinião de Goethe sobre a literatura

Vou abrir o mês com Goethe. A passagem a seguir é do livro de Eckermann chamado Conversações com Goethe. A tradução é de Luís Silveira pela editora portuguesa (bela terrinha!) Vega. Aliás, por que geralmente as pessoas só dão bola para literatura inglesa ou americana e deixam de lado a espanhola e alemã? Mas vejamos a interessante passagem:

Quarta-feira,
15 de Outubro de 1825.

Fui encontrar esta tarde com Goethe muito bem disposto e tive a satisfação de ouvir mais uma vez da sua boca opiniões importantes. Falamos do estado da nova literatura da qual Goethe disse as palavras que se seguem:

"Falta de caráter de cada uma das personagens que investigam e escrevem", disse ele, "é a origem de todos os males de nossa literatura hodierna."

"Especialmente na crítica esta falta de caráter é prejudicial, pois espalha falsidades com o nome de verdades ou nos dá uma pobre verdade às custas de coisas grandiosas, que nos fora bem mais grato conhecer completamente.

"Até hoje o mundo acreditava no sentido épico duma Lucrécia, de um Mucius Scaevola e agitava-se e entusiasmava-se por eles. Mas eis que vem agora a crítica histórica e diz que tais personagens nunca viveram, e que não passam de ficções e fábulas criadas pelo alto espírito dos romanos. De que nos serve, porém, uma verdade tão pobre?! Se os romanos foram suficientemente grandes para efabular tais coisas, devemos também ser pelo menos tão grandes que nelas acreditemos.

"Até hoje tinha sido para mim sempre um prazer acreditar num episódio do século XIII, aquele em que o Imperador Frederico II, tendo tido de tratar assuntos com o Papa, deixara a Alemanha do Norte aberta a incursões inimigas; hordas asiáticas penetraram nela e chegaram até a Silésia; mas o Duque de Leignitz derrotara-as completamente. Os asiáticos dirigiram-se depois para a Morávia, mas foram aí batidos pelo Conde de Sternberg. Estes heróis viviam na minha imaginação como os grandes salvadores da Nação Alemã. Mas agora vem a crítica histórica e diz-nos que estes heróis se sacrificaram inutilmente porque o exército asiático retiraria em breve e se afastaria por si próprio. Assim se reduz ao nada um grande episódio patriótico e ficamos desolados por completo."

Depois destas opiniões sobre críticos da História, Goethe falou acerca de investigadores e escritores doutra espécie.

"Nunca teria conhecido a miséria dos homens e sabido como poucos se preocupam com os grandes objetivos", disse ele, "se não tivesse feito a prova com os meus estudos de ciências naturais. Reparei que para a maior parte deles a ciência só importa como modo de vida e que adoram até o erro desde que à custa dele possam viver.

"Com as Belas Letras o caso não é diferente. Também nelas os grandes ideais e o sentido puro do que é verdadeiro e bom e o desejo de expansão destas coisas raras vezes surge. Elogia-se e suporta-se um segundo, porque se quer ser também suportado e elogiado por ele, e a verdadeira grandeza não importa a estes literatos que até gostariam de a extinguir do mundo, justamente para que eles pudessem conseguir a importância que não têm. A massa geral é assim, e os que dela sobressaem não são muito melhores.

"A. W. von Schlegel poderia ter sido muito importante dado o seu gênio e erudição enciclopédica. Mas a sua falta de caráter não permitiu que a nação recebesse a extraordinária influência dele nem que lhe desse a atenção devida.

"Precisamos de um homem como Lessing; donde vem a grandeza deste senão do seu caráter e de sua constância! -- Homens tão inteligentes e tão cultos como ele há em quantidade; mas onde há um caráter desta natureza?

"Há muitos homens inteligentes e bastante sabedores, mas simultaneamente tão cheios de orgulho que gostam de se fazer admirar pelas massas de curta visão como pessoas espirituosas, e não se envergonham nem se temem de nada, nem consideram coisa alguma sagrada.

"Por isso tem muita razão Madame Genlis quando protesta contra as liberdades e gracejos de Voltaire, pois, em boa verdade, por muito cheios de espírito que sejam nenhuma melhoria trouxeram ao mundo e nada sobre tal fundamento se pode construir. Antes, pelo contrário, pode ser bem prejudicial, porque desnorteia os homens e lhes tira o apoio indispensável.

"E para mais -- que conhecimento alcançamos, e que objetivos conseguimos com todos os nossos motejos?!

"O homem não nasceu para resolver os problemas do mundo, mas sim para investigar a que importa o problema e parar logo nos limites do que é compreensível.

"Medir os problemas do Universo não é coisa permitida às suas faculdades e querer trazer ao mundo razão é para as suas possibilidades trabalho em vão. A razão dos homens e a razão de Deus são duas coisas muito diferentes.

"Quando defendemos a liberdade do homem fazemo-lo sob a égide da omnisciência divina, pois visto que Deus sabe o que eu farei, terei de proceder como ele sabe.

"Digo isto só como sinal do pouco que sabemos e de que se não deve tocar nos segredos divinos.

"Devemos também só exprimir pensamentos superiores que tragam bem ao mundo. Os outros devemos conservá-los para nós, e devem iluminar aquilo que fazemos com um modesto raio de Sol, quando se vai esconder no poente."

1 comment:

Cassiano Farias said...

Puxa vida, cada vez que cito alguém tenho a sensação de que tudo que escrevi em comparação é horroroso. Da próxima vez cito alguma coisa bem horrenda.

Ah, o livro é muito recomendável.